Introdução
A Revolução Francesa possui um papel crucial para a compreensão das modernas relações entre os poderes Executivo e Legislativo. Os pioneiros constituintes de 1789 impuseram uma revolução do direito público francês, ao dividirem os poderes antes reunidos no rei mediante uma separação de órgãos e de funções (BIGOT 2002, p. 26). Com a formulação do princípio da separação de poderes, o poder de editar normas gerais e abstratas foi taxativamente recusado a qualquer outro poder que não fosse um órgão colegiado legislativo.
A separação de poderes, tal qual idealizada pela Assembleia Constituinte revolucionária, teve o objetivo principal de proibir o rei de elaborar leis e de participar da execução destas por meio de medidas gerais e impessoais, as quais eram vistas como um meio de o titular do poder executivo completar ou modificar a lei (VERPEAUX 1991, p. 15).Nesse ponto se revela inconfundível a influência que exerceram Montesquieu e Rousseau sobre os revolucionários franceses de 1789, sobre a qual este artigo pretende discorrer.
As influências de Montesquieu e Rousseau
O substrato ideológico que alimentou a ação revolucionária é fruto da leitura que os constituintes de 1789 fizeram de Montesquieu, deformada pela interpretação da obra deRousseau. Enquanto deste primeiro autor os revolucionários apreenderam o conceito de separação de poderes, Rousseau lhes ensinou que as leis somente podem emanar de um único poder, o soberano, que incorpora a vontade geral. Segundo VERPEAUX (1991, p. 29), “essa mescla acabou por fazer das teorias contidas em Espírito das Leis uma arma dirigida contra o rei: a separação de poderes serve sobretudo para enfraquecer a realeza e para prevenir a qualquer possibilidade de restauração do absolutismo”.
Ao enunciar pensamento semelhante, Carré de Malberg identificou nessa perigosa mistura mais ingredientes explosivos, cujo adequado exame necessitará de uma prévia digressão sobre as teorias de Montesquieu e Rousseau. A análise do substrato teórico engendrado por esses dois pensadores será, além disso, fundamental para melhor compreender o amálgama resultante da sucessão de ideias e circunstâncias políticas que desembocaram no nascimento do poder regulamentar, ao longo da Revolução Francesa.
Seguindo a linha exposta por Carré de MALBERG (1931, pp. 5-6), é possível notar que os revolucionários do verão de 1789 foram influenciados pela noção de Montesquieu da lei como regra geral,[1] a qual, em contraposição às regras individuais, abraçaria indistintamente a todos os cidadãos, de modo a devolver-lhes a igualdade subtraída pela vida em sociedade.[2] Ainda consoante o professor de Estrasburgo, a nota de imparcialidade contida na lei garantiria que os indivíduos soubessem de antemão qual o direito que lhes seria aplicado por um agente administrativo ou por um juiz, diante de um dado caso concreto.
De acordo com MONTESQUIEU (1834, pp. 263-264), a lei seria, em sua relação com a constituição, algo como uma força superior que garantiria a “liberdade política” dos cidadãos. Não é segredo que Montesquieu, como anota CASTRO (2005), encontrouna constituição da Inglaterra de seu tempo um “exemplo de um conjunto de regras vinculadas ao valor da liberdade”, tendo, a partir do modelo inglês, formulado a sua famosa teoria da separação dos poderes.Para o pensador francês, essa liberdade, longe de ser a permissão dada a cada qual para fazer o que bem entender, corresponderia à faculdade de realizar tudo o que as leis permitem, e de deixar de fazer aquilo que elas proíbem. Sobre esse ponto, CASTRO (2005) percebe em Montesquieu – embora este não tenha pressuposto uma noção abstrata do bem, entendido como universal – a presença de “uma moralidade distanciada de condicionantes circunstanciais, uma moralidade de orientação ética, como sendo própria da experiência da liberdade política”.[3]
Em lugar de um conceito abstrato do bem, CASTRO(2005) percebe que Montesquieu condicionou a garantia da liberdade política ao predomínio da virtude da “moderação”. Vale destacar que MONTESQUIEU (1834, pp. 243-244) era taxativo na afirmação de que tal liberdade política somente floresceria em uma “democracia regrada”, que hostilizasse com equivalente vigor tanto a “igualdade extrema” quanto a “desigualdade arbitrária”. Na visão desse autor, a igualdade extrema resultaria na abolição de quaisquer diferenças entre os homens, o que faria com que integrantes do povo pudessem ser alçados à condição de magistrados, acarretando a inevitável corrupção da administração dos negócios do Estado e o desperdício do tesouro público. O ideal para Montesquieu habitava na moderação. Ele a encontrou à perfeição no regime político inglês, como já visto: numa harmoniosa mistura constitucional entre monarquia, separação de poderes, legislativo bicameral, nobreza e eleições censitárias para representantes do povo.
