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O sistema constitucional dos países lusófonos.

Um breve passeio no modelo jurídico-político de Angola, do Brasil, de Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, à luz das concepções de Ferdinand Lassalle, Konrad Hesse e Karl Loewenstein

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Analisam-se os sistemas constitucionais dos países lusófonos (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Portugal e Timor-Leste), a partir das categorias lançadas por Ferdinand Lassalle, Konrad Hesse e Karl Loewenstein, verificando mais a realidade jurídico-política do que o texto constitucional.

Resumo: O presente ensaio visa analisar os sistemas constitucionais dos países lusófonos (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Portugal e Timor-Leste), a partir das categorias lançadas por Ferdinand Lassalle, Konrad Hesse e Karl Loewenstein, verificando mais a realidade jurídico-política do que o texto constitucional.

Palavras-chave: Direito Constitucional Comparado - Lusofonia – Sistema Constitucional – Angola – Brasil – Cabo Verde – Guiné-Bissau – Moçambique – São Tomé E Príncipe – Portugal – Timor-Leste – Ferdinand Lassalle – Konrad Hesse – Karl Loewenstein.

Sumário: I. Introdução; II. Pressupostos de compreensão a partir de Lassalle, Hesse e Loewenstein; III. A Comunidade Lusófona; IV. Portugal; V. Brasil; VI. Angola; VII. Cabo Verde; VIII. Guiné-Bissau; IX. Moçambique; X. São Tomé e Príncipe; XI. Timor-Leste; XII. Considerações finais; XIII. Referências; XIV. Sítios virtuais.  


I. INTRODUÇÃO

O presente texto visita os sistemas constitucionais dos países lusófonos, que vem a ser Portugal e aqueles que têm na experiência colonial portuguesa um elemento comum.

Como é cediço, fazem parte da comunidade lusófona os seguintes Estados soberanos e independentes: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e o Timor-Leste.

O tema descansa a sua justificativa nas indiscutíveis relações de proximidade e de semelhança entre as histórias e as realidades, bem como entre os sonhos e aspirações, das pessoas e das instituições desses aludidos Estados pertencentes à comunidade lusófona.

A finalidade deste breve ensaio é a de demonstrar as principais semelhanças e dessemelhanças entre os referidos sistemas constitucionais, de sorte a propiciar e evidenciar as boas experiências normativas de cada um desses membros da comunidade lusófona e revelar as eventuais experiências negativas, para que tenhamos a humildade de copiar os acertos e procuremos evitar ou corrigir os erros cometidos.

Para alcançar esse desiderato, visitaremos os aspectos mais importantes dos respectivos textos constitucionais, conscientes, no entanto, de que a comparação de sistemas jurídicos vai muito além da singela comparação de enunciados textuais, visto que de há muito nos ensinou Miguel Reale (Teoria Tridimensional do Direito) que para uma adequada compreensão do fenômeno jurídico (e o fenômeno constitucional é de caráter jurídico) se faz indispensável o conhecimento das circunstâncias fáticas, dos valores sociais e coletivamente compartilhados e dos textos normativos, no presente caso dos textos constitucionais.

Nessa linha, temos que comparação de Direito não se resume a comparação de Textos, mas, sobretudo e principalmente, a comparações de Experiências e de Realidades, levando-se em consideração todos os demais aspectos relevantes (cultura, história, geografia, economia, religião, ciências etc.) para uma adequada compreensão do Sistema Constitucional de cada um dos citados membros da comunidade lusófona.

Cuide-se que o que merece ser realçado em qualquer análise do sistema jurídico-constitucional consiste em verificar se as normas (regras, princípios e postulados) são instrumentos eficazes de ordenação e de organização da vida em sociedade.

Ou seja, o sistema constitucional em si, visto isoladamente, não tem qualquer importância. O sistema constitucional deve estar conectado com a realidade social e a Constituição, para ser levada a sério, deve ser norma jurídica com força suficiente para conformar os padrões comportamentais das pessoas e das instituições, especialmente dos governos e dos governantes.

Nesse prisma, indaga-se: o que efetivamente nos interessa saber acerca dos sistemas constitucionais dos países lusófonos? As Constituições são simples “folhas de papel”? Ou as Constituições têm força normativa? As Constituições não passam de textos semânticos justificadores dos abusos governamentais? Ou as Constituições se revelam como norma jurídica obedecida e cumprida pelos governantes e governados? Ou as Constituições ainda desempenham um caráter pedagógico porquanto não obtiveram a plena adesão dos governantes e dos governados?

Previamente às indagações acerca da eficácia normativa dos textos constitucionais, no que tem relevância, importa saber o grau de legitimidade e de legitimação das mencionadas Constituições. Quais tiveram origem democrática e legítima e quais são autoritárias e ilegítimas?


