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Prodigalidade e o fim do patrimonialismo civil na perspectiva neoconstitucionalista

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3. AS PROBLEMÁTICAS QUE AINDAM PERDURAM E A QUESTÃO DA PRODIGALIDADE

Apesar de todo o aparato constitucional e até mesmo civil para a proteção dos direitos fundamentais e direitos da personalidade, para a observância dos princípios da eticidade e socialidade, vemos ainda alguns casos incomuns que perduram até hoje no nosso Ordenamento Jurídico, causando dúvidas sobre a edição das normas atuais no que tange a questão patrimonialista. Por algumas vezes podemos notar o próprio Estado fazendo intervenção na vida dos particulares fundamentado em dispositivos legais.

Um caso notável de intervenção direta do judiciário no patrimônio individual das pessoas diz respeito à situação dos pródigos. Do latim, esta denominação vem de prodigus, gastador, esbanjador. Nas palavras de Cristiano Chaves (2011, p. 305), o pródigo: “é a pessoa que, desordenadamente, gasta os seus haveres, dilapidando o seu patrimônio, de modo a comprometer a sua subsistência.” Geralmente estes gastos desenfreados são devidos a vícios ou até mesmo o puro consumismo. Flávio Tartuce (2011, p. 78) salienta ainda que pródigos “são aqueles que dissipam de forma desordenada e desregrada os seus bens ou seu patrimônio, realizando gastos desnecessários e excessivos, sendo exemplo típico a pessoa viciada em jogatinas.” Não diferente, para Washington de Barros Monteiro (2000, p. 64), “pródigo é aquele que desordenadamente dissipa seus haveres, reduzindo-se à miséria.”.

Os pródigos, como bem lembra Paulo Nader (2008, p. 156), não podem ser confundidos com aquelas pessoas que não possuem habilidade para o comércio e, por conta disso, acabam fazendo maus negócios e tendo prejuízos tamanhos que os façam perder o patrimônio. Enfatiza ainda que a distinção é muito difícil de se fazer na maioria das vezes.

No Ordenamento Jurídico brasileiro, apesar de o mesmo não definir perfeitamente o que seja um pródigo, deixando isso a cargo da doutrina, o Código Civil de 2002, assim como o de 1916 o consideram como uma pessoa relativamente incapaz, podendo este ser interditado por decisão judicial. Esta interdição reflete um viés impositivo do Estado sobre o indivíduo, pois este fica totalmente impedido de realizar seus próprios negócios jurídicos sem a presença de um curador, nomeado pelo juiz. Evidente que, apesar de isto ser muito questionado, a prodigalidade é uma incapacidade restrita, tendo um caráter exclusivamente patrimonial. Segundo o art. 1.792 do Código Civil de 2002, “a interdição do pródigo somente o privará de, sem curador, emprestar, transigir, dar quitação, alienar, hipotecar, demandar ou ser demandado, e praticar, em geral, atos que não sejam de mera administração.” Sendo assim, mesmo que não possa gastar nada do seu patrimônio que não seja autorizado por curador, o pródigo não será restrito de praticar os demais atos da vida civil.

O dispositivo legal toma por base científica fato de a prodigalidade ser, por muitos, considerada uma patologia. Na lição de Nina Rodrigues (apud Clóvis Beviláqua, 2007, p. 127): “A psiquiatria ensina que há certas síndromes degenerativas que se manifestam pelos gastos imoderados, pelo desperdício da fazenda. É o que se denomina oniomania. Estas síndromes degenerativas andam, geralmente, associados a dois outros: a mania de jogo e a dipsomania ou vontade impulsiva para beber.”

Maria Helena Diniz, citando Roberto Senise Lisboa (2008, p. 169) acrescenta: “[...] a prodigalidade pode dar-se por: a) oniomania, perturbação mental que provoca o portador a adquiri descontroladamente tudo o que tiver vontade; b) cibomania, psicose conducente à dilapidação patrimonial em jogos de azar; c) imoralidade que leva a gasto excessivo para satisfação de impulsos sexuais.”

