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O sistema constitucional dos países lusófonos.

Um breve passeio no modelo jurídico-político de Angola, do Brasil, de Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, à luz das concepções de Ferdinand Lassalle, Konrad Hesse e Karl Loewenstein

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III. A COMUNIDADE LUSÓFONA (www.cplp.org)

Antes de visitar os específicos sistemas constitucionais de cada um dos países da comunidade lusófona será ferida a própria lusofonia, que vem a ser processo histórico de transmissão cultural imposta pelos portugueses aos povos e nações submetidos a sua dominação política e social, tendo como principal elemento de integração comum o idioma português.

Com efeito, a partir desse elemento comum idiomático surgiu, inclusive, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, organização criada em 17.7.1996, com sede em Lisboa, cuja principal finalidade é amplificar a integração entre as pessoas e as instituições, nos variados domínios do conhecimento e da vida, envolvendo, a política, o direito, a educação, as artes, as ciências, enfim, aproximando os governos, as instituições e sobretudo e principalmente as pessoas.

Essa lusofonia tem como ponto de partida a experiência colonial portuguesa iniciada no alvorecer do século XV, fruto da ambição expansionista lusitana.

 Segundo se extrai da leitura de Raymundo Faoro (2001), o português foi forjado na luta e na guerra, e a sua ambição econômica fê-lo explorar os mares nunca dantes navegados.

Ao lado dessa motivação econômica, extrai-se de Darcy Ribeiro (2006) que havia um componente de salvacionismo religioso por força do poder e da influência da Igreja Católica na vida do homem medieval europeu, e do português ibérico em particular, no sentido de levar a cristandade católica para todo o orbe terrestre.

Pois bem, pode-se acreditar em Gilberto Freyre (2001) que foram esses os principais móveis do expansionismo português: a ambição econômica aliada a uma perspectiva soteriológica cristã.

Com esses impulsos (ambição econômica e fé religiosa), o português singrou os mares e se estabeleceu em várias localidades, nas Américas, na África e na Ásia, fincando raízes, dominando e submetendo povos e nações menos organizados.

É certo que dos portugueses herdamos muitos caracteres, sendo que a figura do “homem cordial” é um dos principais aspectos, segundo Sérgio Buarque de Holanda (1995), no sentido de um indivíduo inadequado para as relações impessoais, especialmente no trato das coisas públicas ou coletivas, visto que as relações familiares ou afetivas são mais relevantes do que os deveres sociais ou jurídicos.

Sem embargo da sucessão de muitos débitos, é certo que recebemos coisas positivas, pois os portugueses estavam contidos em mundo no qual a dominação e a subjugação de outros povos e nações fazia parte do cotidiano e, dentre os créditos dos lusitanos, indiscutivelmente temos o idioma português, que o poeta certeiramente alcunhou de a “última flor do Lácio”.

Após essa brevíssima análise da lusofonia, passarei a visitar cada um dos respectivos sistemas constitucionais dos países lusófonos, começando com Portugal, ponto de partida de toda essa rica experiência social e política, passando pelo Brasil, primeira das ex-colônias a se desvencilhar do domínio português, e seguindo, por ordem alfabética, os demais Estados lusófonos: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e, finalmente, o caçula Timor-Leste.

Jorge Miranda (1997), em tópico intitulado “os sistemas constitucionais dos países africanos de língua portuguesa”,  leciona que o acesso à independência dos cinco países africanos lusófonos não se fez ao mesmo tempo e nos mesmos termos dos demais países da África, porquanto somente com a derrocada do “Estado Novo” português e a queda do regime salazarista o ritmo de libertação foi acelerado pelos vários “movimentos de libertação”.

A primeira fase dos mencionados países foi marcada por intensas lutas internas, que agravaram uma situação de pobreza e abandono de sua população. A partir dos anos 90 do século passado, esses Estados iniciam uma mudança de eixo no rumo da democracia e da paz.

Portugal e o Brasil têm servido de bússolas para que essas novas democracias se institucionalizem, de sorte a propiciarem um regime político onde os direitos e liberdades individuais e sociais possam ser exercitados, com segurança e prosperidade.


IV. PORTUGAL (www.portugal.gov.pt)

Como é de sobejo conhecimento, a história de Portugal tem início com as lutas dos reinos cristãos pela reconquista da península ibérica e conseqüente expulsão dos mouros islâmicos daquele pedaço do continente europeu, finalizada no ano de 1249.

O Reino de Portugal foi estabelecido em 1139, sendo provavelmente o primeiro Estado-nação moderno europeu. Talvez por isso, tenha sido um dos primeiros a iniciar o processo de expansão marítima e de colonização e dominação dos povos e nações das Américas, da África e da Ásia, cujo apogeu se deu no início do século XVI, no reinado de Dom Manuel I, alcunhado de “o Venturoso”, e que se intitulava “Rei de Portugal e dos Algarves, senhor da África, da Índia, da China, do Japão, do Egito, da Etiópia e do Brasil”, no período de 1495 até 1521.

