3. A necessidade do controle de constitucionalidade difuso na perspectiva de Ronald Dworkin: O juiz “Hércules” em defesa de uma comunidade fundada em princípios .
A legitimidade do controle de constitucionalidade judicial é amplamente defendida por Ronald Dworkin, não apenas como instrumento permitido pelo legislador constituinte, mas como mecanismo para se alcançar o real Estado Democrático de Direito.
É conferido aos juízes, na ótica de Dworkin, o papel de aperfeiçoar o regime democrático, por meio de decisões devidamente fundamentadas e pautadas em princípios morais.
A decisão judicial vai além da lei, esta resultante de um processo majoritário sem necessidade de conteúdo, para alcançar valores de superioridade moral e justiça. Ao retratar a filosofia de Dworkin, Conrado Hubner Mendes ressalta que o autor “combinaria procedimento e substância, forma e conteúdo” (MENDES, 2008, p. 34).
Ou seja, ao possibilitar a criação de uma decisão judicial pautada em princípios ter-se-ia algo mais em relação à lei, em que teoricamente se privilegia à forma ao invés do conteúdo, que seria o aspecto moral defendido e almejado por Dworkin.
Em sua obra “O Império do Direito”, a decisão judicial é resultante da melhor opção possível para o caso concreto à luz de uma interpretação construtiva da história, da tradição, dos precedentes e da moralidade política (MENDES, 2008, p.35). Ressalta a aplicação dos direitos inseridos em uma comunidade de princípios .
A filosofia de Dworkin destaca o papel do magistrado comparando-o à figura mitológica de Hércules, o semideus de força comum. Assim, ao trazer a responsabilidade de um “semideus” para os juízes, pretende o autor conferir às decisões judiciais aspectos de certeza, segurança, moralidade, justiça que necessariamente são assegurados por meio das “respostas certas”, mesmos nos casos considerados de difícil interpretação diante de conflito aparente de regras e princípios.
Senão vejamos trechos do livro de Dworkin a respeito da figura do juiz Hércules e seu papel:
Podemos, portanto, examinar de que modo um juiz filósofo poderia desenvolver, nos casos apropriados, teorias sobre aquilo que a intenção legislativa e os princípios jurídicos requerem. Descobriremos que ele formula essas teorias da mesma maneira que um árbitro filósofo construiria as características de um jogo. Para esse fim, eu inventei um jurista de capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas, a quem chamarei de Hércules. Eu suponho que Hércules seja juiz de alguma jurisdição norte-americana representativa. Considero que ele aceita as principais regras não controversas que constituem e regem o direito em sua jurisdição. Em outras palavra, ele aceita que as leis têm o poder geral de criar e extinguir direitos jurídicos, e que os juízes têm o dever geral de seguir as decisões anteriores de seu tribunal ou dos tribunais superiores cujo fundamento racional (rationale), como dizem os juristas, aplica-se ao caso em juízo.(DWORKIN, 2002, p. 165).
É a partir do comprometimento do juiz diante das questões submetidas à sua apreciação que Dworkin concebe sua teoria constitucional, na qual o poder judiciário, representado por juízes tipo “Hércules”, é capaz de desenvolver uma teoria política completa apta a justificar a Constituição e, ao mesmo tempo, fundamentá-la por meio de “um conjunto complexo de princípios e políticas que justifiquem o sistema de governo”(DWORKIN, 2002, p. 167).
Para Dworkin cabe ao magistrado, ao se deparar com questões difíceis , em que a letra da lei não se subsume adequadamente à hipótese fática, questionar-se filosoficamente para decidir corretamente. Em suas palavras:
Hércules deve começar por perguntar-se por que uma lei tem o poder de alterar direitos jurídicos. Ele encontrará a resposta em sua teoria constitucional: esta pode determinar, por exemplo, que uma assembléia legislativa democraticamente eleita é o órgão apropriado para a tomada de decisões coletivas sobre a conduta que se pode considerar criminosa. Mas essa mesma teoria imporá responsabilidades ao poder legislativo: irá impor não apenas restrições que refletem os direitos individuais, mas também um dever geral de lutar por metas coletivas que definam o bem-estar público. Este fato propicia a Hércules um bom teste neste caso difícil. Ele poderia perguntar-se qual a interpretação que vincula de modo mais satisfatório a linguagem utilizada pelo poder legislativo a suas responsabilidades institucionais como juiz. (DWORKIN, 2002, p. 168-169)
Importante compreender que a interpretação realizada pelos juízes, da intenção da lei, na concepção de Dworkin, trata-se, em verdade, de possibilidades acerca de direitos políticos .