II. OS PRESSUPOSTOS DE COMPREENSÃO A PARTIR DE LASSALLE, HESSE E LOEWENSTEIN

Nessa perspectiva, como pressupostos de compreensão utilizaremos as categorias conceituais lançadas por Ferdinand Lassalle (A essência da Constituição/Über die Verfassung), por Konrad Hesse (A força normativa da Constituição/Die normative Kraft der Verfassung), e por Karl Loewenstein (A Teoria da Constituição/Verfassunglehre).

Nada obstante o surgimento de novas teorias e doutrinas explicativas e justificadoras das atuais realidades constitucionais, especialmente de países histórica e tradicionalmente situados na periferia da modernidade ocidentalizada, como sucede com os lusófonos, creio que os referidos autores permanecem capazes de viabilizar esse desiderato: uma adequada compreensão do fenômeno constitucional, afinal de contas, os clássicos são sempre atuais.

Com efeito, no longínquo ano de 1862, no reino germânico da Prússia, Ferdinand Lassalle proferiu palestra posteriormente publicada e que no Brasil ganhou dois títulos: o primeiro Que é uma Constituição?; o segundo título é A Essência da Constituição. Este último é o título mais usual de sua clássica obra em solo brasileiro.

Pois bem, Lassalle (2001, p. 5) principia sua exposição com as seguintes indagações:

Que é uma Constituição? Qual a verdadeira essência de uma Constituição? Em todos os lugares e a qualquer hora, à tarde, pela manhã e à noite, estamos ouvindo falar da Constituição e de problemas constitucionais. Na imprensa, nos clubes, nos cafés e nos restaurantes, é este o assunto obrigatório de todas as conversas.

E, apesar disso, ou por isso mesmo, formulamos em termos precisos esta pergunta: Qual será a verdadeira essência, o verdadeiro conceito de uma Constituição? Estou certo de que, entre essas milhares de pessoas que dela falam, existem muito poucos que possam dar-nos uma resposta satisfatória. 

Ante esse quadro problemático, Lassalle continua lançando mão de indagações que recordam o método da maiêutica socrática, e nesse jogo de perguntas e respostas, diz que a resposta de um jurista seria a de que “A Constituição é a lei fundamental proclamada pela nação, na qual baseia-se a organização do Direito público do país” (LASSALLE, 2001, p. 6).

De posse desse conceito jurídico da Constituição como “Lei Fundamental”, Lassalle (2001, p. 7) pergunta: “Qual a diferença entre uma Constituição e uma lei?”

Lassalle (2001, p. 7)  reconhece a essência legislativa da Constituição, no sentido de que ela – a Constituição – é também uma Lei; mas nada obstante seja uma Lei, ela – a Constituição – é mais do que uma simples Lei, porquanto, segundo Lassalle, alterações legislativas não provocam as mesmas reações que provocam alterações constitucionais, visto que “quando mexem na Constituição, protestamos e gritamos: ‘Deixem a Constituição!’. Qual é a origem dessa diferença?”, indaga Lassalle (2001, p. 8).

Para Lassalle (2001, p. 8): “Todos esses fatos demonstram que, no espírito unânime dos povos, uma Constituição deve ser qualquer coisa de mais sagrado, de mais firme e de mais imóvel que uma lei comum”

Por isso que, continua Lassalle (2001, p. 8), a “Constituição não é uma lei como as outras, é uma lei fundamental da nação”. Mas o que diferencia a lei fundamental das demais leis não-fundamentais? Permanece indagando Lassalle.

Para responder a essa pergunta Lassalle (2001, p. 9) fornece três pistas:

1º Que a lei fundamental seja uma lei “básica”, mais do que as outras comuns, como indica seu próprio nome “fundamental”;

2º Que constitua – pois de outra forma não poderíamos chamá-la de fundamental – o verdadeiro fundamento das outras leis, isto é, a lei fundamental, se realmente pretende ser merecedora desse nome, deverá informar e engendrar as outras leis comuns originárias da mesma. A lei fundamental, para sê-lo, deverá, pois, atuar e irradiar-se através das leis comuns do país;

3º Mas as coisas que têm um fundamento não o são por um capricho; existem por que necessariamente devem existir. O fundamento a que respondem não permite serem de outro modo. Somente as coisas que carecem de fundamento, que não as casuais e as fortuitas, podem ser como são ou mesmo de qualquer forma; as que possuem um fundamento, não. Elas se regem pela necessidade. (...) A idéia de fundamento traz, implicitamente, a noção de uma necessidade ativa, de uma força eficaz e determinante que atua sobre tudo que nela se baseia, fazendo-a assim e não de outro modo.

