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O conflito axiológico entre os cânones constitucionais da livre iniciativa e da busca do pleno emprego

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4 DA SUPERAÇÃO DA APORIA

 

 

4.1 A Constituição Dirigente

Não obstante a inferência aduzida anteriormente, qual seja, a do entendimento positivo concernente à configuração de conflito axiológico na estrutura própria de nosso texto constitucional, vale dizer, neutralizando a efetivação do conteúdo relativo ao teor ao princípio da busca do pleno emprego, doravante empreenderemos esforços no sentido de identificar precisamente quais seriam as condicionantes que determinam tal idiossincrasia, bem como intentar traçar caminhos que superem essa contradição em termos.

Nesse sentido, é que pensamos ser imprescindível a intelecção do conceito desenvolvido pelo professor Canotilho relativamente ao dirigismo constitucional. Todavia, em que pese o famigerado e discutido falecimento desse modelo além-mar, entre nós ainda não vislumbramos possibilidade de nos desvencilharmos facilmente dele, motivo pelo qual urge que o explicitemos e demonstremos em que termos seu entendimento pode nos ser útil para a empresa ora desenvolvida.

Relativamente à atualidade do modelo constitucional dirigente em nosso país, colhemos posição jovem e hodierna (GARCIA, 2010, p.4 ):

A obra Constituição Dirigente e vinculação do Legislador em Portugal já alcançou seus objetivos, devido a muitos fatores, dentre eles as já comentadas reformas na constituição portuguesa. Diferentemente do que ocorre em nosso país, onde o âmbito normativo-programático da Constituição ainda enfrenta severa resistência conservadora. A leitura Constitucional em países de modernidade tardia como o Brasil ainda devem estar pautados na luta pela efetivação dos valores consagrados na Constituição. As democracias de países como o nosso ainda não amadureceram a ponto de abandonar a tese de uma Constituição Dirigente. No Brasil a discussão acerca do papel da justiça constitucional deve levar em conta as nossas peculiaridades, onde as promessas trazidas pela Constituição de 1988 estão longe de serem efetivadas. O Estado brasileiro deve trabalhar na defesa dos compromissos expressos na Constituição, dando continuidade ao seu perfil dirigente e compromissário. As normas constitucionais não podem constar em segundo plano, principalmente em um país onde o texto constitucional carece de efetividade.

Destarte, Eros Grau assevera ser a nossa Constituição Federal de 1988 um modelo de Constituição Dirigente: “Que a nossa Constituição de 1988 é uma Constituição Dirigente, isso é inquestionável. O conjunto de diretrizes, programas e fins que enuncia, a serem pelo Estado e pela sociedade realizados, a ela confere o caráter de plano global normativo, do Estado e da sociedade” (GRAU, 1995, p.153.).

Nesse diapasão, em outro ponto de seu A Ordem Econômica na Constituição de 1988, Eros Grau (1995, p. 67) retoma a ideia acima disposta conceituando e delimitando o que seria uma Constituição de matizes dirigentes, tornando clara a afinidade com nosso modelo constitucional e antevendo seus efeitos na seara econômica do país.

Constituições diretivas ou programáticas – doutrinais – são concebidas as que não bastam em conceber-se como mero ‘instrumento de governo’, mas, além disso, enunciam diretrizes, programas e fins a serem pelo Estado e pela sociedade realizados. Elas, pois, as que se transformam em um ‘plano normativo-material-global, que determina tarefas, estabelece programas e define fins’’, não compreendem tão somente um ‘estatuto jurídico do político‘, mas sim um ‘plano global normativo’ do Estado e da sociedade. A Constituição Econômica que nelas se encerra compreende a enunciação dos fins da política econômica, postulando, na sua conformação, a implantação de uma nova ordem econômica.

Sendo assim, não cremos incorrer em erro pensando a nossa Constituição Federal de 1988, enquanto paradigma de Constituição Dirigente, nos termos próprios desenvolvidos pelo constitucionalista português. Deveras, cumpre que a partir dessa constatação problematizemos tal condição, como meio de explicitar as razões pelas quais configuram-se aporias de efetivação, mormente ao se proceder ao cotejo dos preceitos do texto constitucional escrito e aquilo que dele extrai-se no plano da efetividade normativa.