Ou seja, cabe ao órgão julgador compreender a intenção legislativa em conformidade com o momento de sua criação e os termos como fora concebida, a escolha política adotada, delimitando o processo interpretativo.
A decisão do magistrado é inserida neste contexto, mas não subordinada ao mesmo, como fotocópia da decisão legislativa, pois deve ser pautada em princípios norteadores do Estado Democrático de Direito e ao, mesmo tempo, na idéia de integração do direito.
É neste sentido que se faz imprescindível perceber que o processo decisório em sede judicial não se trata de um processo político, fundamentando em argumentos de política, mas em um procedimento pautado em juízos de valores presentes no ordenamento jurídico, como equidade, moralidade, justiça, liberdade. Ou seja, fundamenta seu decidir no contexto de uma comunidade de princípios e é a partir deste juízo que se alcança a decisão mais correta.
Além da força dos princípios para embasamento das decisões judiciais diante do caso concreto, deve o juiz considerar os precedentes judiciais existentes, a fim de respeitar o princípio da equidade e a idéia de integralidade do direito.
Dworkin conjuga as idéias de comunidade de princípios e integralidade do direito para o modelo de juiz ideal, em que o juiz Hércules é capaz de atingir a melhor decisão, por meio da adoção de uma estratégia diferente da subsunção direta da lei ao fato . Transcreve o autor:
O leitor entenderá agora por que chamei nosso juiz de Hércules. Ele deve construir um esquema de princípios abstratos e concretos que forneça uma justificação coerente a todos os precedentes de direito costumeiro e, na medida em que estes devem ser justificados por princípios, também um esquema que justifique as disposições constitucionais e legislativas. (DWORKIN, 2002, p. 182)
Interessante se mostra trecho do texto de Guilherme Scotti acerca dos ensinamentos de Dworkin, in verbis:
O argumento de Dworkin da única resposta correta consiste na afirmação de que mesmo nesses casos considerados pelo positivismo como hard cases, onde não há uma regra estabelecida dispondo claramente sobre o caso, uma das partes pode mesmo assim ter um direito preestabelecido de ter sua pretensão assegurada.
Cabe ao juiz descobrir quais são esses direitos, mas isso não poderá ser obtido com auxílio de algum método ou procedimento mecanicista. Dworkin deixa claro que se trata primeiramente de uma postura a ser adotada pelo aplicador diante da situação concreta e com base nos princípios jurídicos, entendidos em sua integridade, e não numa garantia metodológica, o que significa que discordâncias razoáveis sobre qual a resposta correta para cada caso exigida pelo Direito podem ocorrer entre os juízes, advogados, cidadãos, etc. (SCOTTI, 2009, p.4-5)
Cabe ressaltar que o consenso para obtenção da solução mais acertada diante de uma controvérsia imposta ao Poder Judiciário não é elemento da teoria de Dworkin, que privilegia um processo de tomada de decisão pautado no diálogo e na exposição de opiniões pelos diversos setores da sociedade, a fim de se obter a decisão mais correta (diferente de decisão unânime).
É o que afirma o autor, citado por Guilherme Scotti, em sua obra “Levando os diretos à sério”, in verbis:
Essa teoria não defende que exista qualquer procedimento mecânico que demonstre quais são os direitos das partes nos casos difíceis. Pelo contrário, o argumento supõe que juristas e juízes razoáveis irão muitas vezes divergir sobre os direitos, assim como cidadãos e políticos divergem sobre questões políticas. [Essa discussão] descreve as questões que juízes e juristas devem colocar para si próprios, mas isso não garante que todos eles darão a mesma resposta a essas questões. (SCOTTI, 2009, p.16)
Imperioso, portanto, perceber que o juiz Hércules de Dworkin deve considerar que se encontra inserido em uma comunidade de princípios, sem deixar de mão a integridade do direito, interpretando às leis como parte de um conjunto de valores coerentes entre si .
Por outro lado, para se obter um acervo de leis coerentes é preciso que o Poder Legislativo no processo de tomada de decisões considere sua escolha política atual sem renegar os princípios vertentes da sociedade para o qual legisla.
É diante da teoria de Dworkin que muitos operadores do direito afirmam ser possível ao judiciário ampliar os efeitos das decisões de um caso concreto, em sede de controle de constitucionalidade difuso, para casos passados , presentes e futuros, aproveitando os motivos determinantes da lide exposta a apreciação do STF, na medida em que as razões consideradas em um precedente primam tanto pela obediência aos princípios constitucionais implícitos e explícitos como pela idéia de integralidade do sistema (lei e direito).
