Resumo: O estudo versa sobre a questão constitucional contemporânea e a superação do patrimonialismo tendo por análise a problemática da prodigalidade. Enfatiza-se a evolução do constitucionalismo e sua implicação principiológica para os demais ramos do Direito, manifestamente no Direito Civil. A metodologia é do tipo bibliográfica, cuja abordagem é livre exploratória sobre a temática. Nesta nova ordem demanda-se à complexidade do fim do patrimonialismo como é o caso da prodigalidade, vale dizer, a intervenção do Estado na liberdade do indivíduo e suas conseqüências a perspectiva da dignidade humana pelo Direito Constitucional, por último, há uma reflexão sobre o momento que a sociedade está passando e algumas formas de isto ser superado.
Palavras-chave: Constitucionalismo. Direito Civil. Prodigalidade.
INTRODUÇÃO
As relações de poder sempre foram intrínsecas a todas as sociedades. O patrimonialismo sempre regeu todas as relações sociais, sempre fazendo com que o indivíduo que detivesse mais poder (fosse ele econômico ou político) sempre se sobrepusesse sobre o mais fraco. Com a evolução dos modelos patrimonialistas percebemos que necessariamente o mais poderoso fosse aquele que possuísse mais riquezas, terras, dinheiro. E assim, o poder econômico se confundiu com o poder político.
Posteriormente, com os pensamentos iluministas e liberais, surgiram as primeiras constituições, documentos que organizavam o Estado politicamente, inclusive distribuindo o poder. Só estariam legitimados a deter o poder aqueles que obedecessem a todos os requisitos impostos pela Constituição.
Para Antonio Carlos Wolkmer (2003, p. 83):
Tratava-se, na verdade, dos horizontes ideológicos do chamado Constitucionalismo, que em seu sentido clássico representava a concepção técnico-formal do liberalismo político na esfera do Direito. Esta noção, de origem burguesa e que se universalizava em diferentes experiências históricas, privilegiava a contenção das atividades dos órgãos estatais nos limites de um Estado de Direito. Naturalmente, o perfil ideológico do Constitucionalismo, enquanto sustentáculo teórico do Direito Público do período pós-independência, traduziu não só o jogo dos valores institucionais dominantes e as diversificações de um momento singular da organização político-social, como expressou a junção notória de algumas diretrizes, como o liberalismo econômico sem a intervenção do Estado, o dogma da livre iniciativa, a limitação do poder centralizador do governante e a supremacia dos direitos individuais.
A partir deste momento, o qual se chama de “a nova era do constitucionalismo”, foram sendo difundidos ideais que pregavam a isonomia, a igualdade, a justiça e a equidade. Com efeito, não mais foi se admitindo constitucionalmente que a classe mais abastada detivesse todo o poder. A exemplo da Constituição Federal da República Federativa do Brasil, vemos que as Constituições legitimam todo o poder ao povo, logo, não teria sentido que este “povo” vivesse em desigualdade com alguns componentes do todo.
O modelo patrimonialista então começa a decair. Tudo isso, somado ao modelo positivista proposto por Kelsen – a constituição é o topo da pirâmide do Ordenamento Jurídico de uma nação, devendo todas as demais normas a ela se curvarem. Não é diferente a situação do Código Civil, que antes regia todas as relações sociais privadas e até mesmo algumas públicas, dá lugar a todos os preceitos constitucionais, tendo que absorver todos os seus direitos fundamentais e a eles não podendo se contrapor, sob pena de nulidade de qualquer ato praticado senão em consonância com as normas maiores.
Assim, para Pedro Lenza (2011, p.52):
Sob essa perspectiva, especialmente diante do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil e princípio matriz de todos os direitos fundamentais (art. 1º, III da CF/88), parece mais adequado, então, falar em um direito civil-constitucional, estudando o direito privado a luz das regras constitucionais e podendo, inclusive, em muitos casos, reconhecer a aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas [...].
Desfrutando do mesmo pensamento, que é quase unânime entre os doutrinadores de Direito Constitucional e de Direito Civil, nos assegura também Carlos Roberto Gonçalves (2011, p. 44):
A expressão direito civil-constitucional apenas realça a necessária releitura do Código Civil e das leis à luz da Constituição, redefinindo categorias jurídicas civilistas a partir dos fundamentos principiológicos constitucionais, da nova tábua axiológica fundada na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), na solidariedade social (art. 3º, III) e na igualdade substancial (arts. 3º e 5º).
Porém ainda perduram casos interessantes em que as relações patrimonialistas de outrora ainda perduram. Estudamos aqui o caso dos pródigos. Pessoas que dissipam todo o seu patrimônio de maneira desordenada, fazendo com que isso traga conseqüências desastrosas a sua existência e a sobrevivência de sua família.