Considerando, então, a nossa constituição como um modelo de constituição dirigente, devemos ter em mente que em tal paradigma normativo o legislador infraconstitucional, o administrador e o magistrados não exercem seus misteres de forma livre e descompromissada. Ou seja, devem desenvolver os anseios, desejos e compromissos plasmados no texto constitucional, não podendo agir contrariamente às expectativas lá consignadas.

Nesse sentido, apontando para a vinculação dos operadores do direito ao teor compromissário expresso em nossa Lei Fundamental, bem como relativamente à dificuldade de se operacionalizar uniformemente tal obrigação, expomos o pensamento do jurista brasileiro André Karam Trindade (p. 37):

Visto que as tarefas e fins do Estado inseridos no texto constitucional são propostas de legitimação material da Constituição de um país, que a compreensão material da Constituição passa pela materialização dos fins e tarefas constitucionais e que o Estado constitucional de direito não se identifica mais com o Estado de direito formal, mas quer legitimar-se como Estado social, aparece o problema do papel da Constituição dirigente na transformação da realidade social, mormente se se considerar que uma Constituição programática – que deixa de ser apenas do Estado, passando a ser também da sociedade – torna mais transparente a vinculação dos órgãos de direção política na medida em que lhes fornece as linhas de direção.

De tal pensamento, extraímos que uma constituição dirigente como a brasileira deve direcionar a ação política, fornecendo nortes materiais para sua atuação conformada aos ditames constitucionais e não ser utilizada como objeto de concretização de interesses de minorias políticas. Destarte, já nos é possível antever a dificuldade própria à fiscalização da atuação dos agentes políticos de acordo com os compromissos programáticos firmados em nossa Carta Magna.

Nesse sentido, analisando a dicotômica e, por vezes vil, relação entre o Direito e a Política, bem como refletindo sobre os ensinamentos do jurista Paulo Bonavides, Trindade (2010, p. 46) tece o esclarecedor comentário:

Neste contexto, conforme ensina Bonavides, o atual problema constitucional torna-se a ausência de uma fórmula que venha a combinar as dimensões jurídica e política da Constituição, pois, sempre que uma delas ocupa todo o espaço da reflexão e da análise, os danos e as insuficiências de compreensão do fenômeno constitucional tornam-se evidentes. Aliás, parece indiscutível que, no Estado democrático de direito, a relação entre o direito e a política configura-se como uma das mais tensas, mormente quando se debate sobre o papel da jurisdição constitucional – através do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis – na garantia da supremacia e da efetivação da Constituição. Se o Estado liberal tem como protagonista o poder Legislativo, em face da institucionalização do triunfo da burguesia; e o Estado social exige a intervenção do poder Executivo, em razão da necessidade de realização de políticas públicas; é necessário reconhecer, como já referido, que o Estado democrático de direito deposita, sobretudo, no poder Judiciário os mecanismos capazes de assegurar as promessas incorporadas pelos novos textos constitucionais.

No que tange à exigibilidade e vinculação dos agentes políticos às normas programáticas enunciadas em uma constituição de matizes dirigentes, Canotilho (2008, p. 1177) declara o seguinte:

Existem, é certo, normas-fim, normas-tarefa, normas-programa que <impõe uma actividade> e <dirigem> materialmente a concretização constitucional. O sentido destas normas não é, porém, o assinalado pela doutrina tradicional: <simples programas>, <exortações morais>, <declarações>, <sentenças políticas>, <aforismos políticos>, <promessas>, <apelos ao legislador>, <programas futuros>, juridicamente desprovidos de qualquer vinculatividade. Às <normas programáticas> é reconhecido hoje um valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da constituição. Não deve, pois, falar-se de simples eficácia programática (ou directiva), porque qualquer norma constitucional deve considerar-se obrigatória perante quaisquer órgãos do poder político (Crisafuli). Mais do que isso: a eventual mediação concretizadora, pela instância legiferante, das normas programáticas, não significa que este tipo de normas careça de positividade jurídica autônoma, isto é, que a sua normatividade seja apenas gerada pela interpositio do legislador; é a positividade das normas-fim e normas-tarefa (normas programáticas) que justifica a necessidade da intervenção dos órgãos legiferantes. Concretizando melhor, a positividade jurídico-constitucional das normas programáticas significa fundamentalmente: (1) vinculação do legislador de forma permanente, à sua realização (imposição constitucional); (2) vinculação positiva de todos os órgãos concretizadores, devendo estes tomá-las em consideração como directivas materiais permanentes, em qualquer dos momentos da actividade concretizadora (legislação, execução, jurisdição); (3) vinculação na qualidade de limites materiais negativos, dos poderes públicos, justificando a eventual censura, sob a forma de inconstitucionalidade, em relação aos actos que as contrariam.

