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Vedação à dispensa discriminatória: análise da Súmula 443 do TST

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A Súmula 443 do TST criou hipótese de estabilidade para o empregado portador de vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Poderia tê-lo feito?

Resumo: Discute a Súmula n. 443 do TST à luz de princípios constitucionais e de normas infraconstitucionais sobre legalidade, ônus da prova e distribuição tripartite dos Poderes no Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Súmula – TST – direitos trabalhistas – ônus probatório – legalidade – garantias – estabilidade – doença grave – discriminação –preconceito – reintegração - indenização – contrato de trabalho – direito potestativo–Estado Democrático – processo legislativo.


Em setembro de 2012, o Tribunal Superior do Trabalho publicou a Súmula n. 443, que veda a dispensa discriminatória, nos seguintes termos:

“SÚMULA 443

DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. PRESUNÇÃO. EMPREGADO PORTADOR DE DOENÇA GRAVE. ESTIGMA OU PRECONCEITO. DIREITO À REINTEGRAÇÃO – Res. 185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012.

Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego.”

Com efeito, no Estado Democrático de Direito não há lugar para tratamento desigual e discriminação, ante o disposto nos artigos 3º, inciso IV, 5º, caput e7º, inciso XXX, todos da Constituição da República de 1988.Outrossim, a dignidade da pessoa humana é erigida à categoria de princípio fundamental do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inciso III, CR/88), impondo a observância da necessária estima que todas as pessoas merecem enquanto seres humanos.

O Judiciário, no afã de assegurar tais garantias constitucionais, acabou por violar outras normas, conforme se mostrará.

O contrato de trabalho por prazo indeterminadopode ser rescindido tanto pelo empregador quanto pelo empregado, imotivadamente e a qualquer tempo, desde que concedido o aviso prévio ou paga a indenização correspondente, nos termos do art. 487 e seguintes da CLT.

Depreende-se, daí que rescindir o contrato de trabalho é direito potestativo da parte. Porém, todo direito deve ser exercido dentro dos limites da razoabilidade.

O Código Civil determina que todo aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência,causar dano a outrem, comete ato ilícito (art. 186). De igual forma, pratica ato ilícitoaquele que age com abuso de direito, excedendo manifestamente os limites econômicos, sociais, ou impostos pela boa-fé ou pelos bons costumes (art. 187 do Código Civil). Em ambos os casos, o agente gerador do dano é compelido a indenizar a vítima, na exata medida do prejuízo moral ou material causado (art. 944 do Código Civil).

É clarividente que, em que pese a existência do direito potestativo à dispensa, o patrão que despede empregado por saber ser este portador de doença grave age com abuso de direito, ante a clara violação à dignidade humana, ao princípio da igualdade e da vedação à discriminação.

Sob a égide da legislação em vigor, a dispensa discriminatória em virtude da doença grave do empregado que suscite estigma ou preconceito dá ensejo à reparação civil.

Ocorre que a Súmula 443 do TST não versa sobre o pagamento de indenização nestes casos. Ao contrário, institui a invalidade da dispensa e a imediata reintegração do empregado, com todos os direitos inerentes, devendo o empregador pagar os salários compreendidos entre a dispensa e a reintegração, computando-se, para todos os efeitos legais, o período de afastamento, posto que é tempo de serviço.

Em outras palavras, a Súmula 443 criou hipótese de estabilidade para o empregado portador de vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Poderia tê-lo feito?

O art. 5º, inciso II da Constituição da República determina que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, consagrando o princípio da legalidade.

Nesta senda, o art. 7º, inciso I, da CR/88 garante aos trabalhadores a proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, a qual incumbirá fixação de indenização compensatória, dentre outros direitos.

Até o momento inexiste no ordenamento jurídico lei complementar garantido estabilidade ao empregado portador de vírus HIV ou outra doença grave. De onde se conclui quea Súmula 443 viola o princípio da legalidade ao criar, para o empregador, a obrigação de manter, à sua contrariedade, o contrato de trabalho por prazo indeterminado com o obreiro portador de doença grave.

E pior. Além de usurpar a função do legislador, o Judiciáriose valeu de fórmula aberta para criar obrigação negativa para o empregador.

Isso porque a pena de reintegração do empregado será aplicada ao empregador sempre que o magistrado do caso concreto entender ser a doença do obreiro causadora de estigma ou preconceito.  

O patrão passa a ser compelido a observar a estabilidade de empregados gravemente doentes, mas não sabe, de antemão, qual o rol das moléstias graves causadoras de estigma ou preconceito, nos termos da Súmula 443.