Todavia, CASTRO (2005) nota que, em Montesquieu, mesmo a moderação era considerada insuficiente para prevenir prejuízos à liberdade. Daí a importância conferida pelo pensador francês às instituições, na medida em que afirmava ser impossível assegurar a liberdade se a lei não estabelecesse limites para a atuação dos detentores do poder. A “própria virtude precisava de limites”, escrevia MONTESQUIEU (1834, p. 264):
“A liberdade política somente se encontra nos governos moderados. Mas ela não está sempre nos estados moderados; ela apenas está quando não se abusa do poder: mas é uma experiência eterna que todo homem é levado a abusar dele; ele vai até onde ele encontra limites. Quem o diria! A própria virtude necessita de limites.” (MONTESQUIEU 1834, p. 264) [tradução livre]
CASTRO (2005) observa que a condição precípua imposta por Montesquieu para que a liberdade fosse efetiva em uma sociedade era a impossibilidade do “abuso de poder”. Assim, de acordo com Montesquieu, somente se evitaria o abuso de poder caso houvesse uma autolimitação institucional da autoridade; seria preciso que a lei dividisse os poderes entre diferentes instituições, de modo a que o poder lograsse conter o poder.[4] Nascia, então, uma teoria da separação de poderes caracterizada como uma solução institucional complexa e inovadora, que não pressupunha a supremacia do poder de legislar, como o fazia Locke.[5] Ao contrário deste, e ainda consoante Castro, Montesquieu entendia que a liberdade era protegida quando a “eficácia do poder legislativo, a do poder executivo e a do poder de julgar permanecem mutuamente condicionadas, a partir de possíveis entendimentos alternativos sobre os fins em vista dos quais o poder é exercido pelas diversas autoridades”.
Da aplicação da teoria da separação de poderes segundo idealizada por Montesquieu não decorreria a paralisia institucional do Estado, mas “uma peculiar dinâmica do processo político” – na definição de CASTRO (2005) –, ou “uma ação concertada impelida pelo necessário movimento das coisas” – nas palavras de MONTESQUIEU (1834, p. 268). Num tal regime político, consoante o pensador francês, seria inviável o uso instrumental do poder a serviço de um indivíduo ou grupo social. A liberdade política assegurada pelo regime legal deequilíbrio entre os diferentes poderes teria o efeito, portanto,de manter os sujeitos a salvo de desmandos dos administradores e dos juízes.[6]
Compreendida a teoria montesquiana, e retornando ao traçado delineado por Carré de Malberg, deve-se notarque, na opinião desse professor de Estrasburgo, o conceito de lei formulado pelos pioneiros constituintes franceses foi sensivelmente alargado, se comparado às lições de Montesquieu. Acrescentando doses da obra de Rousseau, os revolucionários entenderam correto vincular à ideia de lei um outro atributo além daquele da generalidade. Desse modo, para que uma regra geral fosse entendida como uma lei, ela deveria ter origem na vontade geral do povo, pois é nele que reside a soberania da nação. A sociedade idealizada por Rousseau pressupunha a existência de um contrato social cujas cláusulas seriam tacitamente admitidas e reconhecidas por todos, com o objetivo de:
“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um dos associados, unindo-se a todos, obedeça contudo apenas a si mesmo, e permaneça tão livre quanto antes. (ROUSSEAU, Contrat Social ou Principes de Droit Politique 1923, p. 243)” [tradução livre]
Cada um dos cidadãos deveria submeter sua pessoa e sua força à suprema direção da vontade geral, de forma a converter cada membro em uma parte indivisível de um todo, de um só corpo político. Essa associação de cidadãos produz um corpo moral e coletivo composto de tantos membros quantas vozes existam numa assembleia, de cuja unidade e identidade esse corpo retira vida e vontade. Um tal corpo foi chamado por ROUSSEAU (1923, p. 244) de república, conhecida pelos seus cidadãos pelo nome de Estado, quando passivo, e pela designação de soberano, quando se põe em atividade. Semelhante coletividade de cidadãos assim unidos é o que esse filósofo finalmente denominou povo:
“Assim como a natureza deu a cada homem um poder absoluto sobre todos os seus membros, o pacto social deu ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus; e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, carrega, como eu já disse, o nome de soberania. (ROUSSEAU, Contrat Social ou Principes de Droit Politique 1923, p. 253)” [tradução livre]
A manifestação de vontade desse povo-soberano corresponde à vontade geral, a única capaz de guiar as forças do Estado e de impor limites à liberdade civil. Essa vontade geral é externada sob a forma de lei. O desejo do soberano, entretanto, somente alcançaria a qualidade de lei – vontade geral – à medida que mirasse atingir o bem comum, que é o próprio fim institucional do Estado.CASTRO(2005) entende que, em Rousseau, todo governo legítimo deve expressar a clara consciência ética do bem comum, própria do indivíduo idealizadamente “puro”. Na vida em sociedade, continua Castro, “a expressão política dessa consciência do bem necessita corresponder à vontade do soberano, que Rousseau caracteriza como a vontade geral do povo”.