Após um período de apogeu econômico e político, Portugal entra em crise e vê os seus domínios se dissolverem, conquistados por outras potências européias, mormente França, Inglaterra e Holanda, sem prejuízo das permanentes investidas da Espanha contra o seu próprio território e contra os seus domínios.

Sacudido pelos ventos revolucionários que varreram a Europa continental no final do século XVIII e inicio do século XIX, oriundos da França, a família real portuguesa, ante a iminente invasão das forças napoleônicas, foge para o Brasil e instala o centro administrativo e político do Império na América.

Solucionada a questão napoleônica, a família real é constrangida a retornar a Portugal e se submete ao novo regime político exigido após a experiência revolucionária: a monarquia constitucional, em face da promulgação da Constituição Política da Monarquia Portuguesa, em 23.9.1822.

Poucos dias antes da promulgação de sua primeira Constituição, Portugal vê o Brasil, então Reino Unido, outrora sua colônia mais próspera, proclamar a sua independência, em 7 de setembro, por meio do príncipe herdeiro Dom Pedro, que se auto-intitulou “Defensor Perpétuo do Brasil, por obra e graça da Santíssima Trindade e por unânime aclamação dos povos”.

Durante o século XIX, Portugal enfrenta crises econômicas e políticas que vão resultar no início do século XX na implantação do regime republicano em 5.10.1910. Após um período conturbado, em 1932 ascende ao poder Antonio de Oliveira Salazar que instituiu em solo português o regime do “Estado Novo”, marcado pelo autoritarismo político e castração das franquias liberais democráticas, e pelo isolamento político de Portugal.

Salazar, por motivo de doença, afasta-se do poder em 1968, vindo a falecer em 27.7.1970. Sucede-lhe Marcelo Caetano até o golpe de estado ocorrido em 25.4.1974, no evento denominado “Revolução dos Cravos”, conduzido pelo Movimento das Forças Armadas, composto de militares que participaram das “Guerras Coloniais” (conflitos com Angola, Guiné e Moçambique).

Em 25.4.1976 ocorreu a promulgação da atual Constituição de Portugal que abriu uma nova perspectiva nas relações portuguesas com a Europa e com o restante do mundo, especialmente com as suas antigas colônias, e com a própria população em solo português.

Pedagógico o enunciado contido no preâmbulo da Constituição portuguesa de 1976:

 A 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas, coroando a longa resistência do povo português e interpretando os seus sentimentos profundos, derrubou o regime fascista.

Libertar Portugal da ditadura, da opressão e do colonialismo representou uma transformação revolucionária e o início de uma viragem histórica da sociedade portuguesa.

A Revolução restituiu aos Portugueses os direitos e liberdades fundamentais. No exercício destes direitos e liberdades, os legítimos representantes do povo reúnem-se para elaborar uma Constituição que corresponde às aspirações do país.

A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno.

A Assembleia Constituinte, reunida na sessão plenária de 2 de Abril de 1976, aprova e decreta a seguinte Constituição da República Portuguesa:

A aludida Constituição positiva uma nova realidade social e política no cenário português e abre as portas de Portugal para um novo período de democracia, com o respeito às franquias liberais e das indispensáveis conquistas sociais, como preconiza José Carlos Vieira de Andrade (2006).

Tenha-se que Portugal ostenta, hodiernamente, índices sociais que situam o país entre aqueles que possuem a população com boa qualidade de vida, como revelam os dados contidos nos organismos e agências internacionais.

No critério das liberdades fundamentais, Portugal é visto como um Estado plenamente democrático. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD (www.un.org), 95% dos portugueses são alfabetizados.

Em Portugal, segundo a Organização das Nações Unidas, a expectativa de vida gira em redor de 78 anos, sendo 75 anos para os homens e 81 anos para as mulheres. A mortalidade infantil, segundo a Organização Mundial da Saúde – OMS, é de 4 crianças para cada 1.000 nascimentos, no ano de 2005. Cuide-se que segundo a OMS o índice “aceitável” é de até 10 mortes para cada 1.000 nascimentos.

Ainda no plano das condições sociais e econômicas, o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH de Portugal é de “0,909”, considerando que o máximo é de 1. O aludido índice leva em consideração a renda per capita, o grau de educação e a expectativa de vida das populações. O melhor IDH é o da Noruega (0,938). IDH acima de 0,9 implica país com desenvolvimento humano muito elevado.

Sucede, no entanto, que o índice de percepção de corrupção é relativamente baixo (5,8), nos termos da Transparência Internacional (www.transparency.org), em uma escala que varia de 0 a 10. O melhor desempenho é o da Nova Zelândia, com índice 9,4. O pior é o da Somália: 1,1.

Cuide-se que o Estado português foi beneficiado pelo ingresso na Comunidade Européia, e integra União Européia, que vitaminou sensivelmente a economia local, permitindo a melhoria substantiva das condições sociais da população portuguesa.