O instituto da prodigalidade, como bem explana o notável jurista Clóvis Beviláqua, nasce do Direito Romano. Inicialmente a interdição apenas incidia sobre os bens que o individuo herdava de sua família. Estes eram considerados propriedade comum da família, não sendo permitido que o herdeiro se desfizesse deles ao seu bel prazer. Posteriormente, o alcance da prodigalidade foi estendido. Assim, a garantia não se limitava apenas aos bens da família, mas também aos bens adquiridos pela própria pessoa. Desta maneira, a interdição não seria mais somente de garantia da família, mas também como garantia ao próprio individuo, adquirindo assim um caráter de preservação da própria dignidade humana. (BEVILÁQUA, 2007, p. 127).

Todavia, com a Revolução Francesa e a ascensão da burguesia ao poder, a interdição por prodigalidade desapareceu do Ordenamento Jurídico francês, segundo Caio Mario da Silva Pereira (2010, p. 244) sob alegação de que “o empobrecimento do individuo não atinge a riqueza coletiva, de vez que os seus gastos põem em giro haveres que não saem da circulação social, além do aspecto odioso da pretensão quando partida da mulher e dos filhos”. Outrossim, o Código Napoleônico adotou outras medidas quanto aos pródigos, determinando no seu art. 512, a nomeação de um “conselho judicial” que deixasse-os proibidos de demandar, transigir, emprestar, alienar, gravar bens, etc. sem a presença da assistência que lhes for nomeada por um tribunal.


4. AS POLÊMICAS TRAVADAS EM TORNO DA PRODIGALIDADE

Inegável é que existe ainda nos dias atuais ampla discussão sobre o instituto da prodigalidade. Não seria muito destacar, por exemplo, os pontos de vista de alguns autores, como Cristiano Chaves (2011, p. 306), que não admitem que a prodigalidade seja uma causa incapacitante. Para ele seria um direito do indivíduo escolher como gastar o seu dinheiro e que a intervenção judicial estaria ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que priva uma pessoa de uma liberdade, além do que o assunto não entra apenas no mérito jurídico para este tratá-lo com tanta propriedade. Em suas próprias palavras:

A prodigalidade, porém, é um fenômeno complexo, exigindo um diálogo entre diferentes searas, como o Direito, a Psiquiatria, a Psicanálise e a Economia. É claro que a prodigalidade não pode estar ligada, tão somente, ao volume de gastos de alguém. Até porque é possível gastar muito sem prejudicar a própria sobrevivência. Ao nosso viso, a prodigalidade não constitui, tecnicamente causa incapacitante. É que, lastreado na dignidade humana, não vemos lógica em interditar alguém (e, por conseguinte, privá-lo da capacidade jurídica geral) apenas porque despende o seu patrimônio desordenadamente. Trata-se de absurda intervenção do Estado.

Da mesma forma pensa Jussara Maria Leal de Meirelles (apud Cristiano Chaves, 2011, p. 306), ao fazer a seguinte provocação:

Será que essa pessoa (o pródigo) não é feliz assim? Será que não passou a vida inteira aguardando por esse momento, de poder gastar tudo o que economizou? Será que é possível depreender uma falta de discernimento somente porque o seu olhar para a vida não tem o viés econômico que o sistema prende como seguro?

Pablo Stolze (2012, p. 147), por sua vez, fica no meio termo, concordando com a interdição, porém fazendo uma importante contestação em relação à ampliação do rol de legitimados no Código vigente. Para ele apenas o cônjuge e os herdeiros necessários estariam formalmente aptos a impetrar a ação. O maior número de pessoas legitimadas implica em mais pessoas interessadas no patrimônio do possível pródigo. Também questiona a autorização dada ao Ministério Público, visto que este não teria interesse em resguardar o patrimônio do particular.

O Novo Código, incorretamente ao nosso ver, afastou a determinação do art. 460 do CC-16, que atribuía legitimidade ativa para a interdição do pródigo apenas ao cônjuge, ascendente ou descendente. Poderia ter melhorado a dicção legal, incluindo o convivente, mas não admitir, como fez, que qualquer parente ou mesmo o Ministério Público (que não tem interesse em resguardar o patrimônio particular) possa pleitear a curatela por prodigalidade. O que justifica essa interdição é a preservação patrimonial da fazenda do interdito, e apenas os parentes sucessíveis, especialmente os herdeiros necessários, têm tal interesse.

Diante do exposto, surge o seguinte questionamento: este dispositivo legal contido no art. 4ª, IV, da atual legislação civil, que rompe friamente com o patrimonialismo outrora vigente, não estaria também rompendo com os preceitos constitucionais?