Apenas existiria lei, segundo ROUSSEAU (1923, pp. 250 e 258-259), se o povo deliberasse sobre todo o povo, ou seja, se a matéria sobre a qual estatui é geral como a vontade que a delibera. A lei deveria ser geral, de forma a considerar os sujeitos em sua coletividade, como um corpo, e suas ações enquanto abstratas. Jamais uma lei poderia tratar de um homem em sua condição de indivíduo, ou de sua ação particular. Tais matérias, ainda que decididas pelo soberano, não teriam a qualidade de lei, mas de decreto, e não seriam atos de soberania, porém de magistratura – ou seja, dos agentes do governo.
Nesse quadro, sendo a soberania o exercício da vontade geral, ela jamais poderia ser alienada, tanto quanto o soberano, identificado num ser coletivo, igualmente não poderia ser representado senão por si mesmo (ROUSSEAU 1923, pp. 250-251). Os deputados eleitos não poderiam ocupar, portanto, a posição de representantes do povo, restando-lhes apenas o papel de simples comissários, os quais nada poderiam decidir sem a ratificação direta da vontade geral do povo. Assim, qualquer lei com que o povo não tenha anuído expressamente seria nula. Mergulhado na ideia da impossibilidade de representação da soberania, Rousseau criticou duramente, em passagem que ficou famosa, o modelo político inglês:
“O povo inglês pensa ser livre, e se engana profundamente; ele apenas o é durante a eleição dos membros do parlamento: tão logo eles são eleitos, o povo volta a ser escravo, a ser nada. Nos curtos momentos de sua liberdade, o uso que o povo faz dela leva a que mereça perdê-la. (ROUSSEAU 1923, p. 302)” [tradução livre]
Além de indelegável, a soberania em Rousseau seria também indivisível, pois uma vontade parcial representaria a completa ausência da vontade geral. Sobre esse ponto, CASTRO (2005) alerta que Rousseau não aceitava qualquer construção institucional complexa que permitisse uma distribuição de poderes entre diferentes órgãos, a exemplo do que defendia Montesquieu. Para o filósofo francês, ainda segundo Castro, o exercício da autoridade necessitava ser uno, a fim de que expressasse a consciência ética do bem comum. Não havia para Rousseau, portanto, margem para a presença de interesses privados, nem de associações parciais.
Isso não significava, todavia, que esse autor repudiasse a divisão dos produtos da soberania em categorias diferentes. Nesse sentido, ROUSSEAU (1923, p. 273) distinguia na ação soberana duas causas concorrentes para sua produção: uma causa moral, a vontade que determina o ato; e outra física, sendo a força que a executa. Esta corresponderia ao poder Executivo, e aquela ao Legislativo. Ainda que este fosse o único soberano, ele não se bastaria:
“O poder legislativo, que é o soberano, precisa então de um poder que execute, ou seja, que reduza a lei a atos particulares. Este segundo poder deve ser estabelecido de maneira que execute somente a lei, e nada além da lei. Aqui entra a instituição do governo. (ROUSSEAU 1853, p. 64)” [tradução livre]
ROUSSEAU (1923, p. 273) entendia o governo como um corpo intermediário que serve à comunicação entre o Estado e seu soberano, “que age no seio da pessoa pública da mesma forma como no homem se opera a união entre corpo e alma. Cabe ao governo, a quem esse autor também chamava “suprema administração”, o exercício legítimo do poder Executivo. É este poder que recebe do soberano as ordens que transmite aos indivíduos, de modo a manter a liberdade tanto civil como política. O governo participa da vontade geral que o constitui, dado que é parte integrante do corpo político, ainda que com ele não se confunda. Nada obstante, ele próprio constitui-se em corpo dotado de vontade própria. E embora nem sempre essas duas vontades – a geral e do governo – coincidam, “é do efeito combinado desse concurso e desse conflito que resulta o funcionamento de toda a máquina”(ROUSSEAU 1853, p. 65).