Destarte, no caso de cotejarmos tal conjuntura constitucional com a questão do conflito axiológico em estudo, veremos que ambos os princípios (livre iniciativa e busca do pleno emprego) estão expressamente enunciados em nossa Constituição enquanto normas programáticas, ou seja, são standards de otimização constitucional aplicados mediante, principalmente, a ação política. Assim, temos que ambos os princípios deveriam ter sua carga valorativa refletida quando da ação legiferante e da atuação política e administrativa.

Contudo, em especial, nos reportamos ao princípio da busca do pleno emprego que, como temos demonstrado ao longo dessa explanação, tem sido constantemente olvidado e mesmo contrariado, justamente pelos efeitos de uma aplicação extremada e irrestrita de princípios econômicos como o da livre iniciativa que, no nosso sentir, conforme já exposto, inviabiliza a consecução prática do teor do referido princípio social.

Sendo assim, assumindo-nos como operadores de um direito constituído sobre um modelo constitucional dirigente e, considerando que normas programáticas em uma tal Constituição plasmadas devam ter vinculatividade até mesmo independente da ação legiferante e/ou política, lato sensu, acreditamos incorrer em uma problemática de controle de constitucionalidade das ações governamentais. Ou seja, em nosso entendimento, a falta de efetividade de princípios como o da busca do pleno emprego, em nosso paradigma constitucional, acaba sendo muito mais um problema político do que jurídico, em que pese as incongruências também de ordem jurídica previamente aludidas.

Não desmerecemos aqui, em absoluto, a necessidade política de ruptura com o regime anterior que guiou a consolidação de uma constituição dirigente e compromissada com ideais sociais como aquela promulgada em 1988. Todavia, acreditamos que em nossa jovem democracia tem sido de difícil separação as ideias de Estado e Governo, o que tem levado a uma interpretação constitucional em tiras, consequentemente propiciando uma concreção apenas parcial de seu teor dispositivo.

Nesse sentido, entendemos que seria mais interessante, do ponto de vista da efetivação de preceitos constitucionais, que houvesse uma menor quantidade de disposições normativas de caráter conformador e programático e um maior volume de princípios impositivos calcados em mecanismos suficientes á sua auto-aplicação.

No que concerne à atual adequação de nosso modelo dirigente à consecução dos fins colimados em nossa Constituição Cidadã, colacionamos o elucidativo posicionamento de André Karam Trindade (p. 56):

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Por fim, cumpre referir que a manutenção da tese de dirigismo constitucional encontra-se indissociavelmente ligada a uma postura substancialista, no que diz respeito ao papel da Constituição e da jurisdição constitucional. Assim sendo, mostra-se necessário fortalecer a legitimidade da jurisdição constitucional, mormente nos países de modernidade tardia, como o Brasil. Dito de outro modo, impõe-se uma análise profunda acerca da capacidade de se transformar a realidade social através da atividade exercida pelos tribunais. Todavia, não se pode olvidar que a ampliação do raio de ação do poder Judiciário não pode representar qualquer incompatibilidade com os ideais democráticos. Para que o surgimento deste novo espaço da esfera pública – construído em torno do direito – e o redimensionamento do clássico princípio da separação dos poderes não impliquem concorrência com o sistema de representação política, mas complemente os novos regimes democráticos, deve-se, além de estabelecer o sentido e o alcance da jurisdição constitucional em países como o Brasil, fixar os seus limites, a fim de que a judicialização da política não se transforme em uma espécie de ditadura do poder Judiciário, ao qual simplesmente se transfira as discricionariedades legislativa e administrativa aqui combatidas.

Outrossim, asseveramos entendimento semelhante ao acima explicitado de que para mantença de um tal modelo constitucional dirigente e, mesmo para seu desenvolvimento – que acreditamos possível – deve ser incrementado o papel do Poder Judiciário enquanto agente fiscalizador atuante na legitimação das condutas administrativas e legislativas. Desse modo, cremos ser possível amenizar as perniciosas idiossincrasias jurídico-políticas que determinam conflitos axiológicos -como o configurado entre os princípios da livre iniciativa e da busca do pleno emprego - e, mesmo, superar suas aporias de efetivação.