Sendo a reintegração uma penalidade aplicada ao empregador, não poderia o ato ilícito ficar à margem da interpretação casuística do magistrado. A Súmula viola, também, o direito do empregador conhecer previamente o ato passível de punição com a reintegração.

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Noutro giro, o tratamento processual trazido pelaSúmula n. 443também merece crítica.

Tanto o art. 818 da CLT quanto o art. 333 do Código de Processo Civil disciplinam que o ônus da prova incumbe a quem alega, sendo certo que ao autor compete provar o fato constitutivo de seu direito, cabendo ao réu, por sua vez, demonstrar fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor.

Inverte-se o ônus probatório nos casos expressamente previstos em lei. Além disso, vem ganhando força, na doutrina e na jurisprudência, o princípio da aptidão para a prova, segundo o qual o ônus probatório deve ser atribuído a quem detenha os meios para a produção da prova.

À luz das normas processuais vigentes e tratando-se de fato constitutivo do direito do autor, caberia ao empregado demonstrar que sua dispensa foi arbitrária, pois levada a cabo em virtude de doença grave geradora de preconceito.

Todavia, o que a Súmula 443 determina é que, sendo o obreiro portador do vírus HIV ou outra doença grave causadora de preconceito, presume-se discriminatória a despedida, impondo-se ao empregador a reintegração.

A Súmula inverte o ônus da prova de forma generalizada, sempre que o pedido contemplar reintegração de empregado gravemente doente. Contudo, não se trata de hipótese legal autorizadora de inversão do ônus probatório, nem de adequação ao princípio da aptidão para a prova.

Ainda que a presunção de discriminação trazida pela Súmula seja relativa, como o empregador poderia fazer prova em sentido contrário? Conseguiria provar, por exemplo, que desconhecia o estado de saúde do empregado? Ou que, a despeito da doença, não despediu por preconceito, mas apenas por não ter interesse na manutenção do pacto laboral?

Convém ressaltar que o Ministério do Trabalho e Emprego proíbeque os empregadores realizem exame de HIV em seus empregados, seja por ocasião de admissão, demissão, ou qualquer outro motivo relacionado ao vínculo empregatício (Portaria n. 1.246/2010 do MTE). Tal norma visa claramente à proteção do empregado contra a discriminação.

Nota-se uma dificuldade natural do empregador fazer a prova negativado fato.Assim, a despeito do empregador não ter meios de provar que não sabia da doença grave ou que não praticou dispensa discriminatória, será penalizado com a obrigação de reintegrar o obreiro, com todas as vantagens.

Salvo melhor juízo, a presunção de discriminação trazida pela Súmula 443 do TST fere o direito à ampla defesa (art. 5º, inciso LV da CR) e vai de encontro às regras processuais acerca da distribuição do ônus da prova.

Por tudo isso, conclui-se que, apesar do nobre escopode combate à dispensa discriminatória e da proteção à dignidade da pessoa humana, a criação da Súmula 443 trouxe consigo violação a direitos constitucionalmente previstos e outras arbitrariedades, merecendo críticas, pois, afinal, não se pode admitir que os fins justifiquem os meios.

Em que pese tenha virado lugar comum o Judiciário inovar no mundo jurídico com a criação de comandos gerais e abstratos de caráter imperativo por meio de Súmulas, não se pode compactuar com tal expediente, posto que contraria princípios basilares do Estado Democrático, mormente o princípio da reserva legal, burlando o processo legislativo bicameral, com suas audiências públicas, projetos,comissões, votações,emendas, requerimentos, pareceres e recursos que propiciam a real oitiva da sociedade, por suas diversas representações.

Somente a lei, em seu sentido mais estrito, cria mandamentos legítimos, com integral respaldo social, enquanto o comando sumulartem origem no restrito colegiado dos Tribunais que, a despeito de seu reconhecido saber jurídico, não representa as diversas correntes de pensamento, de necessidades e de interesses que compõe a sociedade, terminando por ferir, de forma evidente, o equilíbrio e o pacto de não intervenção em atribuições específicas dos outros Poderes, como bem recomendou o memorável Barão de Montesquieu.

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Sobre a autora
Maria Carla Baeta Vieira Lopes

Advogada do Escritório Sette Câmara Correa Bastos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Maria Carla Baeta Vieira. Vedação à dispensa discriminatória: análise da Súmula 443 do TST . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3436, 27 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23113. Acesso em: 18 abr. 2024.

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