O Estado, por provocação e depois de realmente comprovada esta “patologia”, pode interditá-lo como relativamente incapaz, não podendo o mesmo dispor de quaisquer de seus bens ou patrimônio sem que haja a intervenção de um curador nomeado pela Justiça. Até que ponto isto viria a afetar os direitos fundamentais deste indivíduo? Que conseqüências jurídicas isto poderia posteriormente acarretar à vida desta pessoa e qual seria a sua reação em saber que possui bens e fortuna, mas que não pode gastar?
Na época clássica, a noção de prodigalidade foi aprofundada. Sendo elucidada por Amaral Gurgel (1939, p. 128):
(...) a incapacidade do pródigo tem por causa, não mais o princípio da conservação dos bens patrimoniais na família, mas razões de interesse público e privado. Há interesse público em que o indivíduo não faça mau uso de sua fortuna, pois é de temer que, uma vez arruinado, torne-se um perturbador da ordem social. Há interesse de família, que impõem o amparo ao pródigo, que se conduz como um insensato, quanto à administração de seus bens.
Temos realmente um caso muito polêmico a ser estudado, pois, ao passo que isto poderia ferir a sua dignidade como pessoa humana, também poderia ferir a dignidade e o direito de outros, inclusive dele mesmo, se não fosse devidamente interditado. Como ficaria a família desta pessoa se ela viesse a dilapidar todo o seu patrimônio? E o próprio pródigo, como se encontraria após a perda de tudo o que possuía por erro seu? Por fim, como seria também a situação do Estado, pois este tem por obrigação dar sustento a todos as pessoas indigentes, assim, seria mais um no enorme contingente.
São inúmeras as polêmicas travadas no tocante à prodigalidade, inclusive nas mais variadas áreas do conhecimento. Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento (1981, p. 26 e 27) explicita o pensamento de economistas a respeito da prodigalidade:
A prodigalidade é, a um só tempo, problema econômico, psiquiátrico e jurídico, apresentando muitas controvérsias; os economistas dividem-se quanto à conveniência de interditá-los; uns julgam-nos inofensivos e mesmo úteis, tendo em vista a acelerada circulação de riquezas; outros, crêem serem eles perniciosos ao bem-estar social, por lhes faltar suporte para acumular a riqueza em suas mãos, fixando o pressuposto de que uma sociedade só é rica quando o são seus integrantes.
O Ordenamento Jurídico após a Constituição de 1988 atribuiu ao instituto da prodigalidade uma justificativa mais ligada à família do possível interditado. Sendo assim, enfatiza Júlio Aguiar de Oliveira (2010):
Manifestação de prodigalidade em sentido comum, ou seja, a conduta perdulária de indivíduo não vinculado a uma família, não é causa de processo de interdição por prodigalidade. O pródigo, em sentido jurídico, não existe senão como membro integrante de uma família, responsável ou co-responsável pela sua manutenção. Família, por outro lado, não se define pela comunidade de hipotéticos herdeiros de hipotética herança comum. Família, no contexto da Constituição da República de 1988, é a comunidade formada pelos cônjuges ou por qualquer dos pais e seus descendentes.
É uma situação bastante complicada e contraditória. Vivenciamos o fim de uma sociedade patrimonialista (pelo menos juridicamente falando), porém ainda contemplamos algumas controvérsias legais. Neste trabalho tentaremos esclarecer alguns destes assuntos, abordando a maneira como se deu o fim do patrimonialismo civil e também toda a polêmica que paira sobre o instituto da prodigalidade.
METODOLOGIA
À metodologia enfocada, assinalamos a pesquisa documental, através de um estudo descritivo-analítico, ao que consignamos ao material pesquisado: dicionários, legislações, doutrinas jurídicas e jurisprudências. Neste sentido, enveredamos com Aguillar (1996, p.154), dispondo como atitude fechada nas ciências um tipo de pretensão epistemológica que mais se adequada ao objeto do estudo, a saber: a redução do campo de investigação à ciência do Direito e seus dados atômicos, cujo mister é a impossibilidade de se explicar o fenômeno global, uma vez que se quer explicar tão-somente o ordenamento local, em dado tempo e lugar, com efeito, renunciando ainda ao ensejo de transformação da sociedade, tem-se, veementemente, a pesquisa, base na doutrina positiva do Direito.
Quanto à abordagem, é livre e exploratória, porquanto o mister exegético é humanístico, voltado, nomeadamente, aos profissionais do Direito, e por último, quanto aos objetivos, temos a livre metodologia descritiva e exploratória, sob o escopo de identificar, analisar e reger os institutos no ordenamento jurídico.