4.2 A Força Normativa da Constituição

Nesse momento da explanação, em que já diagnosticamos o conflito axiológico entre os princípios constitucionais da livre iniciativa e da busca do pleno emprego, bem como os motivos que cremos o determinarem, cumpre que passemos ao mais importante e árduo mister desse texto, qual seja, aventar meios passíveis de superação da aporia constituída.

Nesse desiderato, utilizaremos como linha-mestra o arguto e atual trabalho desenvolvido por Konrad Hesse no já distante ano de 1959, quando proferiu uma aula inaugural na Universidade de Freiburg, exaltando a ideia da força normativa da constituição, marcando os rumos do direito constitucional vindouro.

Na oportunidade, Hesse empenhou-se em desenvolver uma teoria que se contrapusesse às ideias de Ferdinand Lassale, assentando a importância ímpar de se ter um texto constitucional vivo, forte e capaz de reger as relações sociais, mormente – entendemos - concretando definitivamente no ideário jurídico a dimensão do Estado Democrático de Direito em detrimento de um estado meramente político concebido por Lassale.

Destarte, inicialmente ressaltamos que Hesse entendia não ser de bom-tom buscar a efetivação de uma norma constitucional que não guarde afinidade com a realidade social em que está inserida. A esse respeito, já assentamos nossas reservas quanto à real intenção de nossa Constituição de efetivar um princípio como o da busca do pleno emprego, quando sabemos que sua carga valorativa contrapõe-se diametralmente ao modelo econômico por ela adotado e fielmente consubstanciado na natureza do princípio da livre iniciativa.

Desse modo, explicitamos o entendimento do jurista alemão Konrad Hesse (1991, p. 15) no que tange à necessidade da norma jurídica coadunar-se com a realidade social:

A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade. Essa pretensão de eficácia (Geltungsanspruch) não pode ser separada das condições históricas de sua realização, que estão, de diferentes formas, numa relação de interdependência, criando regras próprias que não podem ser desconsideradas. Devem ser contempladas aqui as condições naturais, técnicas, econômicas e sociais. A pretensão de eficácia da norma jurídica somente será realizada se levar em conta essas condições. Há de ser, igualmente, contemplado o substrato espiritual que se consubstancia num determinado povo, isto é, as concepções sociais concretas e o baldrame axiológico que influenciam decisivamente a conformação, o entendimento e a autoridade das proposições normativas.

Destarte, daí já nos é possível entender por que uma constituição como a nossa, originada em um momento ímpar de ruptura com o modelo autoritário até então vigente, peca por estabelecer - no nosso entendimento, quase que verborragicamente - princípios, anseios e desejos pouco consentâneos com a realidade social e cultural de seu povo e, principalmente, sem a previsão de meios jurídicos adequados e eficazes à sua concreção.

Nesse sentido, lembramos o ensinamento de Hans Kelsen, para quem uma norma jurídica acaba por perder a sua validade quando não encontra na prática a eficácia que lhe seria própria. Por tais motivos concernentes à dificuldade de efetivação de normas constitucionais de natureza social imprescindíveis ao desenvolvimento igualitário de um país e, para que não nos enveredemos por questões político-ideológicas no momento de tornar concretas as disposições constitucionais legitimamente incrustadas em nosso ordenamento jurídico é que cremos ser sadia uma certa dose do já desgastado positivismo jurídico.

Corroborando com tal afirmativa e assinalando as dificuldades de se efetivar disposições constitucionais que divirjam substancialmente do ideário cultural de um povo, Hesse (1991, p. 16-17) analisa um arguto escrito político de autoria de Wilhelm Humboldt, com o qual anuímos:

Nenhuma Constituição política completamente fundada num plano racionalmente elaborado – afirma Humboldt num dos seus primeiros escritos – pode lograr êxito; somente aquela Constituição que resulta da luta do acaso poderoso com a racionalidade que se lhe opõe consegue desenvolver-se’. Em outros termos, somente a Constituição que se vincule a uma situação histórica concreta e suas condicionantes, dotada de uma ordenação jurídica orientada pelos parâmetros da razão, pode, efetivamente, desenvolver-se. (...) ‘Cuida-se de uma conseqüência – acrescenta ele – de natureza completamente singular do presente’ (aus der ganzen Beschaffenheit der Gegenwart). ‘Os projetos que a razão pretende concretizar recebem forma e modificação do objeto mesmo a que se dirigem. Assim, podem eles tornar-se duradouros e ganhar utilidade. Do contrário, ainda que sejam executados, permanecem eternamente estéreis... A razão possui capacidade para dar forma à matéria disponível. Ela não dispõe, todavia, de força para produzir substâncias novas. Essa força reside apenas na natureza das coisas; a razão verdadeiramente sábia empresta-lhe estímulo, procurando dirigi-la. Ela mesma permanece modestamente estagnada. As Constituições não podem ser impostas aos homens tal como se enxertam rebentos em árvores. Se o tempo e a natureza não atuaram previamente, é como se se pretendesse coser pétalas com linhas. O primeiro sol do meio-dia haveria de chamuscá-las.

Dos ensinamentos de Hesse, confrontando as ideias de Lassale, auferimos para incrementar nossa empresa, os conceitos de “Constituição Jurídica” e “Constituição Real” já referidos alhures. De modo que, temos em nossa Constituição Jurídica – aquela constante do texto promulgado em 1988 – a disposição de perseguirmos o ideal da busca do pleno emprego. Em contrapartida, encontramos tanto na Constituição Jurídica como na chamada Constituição Real – aquela que permeia o ideário cultural de um povo e determina, notadamente, o plano de efetividade – o cânone da livre iniciativa não apenas como anseio jurídico-social, mas enquanto efetivo fundamento de nosso estado de direito, desvelando a famigerada e perniciosa contradição a qual nos reportamos nesse trabalho.

De outro lado, considerando o texto constitucional um sistema complexo, tal como também o entendemos, Hesse explicita a necessidade de dialeticidade e contraposição argumentativa entre os princípios e valores plasmados em uma Constituição. Em tal configuração, entenderíamos ser possível alcançar uma coexistência pacífica e benéfica entre valores sociais aparentemente contrários presentes em uma mesma Carta política. Para elucidar as peculiaridade atinentes ao entendimento do jurista alemão (1991, p. 21), reproduzimos abaixo seu tratamento à questão.

Finalmente, a Constituição não deve assentar-se numa estrutura unilateral, se quiser preservar a sua força normativa num mundo em processo de permanente mudança político-social. Se pretende preservar a força normativa dos seus princípios fundamentais, deve ela incorporar, mediante meticulosa ponderação, parte da estrutura contrária. Direitos fundamentais não podem existir sem deveres, a divisão de poderes há de pressupor a possibilidade de concentração do poder, o federalismo não pode subsistir sem uma certa dose de unitarismo. Se a constituição tentasse concretizar um desses princípios de forma absolutamente pura, ter-se-ia de constatar, inevitavelmente – no mais tardar em momento de acentuada crise – que ela ultrapassou os limites de sua força normativa. A realidade haveria de pôr termo à sua normatividade; os princípios que ela buscava concretizar estariam irremediavelmente derrogados.

Todavia, em que pese a possível sadia coexistência entre princípios de cargas valorativas divergentes, do embate principiológico entre a livre iniciativa e a busca do pleno emprego, nos resta que - no dizer de Hesse - carecerá de força normativa aquela disposição que, embora conste no texto constitucional, não tenha passado por todo o processo de arraigamento na consciência coletiva, mormente quando em contradição com outra disposição que desse mal não padeça, como notadamente é o caso da livre iniciativa – corolário maior do capitalismo neoliberal.

Desse modo, que existam conflitos entre o teor daquilo expressamente disposto em nossa Lei Fundamental relativamente ao que ocorre no plano fático, nos é compreensível, haja vista, principalmente, a dificuldade de se efetivar todas as linhas de uma Constituição. Todavia, o objeto de nossa inquirição diz respeito à ocorrência de tensões e conflitos extremados internamente à estrutura de nossa Constituição, o que, diversamente, não entendemos como uma situação jurídica ordinária, mas como um vício legislativo de matizes jurídico-sociais quase inconciliáveis.