Certo que para Lassalle (2001, p. 10) em sendo a Constituição a Lei Fundamental de uma nação, ela enquanto Lei Fundamental se apresenta como uma “força ativa que faz, por uma exigência da necessidade, que todas as outras leis e instituições jurídicas vigentes no país sejam o que realmente são. Promulgada, a partir desse instante, não se pode decretar, naquele país, embora possam querer, outras leis contrárias à fundamental”

Nos aproximamos do elemento central das proposições de Lassalle (2001, p. 10) e vez mais ele formula uma pergunta capital para descortinar a verdadeira essência da Constituição:

Muito bem, pergunto eu, será que existe em algum país – e fazendo esta pergunta os horizontes clareiam – alguma força ativa que possa influir de tal forma em todas as leis do mesmo, que as obrigue a ser necessariamente, até certo ponto, o que são e como são, sem poderem ser de outro modo?

A essa indagação, Lassalle (2001, p. 10) oferece a seguinte resposta:

Esta incógnita que estamos investigando apóia-se, simplesmente, nos fatores reais do poder que regem uma determinada sociedade.

Os fatores reais do poder que atuam no seio de cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas vigentes, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são.

Eis o coração da tese de Lassalle: a Constituição resulta dos fatores reais de poder de uma determinada sociedade.

Lassalle (2001, p. 11) joga com um exemplo que sabe absurdo: “suponhamos que um país, por causa de um sinistro, ficasse sem nenhuma das leis que o governavam e que por força das circunstâncias, fosse necessário decretar novas leis”

Ante esse quadro de absoluta anomia jurídica, Lassalle (2001, p. 11) indaga: “Neste caso, o legislador, completamente livre, poderia fazer leis de capricho ou de acordo com o seu próprio modo de pensar?”

Lassalle começa a responder a essa pergunta lastreado no insuperável princípio da realidade.

Com efeito, os contrários à monarquia, onde houvesse uma, ficariam açulados a negar ao monarca as suas prerrogativas políticas e poriam abaixo essa forma de governo. A reação do monarca, seria a seguinte, segundo Lassalle (2001, p. 12):

O monarca responderia assim: Podem estar destruídas as leis, porém a realidade é que o exército subsiste e me obedece, acatando minhas ordens; a realidade é que os comandantes dos arsenais e quartéis põem na rua os canhões e as baionetas quando eu o ordenar. Assim, apoiado neste poder real, efetivo, das baionetas e dos canhões, não tolero que venham me impor posições e prerrogativas em desacordo comigo.

Como podeis ver, um rei a quem obedecem o exército e os canhões é uma parte da Constituição.

Peço licença para abrir um parêntese nesse aspecto da força das armas no cenário jurídico-constitucional de um país, especialmente no tocante à defesa das instituições do Estado.

É por todos conhecido o clássico debate travado entre Hans Kelsen e Carl Schmitt acerca de quem deve ser o “Guardião da Constituição” (Der Hüter der Verfassung).

Segundo a visão liberal e democrática de Hans Kelsen (2003) o órgão jurídico-político adequado e competente para guardar, defender e proteger a Constituição deve ser um “Tribunal”, composto de magistrados cuja missão principal seria, mediante uma justiça ou jurisdição constitucional, velar pela supremacia normativa da Constituição.

Todavia, segundo a visão anti-liberal e autoritária de Carl Schmitt (2007), em vez do “Tribunal Constitucional”, o verdadeiro “guardião” da Constituição seria o Chefe de Estado, porquanto seja ele o detentor da faculdade de decretar o “estado de emergência ou de exceção constitucional”, logo a quem obedecem as forças armadas ou de segurança de um país. Ou seja, aquele que detiver o comando das armas se revela como o verdadeiro “guardião da Constituição”.

Se observarmos o texto constitucional brasileiro somos tentados a imaginar que as teses liberais e democráticas de Kelsen se apresentam vencedoras, haja vista o disposto no caput do artigo 102 que enuncia que “compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição”.

Sucede que os textos não devem ser lidos “em tiras ou isoladamente”, mas em sua totalidade, como adverte o magistério de Eros Roberto Grau (2006, p. 44).

Por esse ângulo, no texto constitucional brasileiro há específico Título – o V - versando acerca da “Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”, com a atribuição concedida ao Presidente da República, ouvidos os Conselhos de Defesa Nacional e o Conselho da República, de decretar o “Estado de Defesa” e de solicitar ao Congresso Nacional a decretação do “Estado de Sítio”, que implicaria a suspensão dos direitos e liberdades constitucionais (arts. 136 a 141, CF).

Tenha-se que nos termos da Constituição brasileira o Presidente da República é o comandante supremo das Forças Armadas nacionais (art. 142). Nesse passo, à luz de Carl Schmitt, o “guardião” da Constituição brasileira seria o Presidente da República, a quem o “aparato de segurança” deve obedecer.

Todavia, analisando o tema com mais vagar, veremos que ambas as concepções são aparentemente contraditórias, visto que em situação de normalidade institucional o “guardião da Constituição” é o Supremo Tribunal Federal. Mas em situação de anormalidade institucional a missão de proteger a Constituição compete ao Presidente da República.