A Constituição de 1988, no seu art. 5º, X, fala que a honra e a vida privada das pessoas são invioláveis ao passo que o inciso XXII garante o direito de propriedade, além do que, no art. 1º, III, fica estabelecida como fundamento da república a dignidade da pessoa humana. Ademais, o Código Civil, no seu art. 21, expressa ser inviolável a vida privada. Todavia, em se falando dos pródigos, estes princípios entram em conflito com outros.

Como se sabe, o Novo Código Civil, em consonância com a Constituição da República, perdeu grande parte do seu caráter patrimonialista, sendo este fundado sobre os princípios da eticidade, operabilidade e socialidade. Ao falar deste último vemos que ele se reflete inteiramente no art. 5º, XXIII, CF: a propriedade atenderá a sua função social. Essa cláusula geral, que foi reforçada com o art. 2.035, CC/02 deixou o espaço muito aberto para a jurisprudência se posicionar sobre o assunto, fazendo-se com que prevaleça a equidade do magistrado. No caso da prodigalidade estamos falando diretamente a respeito de patrimônio, de propriedade. A Carta garante o direito de propriedade, desde que esta atenda a sua função social.

Acontece o seguinte: 1) O pródigo geralmente tem família que dele depende. Não pode, pois, o Direito embasado na justiça e na equidade, permitir que uma pessoa gaste compulsoriamente tudo aquilo que não só a ela pertence, deixando o cônjuge, ascendentes e descendentes desamparados financeiramente. A pessoa tem o dever legal de sustentar aquelas pessoas. Nada mais lógico do que o Estado protegê-los de ficar sem uma herança digna ou até mesmo sem ter com o que se sustentar. 2) Fundamentando-se no mesmo princípio da dignidade da pessoa humana, não é concebível que o Estado, incumbido de proteger todos os cidadãos, permita que um indivíduo gaste tudo o que possui e vá viver de miséria. Que se conste também que isto não seria conveniente para o Estado, que ficaria na obrigação de ampará-lo. 3) Esta pessoa se tornaria um fardo para a própria sociedade, pois a prodigalidade, como bem anota Pablo Stolze (2012, p. 146):

Trata-se de um desvio comportamental que, refletindo-se no patrimônio individual, culmina por prejudicar, ainda que por via oblíqua, a tessitura familiar e social. Note-se que o indivíduo que desordenadamente dilapida o seu patrimônio poderá, ulteriormente, bater às portas de um parente próximo ou do próprio Estado para buscar amparo.

Todo este desgaste vai de inteiro encontro com os princípios da socialidade, dignidade da pessoa humana e mesmo da honra. É esta, portanto, a justificativa da lei para a interdição do pródigo. É o bem maior que prevalece. Neste caso, o melhor para a família, para a sociedade, para o Estado e para ele mesmo.

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Cabe também novamente enfatizar que a interdição do pródigo é relativa. Ela se limita apenas a impedir que ele cometa atos que possam dirimir ou acabar ou seu patrimônio, para tanto a justiça lhe nomeia um curador. Nas demais situações, ele é considerado um cidadão comum. Cristiano Chaves (2011, p. 307), mesmo no que pese a sua posição contrária à interdição do pródigo, ensina: “De qualquer sorte, convém registrar que a incapacidade do pródigo somente atinge a prática de atos de natureza patrimonial, não gerando limitações aos atos de cunho existencial, como o exercício do poder familiar, o direito ao voto e o testemunho em um processo.” Maria Helena Diniz (2008, p. 170) ainda complementa: “Todos os demais atos da vida civil poderão ser, por ele, validamente praticados, como: o casamento, a fixação do domicílio do casal, a autorização para que seus filhos menores contraiam matrimônio, etc.”.

Ressalta-se também que o pródigo, enquanto não for assim declarado, é plenamente capaz para praticar qualquer ato da vida privada. Apenas com a sua interdição, declarada por sentença judicial, é que ele passa a ser considerado relativamente incapaz.


CONCLUSÃO

Mesmo com todos os mecanismos criados pelo constitucionalismo moderno, ainda temos uma cultura extremamente ligada ao patrimonialismo e à propriedade privada, fazendo com que, até os dias de hoje, mesmo com todos os dispositivos legais e constitucionais tratando do assunto e com a extraordinária proteção jurídica dos diplomas ao hipossuficiente econômico, os indivíduos que mais possuem são sempre os mais favorecidos.