Por outro lado, entendemos que para tornar efetivo um princípio como o da busca do pleno emprego é necessário que, além de estar presente no ideário cultural de nosso povo – que o consideremos vital para um desenvolvimento social equânime - incorporemos força ativa - vale dizer, legiferante – que subsidie o desiderato de sua concreção. Avalizando tal exposição, Konrad Hesse (1991, p. 18-19) posiciona-se:

A norma constitucional somente logra atuar se procura construir o futuro com base na natureza singular do presente. (...) Em outras palavras, a força vital e a eficácia da constituição assentam-se na sua vinculação às forças espontâneas e às tendências dominantes do seu tempo, o que possibilita o seu desenvolvimento e a sua ordenação objetiva. A Constituição converte-se, assim, na ordem geral objetiva do complexo de relações da vida. (...) Mas a força normativa da Constituição não reside, tão-somente, na adaptação inteligente a uma dada realidade. A Constituição Jurídica logra converter-se, ela mesma, em força ativa, que assenta na natureza singular do presente (individuelle Beschaffenheit der Gegenwart). Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem.

Do trecho exposto acima podemos retirar outro conceito importantíssimo que pode nos conduzir a uma explicação mais convincente acerca dos motivos pelos quais muitas disposições constitucionais são olvidadas no momento de sua concreção, bem como subsídios para encontrarmos soluções a tal problemática.

A vontade de constituição nos parece ser o elemento diferencial para se ter uma Constituição Jurídica bastante diversa da Constituição Real. Ou seja, as disposições constitucionais, porquanto tenham a chamada pretensão de eficácia deveriam ser efetivadas. Todavia, ao analisar a argumentação de Hesse, entendemos que a Vontade de Constituição (Wille zur Verfassung) é que, em última análise, determina se certa norma constitucional será aplicada no plano fático.

Assim, prescindirá a aplicação plena das normas constitucionais, inapelavelmente, de uma comunhão ideológica entre os diversos agentes partícipes da vida constitucional de um país. Em nosso caso, de um difícil consenso ativo entre os representantes das três esferas do poder (legislativo, executivo e judiciário).

Relativamente aos fundamentos teóricos determinantes da Vontade de Constituição, Konrad Hesse (1991, p. 20) os explicita:

Essa vontade de Constituição origina-se de três vertentes diversas. Baseia-se na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme. Reside, igualmente, na compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso, necessita estar em constante processo de legitimação). Assenta-se também na consciência de que, ao contrário do que se dá com uma lei do pensamento, essa ordem não logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana. Essa ordem adquire e mantém sua vigência através de atos de vontade. Essa vontade tem conseqüência por que a vida do Estado, tal como a vida humana, não está abandonada à ação surda de forças aparentemente inelutáveis. Ao contrário, todos nós estamos permanentemente convocados a dar conformação à vida do Estado, assumindo e resolvendo as tarefas por ele convocadas. Não perceber esse aspecto da vida do Estado representaria um perigoso empobrecimento de nosso pensamento. Não abarcaríamos a totalidade desse fenômeno e sua integral e singular natureza. Essa natureza apresenta-se não apenas como problema decorrente dessas circunstâncias inelutáveis, mas também como problema de determinado ordenamento, isto é, como um problema normativo.

Destarte, a intensidade da força normativa de uma Constituição é diretamente proporcional ao grau de Vontade de Constituição experimentado por seus agentes. Decorre daí, em nosso sentir, que a baixa Vontade de Constituição entre nós sentida, reflexo de um estado democrático de direito ainda jovem e prematuro, determina a incapacidade de tornar plenos e efetivos meros anseios e desejos sociais que, em que pese estarem plasmados no texto de nossa Carta Política, não foram participados e construídos gradativamente pela coletividade, mas importados de um direito alienígena diverso de nossa realidade.

Sendo assim, à luz dos argumentos expostos ao longo do texto, consideramos imprescindível tanto para o desenvolvimento econômico-social, quanto para a manutenção de nossa segurança jurídica que pugnemos pela efetividade das normas constitucionais, porquanto possuam, indubitavelmente, sua força normativa e, consequentemente, pretensão de eficácia. Destarte, devemos diligenciar para que a nossa Constituição Jurídica seja absorvida pelo ideário cultural coletivo e venha a refletir os anseios e desejos que permeiam a Constituição Real, como único meio de vislumbrarmos um futuro de progresso e desenvolvimento consentâneos com a grandeza de nosso país.

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Sobre o autor
William Daniel Silveira Pfarrius

Graduado em Direito pela FURG (Universidade Federal do Rio Grande) em 2010. Servidor Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PFARRIUS, William Daniel Silveira. O conflito axiológico entre os cânones constitucionais da livre iniciativa e da busca do pleno emprego. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3422, 13 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23000. Acesso em: 19 nov. 2024.

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