E, em situações extremas, diante de conflito insolúvel entre os poderes constitucionais (Presidente da República versus Supremo Tribunal Federal ou versus Congresso Nacional), compete às Forças Armadas o dever de velar pela preservação ou restabelecimento da ordem institucional (art. 142, CF).

É de ver, portanto, a importância das Forças Armadas como fator real de poder nos sistemas constitucionais, sejam os democráticos sejam os autoritários.

Nos demais países lusófonos a situação é praticamente a mesma, competindo à “Corte Constitucional” velar pela Constituição nos períodos de normalidade institucional e ao Chefe-de-Estado ou às Forças Armadas velar pela Constituição nos períodos de anormalidade institucional.

Fecho o longo parêntese e volto a Ferdinand Lassalle.

Nessa batida, Lassalle (2001, p. 12) recorda que além do rei e do exército (forças armadas) uma “aristocracia” ou “nobreza” influente e bem-vista pelo rei é também uma parte da Constituição, pois essa parcela da sociedade, ainda que ínfima, não abriria mão de suas benesses ou prerrogativas.

Quem mais, segundo Lassalle, se apresenta como “fator real de poder” e parte da Constituição? Lassalle (2001, pp. 13-15)  fala da “grande burguesia” e dos “banqueiros”, ou seja, do poder econômico como partes da Constituição, porquanto o próprio Estado e a sociedade dependeriam financeiramente dessas duas aludidas classes sociais.

Lassalle (2001, p. 16) também menciona a alta burocracia estatal como “fator real de poder” e aduz o seguinte exemplo:

Suponhamos que o governo intentasse promulgar uma lei penal semelhante à que prevaleceu durante algum tempo na China, punindo na pessoa dos pais os roubos cometidos pelos filhos. Essa lei não poderia viger, pois contra ela se levantaria o protesto, com toda a energia possível, da cultura coletiva e da consciência social do país. Todos os funcionários, burocratas e conselheiros do Estado ergueriam as mãos para o céu e até os sisudos senadores teriam que discordar de tamanho absurdo. É que, dentro de certos limites, também a consciência coletiva e a cultura geral da nação são partículas, e não pequenas, da Constituição.

Lassalle não fala das religiões ou das igrejas, mas não restam dúvidas de que acaso o legislador resolvesse interferir na religiosidade ou na economia interna das igrejas, certamente sofreria ante a força social e as influências que as crenças religiosas exercem sobre as pessoas. Nesse passo, digo que as igrejas também são partes da Constituição, e o seu poder não deve ser desprezado.

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Por fim, Lassalle (2001, p. 16) analisa se a “pequena burguesia” e a “classe operária” podem ser vistas como parcelas da Constituição:

Imaginemos agora que o governo, querendo proteger e satisfazer os privilégios da nobreza, dos banqueiros, dos grandes industriais e dos grandes capitalistas, tentasse privar das suas liberdades políticas a pequena burguesia e a classe operária. Poderia fazê-lo?

Infelizmente, sim; poderia, mesmo que fosse transitoriamente. Os fatos nos demonstram que poderia.

Mas, e se o governo pretendesse tirar à pequena burguesia e ao operariado não somente as suas liberdades políticas, mas a sua liberdade pessoal, isto é, pretendesse transformar o trabalhador em escravo ou servo, retornando à situação em que se viveu durante os tempos da Idade Média?  Subsistiria essa pretensão?

Não, embora estivessem aliados ao rei a nobreza e toda a grande burguesia.

Seria tempo perdido.

O povo protestaria, gritando: Antes morrer do que sermos escravos! A multidão sairia à rua sem necessidade de que os seus patrões fechassem as fábricas, a pequena burguesia juntar-se-ia solidariamente com o povo e a resistência desse bloco seria invencível, pois nos casos extremos e desesperados, também o povo, nós todos, somos uma parte integrante da Constituição.

Com efeito, nos períodos dramáticos e revolucionários, parcela substantiva do povo se torna irracional e explode a violência.

Eis a tese central de Lassalle (2001, p. 17): “Esta é, em síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos fatores reais de poder que regem uma nação”

Nesse passo, Lassalle (2001, p. 17) revela que a Constituição jurídica não passa de uma simples “folha de papel”:

Mas que relação existe com o que vulgarmente chamamos Constituição? Com a Constituição jurídica? Não é difícil compreender a relação que ambos os conceitos guardam entre si. Juntam-se esses fatores reais do poder, os escrevemos em uma folha de papel e eles adquirem expressão escrita. A partir desse momento, incorporados a um papel, não são simples fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito – instituições jurídicas. Quem atentar contra eles atenta contra a lei e por conseguinte é punido.