Trata-se da leitura principiológica do texto constitucional, em que se destaca o papel do Poder Judiciário , podendo, entretanto, ser, também, exercido por outro poder, pois o que importa é o caráter substantivo da decisão e não a autoridade que a emana.
Assim, o que não se pode perder de vista são os caracteres principiológicos da decisão, subordinadas ao império do direito e dos princípios, considerados ambos partes integrantes do regime democrático.
Para atingir os preceitos perpetrados por Dworkin, é preciso um órgão judiciário ativo, capaz de abstrair-se de considerações de troca-troca, presentes no processo legislativo ordinário, considerando, ainda, a preservação do núcleo principiológico inatingível.
O papel conferido ao Poder Judiciário por Dworkin de preservação, integração e criação de direitos não tende a comprometer o regime democrático , por não ser os representantes do Judiciário eleitos pelo povo, mas, ao contrário, fortalecem a democracia, na medida em que juízes não são partidários, não representam interesses de um grupo, sendo responsáveis por tomadas de decisões hábeis a atingir a comunidade per si, e não parte dela.
4. A ampliação dos limites subjetivos das decisões proferidas pelo STF em sede de recurso extraordinário. Supressão do papel do Senado Federal: Reclamação nº. 4335-AC.
Ao proferir seu voto na Reclamação 4335-AC, pretendeu Gilmar Ferreira Mendes adotar imediata eficácia às decisões proferidas pela Suprema Corte em sede de controle de constitucionalidade difuso.
Ao se pretender conferir efeito vinculante imediato às decisões proferidas em controle concreto, concebendo o ato de suspensão do Senado Federal como não necessário, sendo mero requisito formal de complementação de publicidade, buscou-se, conforme esse entendimento, preservar a autoridade das decisões do STF, além da preservação de princípios da igualdade e economicidade.
Ora, em prol do efeito vinculante erga omnes se tem a relevância de que todos que se encontrem com causa de pedir idêntica, em uma mesma situação fática, têm direito ao mesmo julgamento, evitando-se ao se ampliar os limites subjetivos do julgado inconsistência de resultados, eficiência e economia processual, na medida em que se rescindir as demandas múltiplas.
Importante registrar a opinião do Ministro Gilmar Ferreira Mendes na Reclamação n.º 4335-AC, transcrevendo trechos de seu voto:
(...) Se o Supremo Tribunal pode, em ação direta de inconstitucionalidade, suspender, liminarmente, a eficácia de uma lei, até mesmo de uma Emenda Constitucional, por que haveria a declaração de inconstitucionalidade, proferida no controle incidental, valer tão-somente para as partes?
A única resposta plausível nos leva a crer que o instituto da suspensão pelo Senado assenta-se hoje em razão de índole exclusivamente histórica.
Deve-se observar, outrossim, que o instituto da suspensão da execução da lei pelo Senado mostra-se inadequado para assegurar eficácia geral ou efeito vinculante às decisões do Supremo Tribunal que não declaram a inconstitucionalidade de uma lei, limitando-se a fixar a orientação constitucionalmente adequada ou correta.
Isto se verifica quando o Supremo Tribunal afirma que dada disposição há de ser interpretada desta ou daquela forma, superando, assim, entendimento adotado pelos tribunais ordinários ou pela própria Administração. A decisão do Supremo Tribunal não tem efeito vinculante, valendo nos estritos limites da relação processual subjetiva. Como não se cuida de declaração de inconstitucionalidade de lei, não há que se cogitar aqui de qualquer intervenção do Senado, restando o tema aberto para inúmeras controvérsias.
(...)
Todas essas razões demonstram o novo significado do instituto de suspensão de execução pelo Senado no contexto normativo da Constituição de 1988.
(...)
Todas essas reflexões e práticas parecem recomendar uma releitura do papel do Senado no processo de controle de constitucionalidade.
Os argumentos esposados pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes e Eros Grau, na defesa de ampliação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade, proferida em recurso extraordinário, prendem-se ao aspecto de que o constituinte brasileiro estabeleceu a primazia do controle concentrado de leis, pretendendo que a análise das matérias constitucionais possuísse efeitos amplos, além da defesa do princípio constitucional da economia processual.
Quanto à defesa da economia processual, fundamenta o Min. Eros Grau, em seu Voto-vista proferido na Reclamação nº 4335-AC, que “o crescimento do número de litígios e a multiplicação de processos idênticos no âmbito do sistema de controle difuso são expressivos da precariedade da paz construída no interior da sociedade civil.”