Felizmente a proporção com que vemos isto acontecer está se tornando cada vez menor, justamente por conta dessa unificação do sistema jurídico e da crescente supremacia constitucional sobre todas as outras normas jurídicas, especialmente sobre as de Direito Civil.

Assim, concluímos que a prodigalidade não é salutar ao Ordenamento Jurídico Brasileiro tal qual ele é hoje. Apesar de ter toda uma fundamentação social a que se pese a questão da falência do próprio indivíduo e de seus herdeiros, este instituto vai totalmente de encontro ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois privar uma pessoa de gastar o que é seu, ainda que ela o faça de maneira desregrada, é um ultraje. Veja-se ainda, novamente ressaltando, a situação que esta pessoa ficaria depois de declarada a sua interdição, ainda que de cunho exclusivamente patrimonial.

É um instituto jurídico ultrapassado por confrontar com diversos princípios constitucionais e até mesmo com os direitos de personalidade postos no próprio Código Civil, e pode ser substituído efetivamente pela equidade dos magistrados e bom senso dos familiares. O que poderia ser feito, ao nosso ver, seria uma reserva de patrimônio mínimo, para a proteção dos herdeiros, por exemplo: após ingressada com ação na justiça por prodigalidade, o magistrado, após feito o inventário de todo o seu patrimônio, bloquearia um percentual para que fique bloqueado de quaisquer negociações que não com o consentimento expresso dos herdeiros diretamente interessados.

Infelizmente o que percebemos hoje na jurisprudência é a intervenção direta do Estado na vida dos particulares declarados pródigos, deixando-os totalmente alheios ao seu patrimônio, causando-os constrangimento, humilhação e até mesmo, em alguns casos, estado de depressão.

Todo este processo, como já se foi bem explanado, é resultado do processo de constitucionalização do direito privado. Ao nosso pensar, a constituição deve estar sempre ao topo do Ordenamento Jurídico.

Deve-se focar mais, não só as nossas leis, mas também a nossa atenção a essa problemática, uma vez que a sociedade, e até mesmo o próprio direito são formados de atitudes, pequenos hábitos que fazem significativa diferença na conquista de uma vida mais digna. É isto que o a teoria constitucional, agora amadurecida, vem nos proporcionar: a chance de criarmos uma melhor mentalidade e repensar os nossos atos. Nos trazer princípios éticos e morais que foram agregados no decorrer dos séculos até se concretizarem no que chamamos em sentido amplo de democracia.

Faz-se, portanto necessário que busquemos meios que nos possibilitem pôr em prática todos estes princípios, não apenas como regras a serem coercitivamente obedecidas, mas como conceitos a serem internalizados no seio da nossa sociedade, fazendo-se com que se respeite acima de tudo a dignidade da pessoa humana e as necessidades coletivas da sociedade em detrimento de qualquer forma de patrimônio.

Agindo assim poderemos concretizar os objetivos traçados como pilares da nossa república os quais estão presentes no mais íntimo de cada um de nós, representados positivamente pelo art. 3º da nossa Constituição Federal.


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WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.


ABSTRACT:The study focuses on the constitutional issue and overcoming contemporary patrimonialism and analysis for the problem of prodigality. Emphasizes the evolution of constitutionalism and its implication principled to the other branches of the law, clearly in Civil Law. The methodology is kind of literature, which is free exploratory approach on the subject. In this new order demand to the complexity of the end of patrimonialism as is the case of prodigality, that is, state intervention in the freedom of the individual and its consequences the perspective of human dignity by Constitutional Law, finally, there is a reflection on the moment that society is undergoing some forms of it and be overcome.

KEYWORDS: Constitutionalism. Civil Law. Prodigality.

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Sobre os autores
Allan Christyan Sousa de Almeida

Acadêmico de Direito em Fortaleza (CE).

Lucas Evaldo Marinho da Silva

Aluno do curso de Direito do Centro Universitário Estácio do Ceará.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Allan Christyan Sousa ; SILVA, Lucas Evaldo Marinho. Prodigalidade e o fim do patrimonialismo civil na perspectiva neoconstitucionalista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3468, 29 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23346. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Trabalho elaborado sob orientação de Rogério da Silva e Souza (Mestre em Direito Constitucional).

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