1. O SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO DO CONSTITUCIONALISMO
Ao domínio do regime absolutista moderno, com a difusão dos ideais iluministas e liberais da escola clássica e ainda com a ascensão burguesa, surge o constitucionalismo. Com intuito de concretizar judicialmente o liberalismo político-econômico e baseado na teoria de divisão de poderes proposta por Montesquieu, o movimento pretendia conter o poder do Estado, repartindo suas atribuições em três esferas independentes; ter a segurança jurídica a qual o absolutismo insistentemente negava; estabelecer formas e tipos de governo regulamentadas e estabelecer todas as liberdades individuais e coletivas, tudo em um documento denominado Constituição.
Com a implantação do constitucionalismo, o Estado vem a adquirir personalidade jurídica e a ser considerado, portanto, um sujeito de direito, fazendo com que o monarca se tornasse apenas mais um órgão pertencente à pessoa jurídica do Estado. A princípio, cobrava-se uma abstenção total do Estado nas relações comerciais privadas. Queria-se que o liberalismo econômico pairasse sobre a sociedade e que não houvesse a mínima intervenção por parte do mesmo, cabendo a ele apenas dar as liberdades individuais e coletivas das pessoas. Tinha-se, portanto, uma separação do Estado e da sociedade. Porém, esta separação começou a ser duramente questionada. Nas palavras de Mendes, Coelho e Branco (2002, p10):
A idéia, insta ao Estado liberal, da separação Estado-sociedade é reavaliada, dando surgimento à compreensão de que o Estado deve prover para que a sociedade logre superar as suas angústias estruturais. Daí o progressivo estabelecimento pelos Estados de seguros sociais variados – de acidentes de trabalho e de saúde, por exemplo. As necessidades das Grandes Guerras e os esforços de reconstrução impeliram o Estado a intervir decisivamente na vida econômica.
Nesta fase foram introduzidas as garantias fundamentais que o Estado deveria prestar aos cidadãos, denominadas por muitos autores “direitos de segunda geração”, que englobavam não somente a prestação de serviços por parte do Estado, mas também liberdades sociais tais quais a liberdade de sindicalização, direito de salário mínimo, repouso semanal remunerado, entre outros. Reivindicava-se que o Estado não somente desse as liberdades, mas também que ele garantisse que elas fossem respeitadas.
Posteriormente, com o desenvolvimento da vida em sociedade, vieram também a ser introduzidos os chamados “direitos de terceira geração”, que implicariam aos direitos das coletividades como, por exemplo, o direito à autodeterminação dos povos, direito à paz, à qualidade do meio ambiente, enfim, direitos de titularidade difusa que abrangessem as massas populacionais.
Introduzidos todos estes direitos ao rol das garantias teve-se uma eminente evolução de um Estado liberal individualista e patrimonialista para um Estado social, respeitador da dignidade da pessoa humana e dos interesses coletivos. Somando isso a um período de renovação dos pilares da sociedade após as grandes guerras, as constituições, até então quase inativas em aspectos práticos, ganham muita força. Neste contexto vivenciamos então a emergência do constitucionalismo contemporâneo ou novo constitucionalismo. Por englobar todos estes direitos e garantias do homem e da sociedade, bem como as obrigações as quais está sujeito o Estado, a Constituição tornou-se efetivamente a norma fundamental, norteadora de todas as esferas sociais. Nesse sentido, Paulo Nader, sintetizando a teoria de Kelsen, assinala: “as normas jurídicas formam uma pirâmide apoiada em seu vértice. A graduação é a seguinte: constituição, lei (...)” (2010, p.388).
2.A INSERÇÃO CONSTITUCIONAL NA ESFERA PRIVADA
A partir deste conceito, temos que a Constituição é a lei maior do Estado e que todas as outras devem estar intrinsecamente dispostas de acordo com os seus preceitos. Não seria diferente, pois, com a legislação referente ao Direito Civil, que embora fosse à época a grande norteadora de todas as relações particulares e tivesse considerável suficiência normativa, teria obrigatoriamente que seguir o norte dos princípios constitucionais. Na lição de Raiser (1990, p.174):
O direito civil tem seguramente uma função política, que vai definida em todas as diversas épocas constitucionais. E assim, pela mesma razão, os princípios ético-políticos, postos como fundamentos da constituição do Estado, exercem uma forte influência sobre a estrutura do direito privado.
No contexto brasileiro, quando promulgada a Carta Magna de 1988, encontrava-se vigente o Código Civil de 1916, um típico exemplo das codificações oitocentistas, de caráter extremamente patrimonialista e individualista. Em contrapartida, a nova Constituição contava com dispositivos que garantiam os direitos fundamentais das pessoas e das coletividades, como a dignidade da pessoa humana, a isonomia, a função social da propriedade, entre outros, os quais se chocavam bruscamente com a essência do código.