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Em suma, as promessas constitucionais estampadas no Texto Fundamental de 1976 não se transformaram em “letra morta”, e a Constituição portuguesa não é uma “simples folha de papel”, mercê dos “fatores reais de poder”, mas é dotada de “força normativa” conformadora e transformadora da realidade social dos portugueses, como defende José Joaquim Gomes Canotilho (1997).

Nesse passo, concordamos com Jorge Miranda (2002) no sentido de que o sistema constitucional português é de caráter normativo, pois há uma consciência ou sentimento constitucional que favorece à obediência e ao respeito da Constituição, pelos governantes e pelos governados, e tanto os direitos e garantias individuais e coletivas quanto os direitos sociais e democráticos têm sido exercidos com adequada compatibilidade, de acordo com as necessidades das pessoas e dentro das capacidades do Estado e da própria sociedade,  na medida do possível.


V. BRASIL (www.brasil.gov.br)

A história constitucional propriamente brasileira tem início em 7.9.1822 com a promulgação da Independência e a dissolução dos laços jurídico-políticos entre Brasil e Portugal, confirmada pela outorga da Carta Constitucional de 1824, que foi o documento político que regeu o império brasileiro.

O Brasil tem sofrido profundas mudanças econômicas, sociais e políticas, e passou por crises de variadas ordens, até a estabilização institucional ocorrida com a promulgação da Constituição de 5.10.1988, que demarca o ingresso definitivo do País no plano democrático, após o período autoritário marcado pelo regime militar instaurado no Brasil em 1º.4.1964.

Com efeito, até a Constituição de 1988, a experiência institucional brasileira foi marcada por sucessivas crises constitucionais, inclusive com golpes de Estado, que revelavam a quebra da legalidade constitucional.

Convém, assim como feito em relação ao texto fundamental português, recordar o disposto no Preâmbulo da Constituição brasileira vigente:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

A Constituição brasileira de 1988 se enquadra no paradigma constitucional democrático, síntese e superação dos paradigmas constitucionais liberal e social, na medida em que o primeiro se consubstanciava em modelo no qual o Estado deveria ser o mais omisso possível, enquanto que no segundo o Estado deveria intervir o máximo possível. Na perspectiva democrática, o Estado deve agir tendo em mira a fraternidade entre os brasileiros e entre os demais povos e nações.

Forte nesse modelo fraternal, o texto constitucional brasileiro se revela repleto de promessas constitucionais que se apresentam como verdadeiras utopias coletivas, cujas concretizações dependem de um esforço conjugado do Governo, das instituições e das pessoas. É um texto ambicioso, auspicioso, e que requer um forte sentimento ou consciência constitucional para se tornar realidade normativa, em vez de retórica vazia e meramente simbólica, como adverte o magistério de Marcelo Neves (2007).

Cuide-se que o Brasil já se apresenta como uma democracia madura, com instituições sólidas, com respeito às franquias liberais fundamentais, onde viceja a possibilidade real de alternância republicana de poder, mediante eleições livres e legítimas.

Todavia, no plano dos direitos sociais básicos, o País apresenta índices obscenos de desigualdade social e há uma parcela considerável de brasileiros alijados das benesses econômicas.

Nesse quadro, calha verificar os indicadores sociais e econômicos do Brasil e de sua população. 

No critério das liberdades fundamentais, como assinalado o Brasil é um Estado que vivencia a plenitude do regime político-democrático. No entanto, como mencionado, no plano dos direitos sociais, o País não se encontra em situação privilegiada, a despeito dos avanços, como sucede com o índice de quase 90% de alfabetização, segundo o PNUD.

Segundo a ONU, a expectativa de vida do brasileiro gira em redor de 72 anos, sendo 69 para os homens e 76 para as mulheres. Por seu turno, a mortalidade infantil, segundo a OMS, é de 19,3 crianças por mil nascimentos, o dobro do índice “aceitável” estabelecido pela OMS.  O IDH brasileiro é 0,699, colocando o país na 73ª posição mundial.  O índice de percepção de corrupção é 3,7, revelador que para nós brasileiros grassa em nossas relações um alto grau de abuso do poder.

Em suma, no tópico relativo às liberdades e direitos fundamentais individuais ou coletivas, inclusive nos direitos políticos, a Constituição brasileira não é uma simples “folha de papel” a serviço dos “fatores reais de poder”.

Todavia, no plano dos direitos sociais, a Constituição não tem se revelado em sua força normativa máxima, podendo, por essa razão, ser compreendida como “nominal”, porquanto dependente de uma maior conscientização constitucional dos governantes e dos governados, sobretudo no plano das políticas públicas de caráter social.

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional, Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA e do Centro Universitário de Brasília - CEUB. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; "Lições de Direito Constitucional - Lição 1 A Constituição da República Federativa do Brasil" e "Lições de Direito Constitucional - Lição 2 os princípios fundamentais e os direitos fundamentais" .

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. O sistema constitucional dos países lusófonos.: Um breve passeio no modelo jurídico-político de Angola, do Brasil, de Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, à luz das concepções de Ferdinand Lassalle, Konrad Hesse e Karl Loewenstein. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3494, 24 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23514. Acesso em: 2 nov. 2024.

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