Ninguém desconhece o processo que se segue para transformar esses escritos em fatores reais do poder, transformando-os dessa maneira em fatores jurídicos.

Lassalle (2001, p. 21) demonstra que a organização do poder institucionalizado é a justificativa de sua permanência e de seu controle sobre o poder popular desorganizado, porquanto sejam as forças armadas alicerçadas na hierarquia, na disciplina e na obediência.

Entretanto, segundo Lassalle (2001, p. 22), o poder da nação apesar de infinitamente maior não é tão organizado quanto o poder das forças armadas e a nação carece do principal instrumento do aparato de segurança do poder institucionalizado: de armas. A nação fabrica ou paga as armas que a mantém domesticada ou neutralizada.

Para Lassalle (2001, p. 23) essas seriam as razões explicativas da supremacia do poder organizado das instituições sobre o poder desorganizado da nação. No entanto, a população pode um dia se revoltar, cansada de ver os interesses gerais da nação mal conduzidos e derrotar aqueles que em vez de usar o poder para servir ao povo, servem-se do poder contra o próprio povo, pois o poder da nação é invencível, acentua Lassalle (2001, p. 34).

Nesse compasso, Lassalle (2001, p. 23) explicita as diferenças entre a Constituição real e a Constituição jurídica:

Tenho demonstrado a relação que guardam entre si as duas constituições de um país: essa constituição real e efetiva, integralizada pelos fatores reais de poder que regem a sociedade, e essa outra constituição escrita, à qual, para distingui-la da primeira, vamos denominar folha de papel.

Lassalle (2001, p. 25) recorda que todas as sociedades sempre tiveram um modo de ser e de funcionar, sempre tiveram uma constituição no sentido real, mas a modernidade trouxe uma novidade para o cenário social: a constituição escrita na folha de papel, cuja principal missão é o estabelecimento documental de todas as instituições e princípios do governo vigente.

Lassalle (2001, p. 33), em tópico sobre a “arte” e a “sabedoria” constitucionais, inicia demonstrando que a erupção revolucionária não abala o direito privado, mas o direito público constitucional desmorona. Indaga Lassalle: “Quando podemos dizer que uma constituição escrita é boa e duradoura?” Lassalle oferece a seguinte solução:

A resposta é clara e parte logicamente de quanto temos exposto: Quando esta constituição escrita corresponder à constituição real e tiver suas raízes nos fatores do poder que regem o país.

Onde a constituição escrita não corresponder à real, irrompe inevitavelmente um conflito que é impossível evitar e no qual, mais dia menos dia, a constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá necessariamente, perante a constituição real, a das verdadeiras forças vitais do país.

Conclui Lassalle (2001, p. 40):

Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país vigem e as constituições não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores reais do poder que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar.

[...]

Se alguma vez os meus ouvintes ou leitores tiverem que dar seu voto para oferecer ao país uma Constituição, estou certo de que saberão como devem ser feitas estas coisas e que não limitarão a sua intervenção redigindo e assinando uma folha de papel, deixando incólumes as forças reais que mandam no país.

Essa é a premissa estampada por Ferdinand Lassalle: os problemas constitucionais não questões jurídicas, não se resolvem de acordo com as normas do direito, mas se cuidam de questões políticas, resolvidas com base nas conveniências, nos interesses e na força.

Peço, vez mais, licença para recordar uma página da história constitucional brasileira que se afivela ao pensamento de Lassalle.

Trata-se do Mandado de Segurança n. 3.557, julgado em 7.11.1956, no qual o Supremo Tribunal Federal apreciou impetração do Presidente João Café Filho em face da Mesa do Congresso Nacional que se recusava a retransmitir-lhe o cargo de Presidente da República, tendo em vista a pressão exercida pelas Forças Armadas, especialmente pelo General Henrique Teixeira Lott, Ministro da Guerra.

Nesse julgamento, o Tribunal reconhece a sua incapacidade de impor a força jurídica da Constituição em face da força política das Armas. Valiosa a reveladora passagem do voto do Ministro Nelson Hungria:

Qual o impedimento mais evidente, e insuperável pelos meios legais, do titular da Presidência da República, que o obstáculo oposto por uma vitoriosa insurreição armada?

Afastado ‘o manto diáfano da fantasia sobre a nudez rude da verdade’, a resolução do Congresso não foi senão a constatação da impossibilidade material em que se acha o senhor Café Filho, de reassumir a Presidência da República, em face da imposição dos tanks e baionetas do Exército, que estão acima das leis, da Constituição e, portanto, do Supremo Tribunal Federal. Podem ser admitidos os bons propósitos dessa imposição, mas como a santidade dos fins não expunge a ilicitude dos meios, não há jeito, por mais especioso, de considerá-la uma situação que possa ser apreciada e resolvida de jure por esta Corte.