Foi promulgado então, em 2002, um novo Código Civil, com um texto voltado à proteção da pessoa humana em detrimento do patrimônio no âmbito das relações privadas e baseando-se nos valores constitucionais de socialidade, deixando de lado o individualismo. Um código totalmente adequado aos princípios dispostos na Constituição, baseado em conceitos jurídicos indeterminados e em clausulas gerais, que o fariam acompanhar todo o dinamismo da sociedade e integrar todo o ordenamento jurídico observando a hierarquia.
Todavia, mesmo à luz do constitucionalismo contemporâneo e com a adequação dos ramos diversos do direito ao mesmo, tão forte era a influência do direito privado na esfera jurídica que os civilistas não deixaram de ver o Direito Civil como regra fundamental da sociedade. Cabe citar aqui a crítica de um dos próprios redatores do código, Miguel Reale (2011, p.358):
Costumamos dizer que o Código Civil é a constituição do homem comum, isto é, do que há de comum entre todos os homens. Na verdade, a Lei Civil não considera os seres humanos enquanto se diversificam por seus títulos de cultura, ou por sua categoria social, mas enquanto são pessoas garantidamente situadas, com direitos e deveres, na sua qualidade de esposo ou esposa, pai ou filho, credor ou devedor, alienante ou adquirente, proprietário ou possuidor, condômino ou vizinho, testador ou herdeiro etc. Sob o prisma da teoria culturalista do Direito, o Código Civil é, a bem ver, a Constituição fundamental. Se, do ponto de vista formal ou técnico-jurídico, isto é, segundo a ordem hierárquica das competências, uma Constituição é a lei maior ou primordial, o mesmo não se pode dizer do ponto de vista histórico-cultural, pois, a essa luz, a Lei Civil surge como o ordenamento mais estável, o menos sujeito a transformações bruscas. Basta confrontar a duração das Constituições com a dos códigos para se dar razão a Radbruch quanto à maior estabilidade do Direito Civil e à mutabilidade incessante do Direito Constitucional ou do Administrativo.
Entretanto, tem-se notado que o Direito Civil vem sendo descodificado. Prova disto são as inúmeras leis extravagantes que hodiernamente encontram-se vigentes no nosso sistema judicial. Estes microssistemas legislativos, somados a rígida hierarquia, reduziram notavelmente a importância dos códigos, questionando-se até a necessidade de reforma dos mesmos. Vemos também que é nítida a atual unidade do nosso Ordenamento Jurídico. E para construir esta unidade fez-se necessário seguir todos os preceitos impostos pela teoria da supremacia constitucional. Como bem ensina Maria Celina Tepedino (1993, p.24):
Acolher a construção da unidade (hierarquicamente sistematizada) do ordenamento jurídico significa sustentar que seus princípios superiores, isto é, os valores propugnados pela Constituição, estão presentes em todos os recantos do tecido normativo, resultando, em conseqüência, inaceitável a rígida contraposição direito público-direito privado.
Em decorrência de todo este fenômeno provocado pelo constitucionalismo, fica posta como a principal conquista, em aspectos jurídicos, o efetivo fim do patrimonialismo que regia todas as relações privadas.
Mais uma vez é importante ressaltar que o constitucionalismo nasceu com o intuito de proteger o patrimônio da burguesia. Contudo, tomou proporções diferentes, fazendo as características patrimonialistas dos códigos oitocentistas darem lugar à socialidade proposta pelos ideais constitucionalistas contemporâneos. Para tanto não foi alterada a essência do movimento, mas a cultura das sociedades relativizada pelos grandes conflitos de então. Após tantos acontecimentos passamos, cada dia mais, a ter uma visão crítica dos fatos e a tomar conhecimento de nossas atribuições como povo, embora isto efetivamente ainda não seja posto em prática.
Neste ponto de vista, foi sendo posto de lado o patrimonialismo propriamente dito. Porém, infelizmente ainda vivemos com este princípio internalizado no mais íntimo da nossa sociedade. Na letra da lei, ele está extinto, entretanto ele apenas foi sociologicamente amenizado e mascarado, apesar de ainda haverem alguns casos isolados nos diplomas legais, como o instituto da prodigalidade, que será adiante tratado.
Sabe-se que a atual Constituição Federal da República Federativa do Brasil, em seu art. 5º, XXIII, diz que a propriedade atenderá a sua função social, e discorre sobre o tema em diversos outros dispositivos no decorrer de seu extenso texto. Também vemos o assunto em inúmeros outros documentos legais, especialmente no Código Civil e em outras leis.