Percebe-se que o Supremo Tribunal Federal sinalizou com os votos de Gilmar Mendes e Eros grau, no sentido de suprimir a necessidade do ato de suspensão da Lei ou ato tido como inconstitucional, em controle de constitucionalidade difuso, para que sua decisão tenha o condão de validade e eficácia para toda sociedade.
Em artigo doutrinário, Gilmar Ferreira Mendes defende a existência de mutação constitucional quanto à leitura do art.52, inciso X, da CF/88, in verbis:
Vê-se, assim, que a Constituição de 1988 modificou de forma ampla o sistema de controle de constitucionalidade, sendo inevitáveis as reinterpretações ou releituras dos institutos vinculados ao controle incidental de inconstitucionalidade, especialmente a exigência da maioria absoluta para a declaração de inconstitucionalidade e da suspensão de execução da lei pelo Senado Federal.
O Supremo Tribunal Federal percebeu que não poderia deixar de atribuir significado jurídico à declaração de inconstitucionalidade proferida em sede de controle incidental, ficando o órgão fracionário de outras Cortes exonerado do dever de submeter a declaração de inconstitucionalidade ao plenário ou ao órgão, na forma do art. 97 da Constituição.
Não há dúvida de que o Tribunal, nessa hipótese, acabou por reconhecer efeito jurídico transcendente à sua decisão. Embora na fundamentação desse entendimento fale-se em quebra da presunção de constitucionalidade, é certo que, em verdade, a orientação do Supremo acabou por conferir à sua decisão algo assemelhado a um efeito vinculante, independente da intervenção do Senado Federal. Esse entendimento está hoje consagrado na própria legislação processual civil (CPC, art. 481, parágrafo único, parte final, na redação da Lei 9.756, de 17.12.1998).
(...)
Como se vê, as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle incidental acabam por ter eficácia que transcende o âmbito da decisão, o que indica que a própria Corte vem fazendo uma releitura do texto consoante do art. 52, X, da Constituição de 1934 (art. 91, IV) e repetida nos textos de 1946 (art. 64) e de 1967/69 (art. 42, VIII).
(...)
De qualquer sorte, a natureza idêntica do controle de constitucionalidade quanto às suas finalidades e aos procedimentos comuns dominantes para os modelos difuso e concentrado, não mais parece legitimara distinção quanto aos efeitos das decisões proferidas no controle direto e no controle incidental.
Somente essa nova compreensão parece apta a explicar o fato de o Tribunal ter passado a reconhecer efeitos gerais à decisão proferida em sede de controle incidental, independentemente da intervenção do Senado. O mesmo há de se dizer das várias decisões legislativas que reconhecem “efeitos transcendentes” às decisões do STF tomadas em sede de controle difuso. (MENDES, 2004, p. 163-164)
Em entendimento contrário, os Ministros Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa defendem que a resolução do Senado suspendendo a execução da lei declarada inconstitucional pelo Supremo é indispensável.
Para ditos ministros, deve-se manter a leitura dada ao artigo 52, inciso X, nos moldes de sua concepção, ou seja, o ato de suspensão da execução da lei declarada inconstitucional pelo Supremo é de competência exclusiva do Senado Federal e imprescindível para dotar de eficácia vinculante e erga omnes à decisão de inconstitucionalidade proferida no caso concreto.
Na mesma linha dos Ministros Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa destaca-se a opinião de Sérgio Sérvulo da Cunha, in verbis:
(...) o fato de que a decisão tenha sido proferida pelo Supremo Tribunal Federal não altera a eficácia subjetiva da sentença, segundo a lei processual de regência.
Atribuir eficácia erga omnes a essa decisão, equivaleria a apagar da Constituição a garantia inscrita em seu art. 5.º, incs. LIV, LV e XXXV. Isto é impossível sem ruptura da lei magna. A decisão proferida em recurso extraordinário, dessarte, passaria a ter dupla eficácia: a primeira, sua eficácia própria e original, de modificando a sentença, alcançar a esfera de direito das partes, conforme a lei de regência; a segunda, a eficácia extraprocessual geral, superposta à primeira.
Conseqüência de emenda constitucional que conferisse eficácia erga omnes a decisões do Supremo no julgamento de recurso extraordinário seria derrogação tácita do inciso X do art. 52 da Constituição.
Observa-se que os argumentos apresentados pelos defensores da eficácia geral, independente de ato do Senado Federal, pautar-se-iam em princípios da igualdade e da economia processual.