É uma situação de fato criada e mantida pela força das armas, contra a qual seria, obviamente, inexeqüível qualquer decisão do Supremo Tribunal. A insurreição é um crime político, mas, quando vitoriosa, passa a ser um título de glória, e os insurretos estarão a cavaleiro do regime legal que infringiram; sua vontade é que conta, e nada mais.

[...]

Contra uma insurreição pelas armas, coroada de êxito, somente valerá uma contra-insurreição com maior força. E esta, positivamente, não pode ser feita pelo Supremo Tribunal, posto que este não iria cometer a ingenuidade de, numa inócua declaração de princípios, expedir mandado para cessar a insurreição.

Aí está o nó górdio que o Poder Judiciário não pode cortar, pois não dispõe da espada de Alexandre. O ilustre impetrante, ao que me parece, bateu em porta errada. Um insigne professor de Direito Constitucional, doublé de exaltado político partidário, afirmou, em entrevista não contestada, que o julgamento deste mandado de segurança ensejaria ocasião para se verificar se os Ministros desta Corte ‘eram leões de verdade ou leões de pé de trono’.

Jamais nos inculcamos leões. Jamais vestimos, nem podíamos vestir, a pele do rei dos animais. A nossa espada é um mero símbolo. É uma simples pintura decorativa no teto ou na parede das salas de Justiça. Não pode ser oposta a uma rebelião armada. Conceder mandado de segurança contra esta seria o mesmo que pretender afugentar leões autênticos sacudindo-lhes o pano preto de nossas togas.

Senhor Presidente, o atual estado de sítio é perfeitamente constitucional, e o impedimento do impetrante para assumir a Presidência da República, antes de ser declaração do Congresso, é imposição das forças insurrecionais do Exército, contra a qual não há remédio na farmacologia jurídica. ­

É induvidoso que diante da força real do poder das armas a força simbólica do direito nada pode fazer.

Nada obstante esse dado incontrastável da realidade política, em 1959 Konrad Hesse proferiu palestra na qual procurou apresentar uma alternativa à tese ácida de Ferdinand Lassalle. No Brasil a citada palestra foi publicada sob o título de “A Força Normativa da Constituição” (1991).

Em sua exposição, Hesse principia recordando a aludida palestra de Ferdinand Lassalle e as teses defendidas por esse citado pensador constitucional, mormente a ideia de que a Constituição jurídica não passa de uma “folha de papel” inútil se divorciada dos fatores reais de poder, de sorte a revelar uma contradição entre o Direito Constitucional e a própria essência da Constituição.

Incomodado com essa perspectiva, Hesse (1991, p. 11)  aduz:

Essa negação do direito constitucional importa na negação do seu valor enquanto ciência jurídica. Como toda ciência jurídica, o Direito Constitucional é ciência normativa; Diferenciando-se, assim, da Sociologia e da Ciência Política enquanto ciências da realidade. Se as normas constitucionais nada mais expressam do que relações fáticas altamente mutáveis, não há como deixar de reconhecer que a ciência da Constituição jurídica constitui uma ciência jurídica na ausência do direito, não lhe restando outra função senão a de constatar e comentar os fatos criados pela Realpolitik. Assim, o Direito Constitucional não estaria a serviço de uma ordem estatal justa, cumprindo-lhe tão-somente a miserável função – indigna de qualquer ciência – de justificar as relações de poder dominantes.

Tenha-se que Hesse falou para um povo escarmentado pelos horrores impostos pelo nazifascismo e praticamente se reconstruindo, material e moralmente, após a derrota na Segunda Guerra Mundial.

Seguindo o método de Lassalle, Hesse (1991, p. 11) faz várias indagações provocativas:

A questão que se apresenta diz respeito à força normativa da Constituição. Existiria, ao lado do poder determinante das relações fáticas, expressas pelas forças políticas e sociais, também uma força determinante do Direito Constitucional? Qual o fundamento e o alcance dessa força do Direito Constitucional? Não seria essa força uma ficção necessária para o constitucionalista, que tenta criar a suposição de que o direito domina a vida do Estado, quando na realidade, outras forças mostram-se determinantes?

Na construção de suas respostas, Hesse procura demonstrar que a análise do tema pressupõe o reconhecimento das relações entre o texto normativo e o contexto social, no seu condicionamento recíproco, afastando o prisma isolado do positivismo formalista ou do positivismo sociológico, levando a uma superação da radical separação entre a realidade e norma, entre ser (Sein) e dever-ser (Sollen).

Com efeito, aduz Konrad Hesse (1991, p. 14):

A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade. Essa pretensão de eficácia (Geltungsanspruch) não pode ser separada das condições históricas de sua realização, que estão, de diferentes formas, numa relação de interdependência, criando regras próprias que não podem ser desconsideradas. Devem ser contempladas aqui as condições naturais, técnicas, econômicas, e sociais. A pretensão de eficácia da norma jurídica somente será realizada se levar em conta essas condições. Há de ser, igualmente, contemplado o substrato espiritual que se consubstancia num determinado povo, isto é, as concepções sociais concretas e o baldrame axiológico que influenciam decisivamente a conformação, o entendimento e a autoridade das proposições normativas.