Ao mesmo tempo em que ROUSSEAU (1923, pp. 273 e 275) pregava a manutenção de um equilíbrio entre as produções do governo e do povo-soberano, esse filósofo não escondia quem verdadeiramente deveria dar as cartas no jogo de poder da sociedade. Ainda que o governo não se confundisse com o Estado, enquanto este poderia existir por si mesmo, aquele somente ganharia vida por meio do soberano. Isso significava que a vontade do governo não deveria ser outra senão a própria vontade geral, a lei, o que deixava evidente a subordinação do poder Executivo ao Legislativo em Rousseau.
Seria o próprio povo-soberano que estabeleceria, mediante uma lei, a forma de seu governo, ou seja, a maneira como a estrutura administrativa do Estado daria cumprimento às leis. Em seguida, esse mesmo povo escolheria os líderes que comandariam o poder Executivo, que, ao contrário do Legislativo, pode e deve ser representado. Esse ato de nomeação não seria então uma lei, visto seu caráter particular, mas apenas um ato de cumprimento à lei que estabeleceu a forma de governo. Assim se daria a conversão da soberania em democracia, na medida em que os cidadãos, tornados magistrados, reduzem os atos gerais a atos particulares, e descem a lei à sua execução (ROUSSEAU 1923, p. 305).
Diferentemente de Montesquieu, a doutrina de Rousseau fez com que o conceito de lei não mais se limitasse a garantir ao cidadão a liberdade política proporcionada pelo regime da legalidade. Mais que isso,esse pensador franco-suíço pretendeu que o soberano, identificado exclusivamente no povo, “interviesse para editar, a título de vontade e sob a forma de regras gerais, todas as prescrições que comandarão a atividade das autoridades subalternas, colocadas como prepostos no governo, na administração e na justiça” (MALBERG 1931, p. 6).
A união política defendida por Rousseau como pressuposto da existência da vontade geral não seria, de acordo com CASTRO(2005), fundada na psicologia do medo, decorrente do uso da violência. Entretanto, segundo esse autor, Rousseau não faz uso da fórmula empregada por Montesquieu – e também Locke –, a qual combina a psicologia da confiança com a divisão institucional do poder como elemento viabilizador da adoção de fundamentos éticos para a vida política e social. Em verdade, Rousseau introduziu-se no que Castro chamou de “terreno alternativo da ideologia”, ao pregar a necessidade de instituição de uma “religião civil” como elemento básico de coesão social.[7] O mesmo autor nota em Rousseau, nesse ponto, “uma conotação nitidamente totalitária, incompatível com a presença do pluralismo moral e político e com a divisão institucional do poder” defendida por Montesquieu.
Prova autoevidente do fascínio exercido pela fusão entre Montesquieu e Rousseau no ideário da Revolução Francesa é a dicção dada aos arts. 6º e 16 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, votada em 26 de agosto de 1789. Mediante o primeiro dispositivo citado foram imortalizadas no direito francês as noções de lei como expressão da vontade geral da nação, e seu efeito geral e impessoal, necessariamente extensivo a todos os cidadãos. Do último artigo mencionado, fica evidente a aderência à teoria da separação de poderes de Montesquieu, posta como condição de existência da própria constituição:[8]
“Art. 6º A Lei é expressão da vontade geral. Todos os Cidadãos têm o direito de concorrer pessoalmente, ou por meio de seus representantes, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir. Todos os Cidadãos sendo iguais a seus olhos são igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, de acordo com suas capacidades e sem outra distinção senão suas virtudes e seus talentos. [tradução livre]
(...)
Art. 16. Toda Sociedade em que a garantia dos Direitos não é assegurada, nem a separação de Poderes é determinada, não possui Constituição alguma.” [tradução livre]
Conclusão
É portanto a partir de 1789, à sombra do culto à lei, entendida nos termos acima discorridos, que começa a ganhar vida um germe que desencadeará paulatinamente o desenvolvimento de um poder regulamentar atribuído ao Executivo, em flagrante disputa com o poder de fazer a lei. Desde o momento em que esta foi elevada pelos revolucionários ao patamar de fonte única do direito, a tarefa de executar a lei passou a despertar crescente interesse não só nos jurista, mas principalmente nos estudiosos da política e das relações institucionais entre os poderes Legislativo e Executivo.
De uma maneira ou de outra, todos se postaram diante da pergunta que Carré de MALBERG (1920, p. 550) soube bem expressar: “como pôde o Executivo auferir a capacidade de editar regras que parecem reunir todos os caracteres e produzir todos os efeitos da lei?”. Esse é uma pergunta que também ecoa na realidade jurídica brasileira, dada a vasta amplitude que a atuação da administração pública federal desempenha na regulamentação de diversas dimensões da vida humana. Não obstante a evidente importância de uma apurada compreensão das relações entre lei e regulamento para a democracia brasileira, lamenta-se que esse tema não tenha conseguido prender a atenção da doutrina nacional.