Para Konrad Hesse, a Constituição não é mero reflexo da realidade social, mas um elemento capaz de imprimir ordem e conformar essa realidade social e política, visto que há mútuo condicionamento entre a “Constituição real” e a “Constituição jurídica”, em uma relação de coordenação, e não de dependência recíproca, porquanto a pretensão de eficácia da Constituição a coloca como uma força normativa social.

Konrad Hesse (1991, p. 18) critica o formalismo estéril divorciado da realidade, porquanto regulador de inúteis abstrações hipotéticas, e diz: “se as leis culturais, sociais, políticas e econômicas são ignoradas pela Constituição, carece ela do imprescindível germe de sua força vital. A disciplina normativa contrária a essas leis não logra concretizar-se”

Hesse se louva no pensamento de Wilhelm Humboldt e aduz que a norma constitucional somente constrói o futuro se considerar o presente, e se estiver determinada pelo “princípio da necessidade”. Diz Hesse (1991, p. 18):

Em outras palavras, a força vital e a eficácia da Constituição assentam-se na sua vinculação às forças espontâneas e às tendências dominantes do seu tempo, o que possibilita o seu desenvolvimento e a sua ordenação objetiva. A Constituição converte-se, assim, na ordem geral objetiva do complexo de relações da vida.

Avizinhamo-nos do coração da tese de Hesse que consiste em identificar plenamente o texto constitucional com o contexto social, pois isso seria acolher a premissa de Lassalle. Diz Hesse (1991, p. 19):

Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral  - particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional -, não só a vontade do poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung).

Eis a tese de Hesse: a vontade de Constituição pode prevalecer sobre a vontade do poder, desde que haja uma consciência constitucional ou cívica por parte dos principais interessados e responsáveis pela concretização da Constituição.

Essa vontade constitucional provém de três vertentes diversas, segundo Hesse (1991, p. 19):

Baseia-se na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme. Reside, igualmente, na compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso, necessita de estar em constante processo de legitimação). Assenta-se também na consciência de que, ao contrário do que se dá com uma lei do pensamento, essa ordem não logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana. Essa ordem adquire e mantém sua vigência através de atos de vontade.

Fincadas essas estacas conceituais, Hesse aponta os caminhos que devem ser percorridos para que uma Constituição tenha efetiva e eficaz força normativa, revelando os limites do texto constitucional e os pressupostos das normas constitucionais.

Segundo Hesse, o conteúdo da Constituição deve considerar os elementos sociais, culturais, políticos, históricos, econômicos e deve considerar o estado espiritual de seu tempo, em busca de uma ordem jurídica justa e adequada, de modo a assegurar o apoio e a defesa da consciência geral. A Constituição deve ser estimada pelo povo.

A Constituição deve ser aberta e principiológica, não sendo adequado constitucionalizar interesses momentâneos ou particulares ou situações muito específicas, de sorte a provocar a necessidade de permanentes revisões constitucionais, com a sua inevitável desvalorização normativa, enuncia Hesse.

Outrossim, a Constituição deve contemplar uma visão plural dos complexos interesses existentes em uma sociedade, não devendo se assentar em uma estrutura unilateral, pois a dinâmica de um mundo em permanente transformação exige a preservação e a incorporação da estrutura contrária, mediante meticulosa ponderação, afirma Hesse.

Saindo da órbita do conteúdo e avançando no delicado tema da práxis constitucional, Hesse convida a todos a sacrificar seus interesses particulares e egoísticos em favor da preservação da Constituição, pois isso fortalece o respeito à Constituição e garante um bem da vida indispensável à essência do Estado democrático. Em vez da vontade do “interesse”, prevaleça a vontade de Constituição.

Ainda no aspecto da prática constitucional, Hesse alude acerca da interpretação constitucional que deve ser voltada para a ótima concretização da norma constitucional, cabendo ao intérprete verificar as possibilidades evolutivas do texto, adaptando-o às contingências e mudanças de tempo, sem que haja necessidade de  revisão constitucional, bastando mudar a interpretação sem mudar o texto.

Eis o sumário das principais teses de Hesse (1991, pp. 24-27):

A Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta de seu tempo. A pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se se levar em conta essa realidade. Graças ao elemento normativo, ela ordena e conforma a realidade política e social. As possibilidades, mas também os limites da força normativa da Constituição resultam da correlação entre ser (Sein) e dever-ser (Sollen).

A Constituição jurídica logra conferir forma e modificação da realidade. (...) Portanto, a intensidade da força normativa da Constituição apresenta-se, em primeiro plano, como uma questão de vontade normativa, de vontade da Constituição (Wille zur Verfassung).

[...]

Quanto mais intensa for a vontade de Constituição, menos significativas hão de ser as restrições e os limites impostos à força normativa da Constituição. A vontade de Constituição não é capaz, porém, de suprimir esses limites. Nenhum poder do mundo, nem mesmo a Constituição, pode alterar as condicionantes naturais. Tudo depende, portanto, de que se conforme a Constituição a esses limites. Se os pressupostos da força normativa encontrarem correspondência na Constituição, se as forças em condições de violá-la ou de alterá-la mostrarem-se dispostas a render-lhe homenagem, se, também em tempos difíceis, a Constituição lograr preservar a sua força normativa, então ela configura verdadeira força viva capaz de proteger a vida do Estado contra as desmedidas investidas do arbítrio. Não é, portanto, em tempos tranqüilos e felizes que a Constituição normativa vê-se submetida à sua prova de força. Em verdade, esta prova dá-se nas situações de emergência, nos tempos de necessidade.

[...]

 Por isso, o Direito Constitucional depende das ciências da realidade mais próximas, como a História, a Sociologia e a Economia.

Isso significa que o Direito Constitucional deve preservar, modestamente, a consciência dos seus limites. Até porque a força normativa da Constituição é apenas uma das forças de cuja atuação resulta a realidade do Estado. E esta força tem limites. A sua eficácia depende da satisfação dos pressupostos acima enunciados.

[...]

Essa orientação torna imperiosa a assunção de uma visão crítica pelo Direito Constitucional, pois nada seria mais perigoso do que permitir o surgimento de ilusões sobre questões fundamentais para a vida do Estado.

Hesse analisa a situação peculiar da Alemanha submetida às forças militares de ocupação e visita o “estado de necessidade constitucional”. Alfim conclui (1991, p. 32):

Não se deve esperar que as tensões entre ordenação constitucional e realidade política e social venham a deflagrar sério conflito. Não se poderia, todavia, prever o desfecho de tal embate, uma vez que os pressupostos asseguradores da força normativa da Constituição não foram plenamente satisfeitos. A resposta à indagação sobre se o futuro do nosso Estado  é uma questão de poder ou um problema jurídico depende da preservação e do fortalecimento da força normativa da Constituição, bem como de seu pressuposto fundamental, a vontade de Constituição. Essa tarefa foi confiada a todos nós.

Conquanto estivesse falando da Constituição alemã e para os alemães, as lições de Hesse podem ser aproveitadas por todos os povos e nações e em todas as épocas. Assim como as de Lassalle.

Creio que Ferdinand Lassalle e Konrad Hesse falam coisas similares. Com efeito, a “Constituição jurídica” – a folha de papel –  tem sucumbido em face da “Constituição real” – dos fatores reais do poder – por conta da ausência de organização dos maiores interessados na concretização da Constituição: o povo.

Se houver uma consciência constitucional do povo e dos governantes, mas sobretudo do povo, como alude Hesse, a Constituição se apresentará como um verdadeiro fator real de poder por conta de sua força normativa conformadora e transformadora da realidade. Esse tem sido o principal desafio do Direito Constitucional enquanto instrumento normativo de transformação social.  Como a Constituição de um país se torna norma jurídica efetiva e eficaz?

Para esse complexo problema, utilizaremos as contribuições de Karl Loewenstein (1965).

A edição original da aludida obra de Loewenstein surgiu no ano de 1957 com o título em inglês Political Power and the governmental Process, é que nada obstante seja o autor alemão, teve de emigrar para os Estados Unidos em decorrência da Segunda Guerra Mundial, haja vista a sua ascendência judaica. 

Pois bem, Loewenstein (1965, p. 23) analisa a anatomia do processo político-governamental e a dinâmica desse processo, principia seu texto com a “tríade enigmática” que domina a vida humana: “Os três incentivos fundamentais que dominam a vida do homem na sociedade e regem a totalidade das relações humanas, são: o amor, a fé e o poder; de uma maneira misteriosa, estão unidos e entrelaçados” (tradução livre).

Para Loewenstein o poder tem um caráter demoníaco e patológico que leva ao cometimento de abusos e à corrupção e degeneração dos costumes, por isso é imprescindível controlá-lo. Eis o núcleo do constitucionalismo: limitar e controlar os detentores do exercício do poder político; constranger o governante.

Após percorrer os principais temas do direito constitucional e da ciência política, Loewenstein (1965, p.  149) intitula o Capítulo V de sua obra com o rótulo “A Constituição” e aduz:

A classificação de um sistema político como democrático constitucional depende da existência ou carência de instituições efetivas por meio das quais o exercício do poder político esteja distribuído entre os detentores do poder, e por meio dos quais os detentores do poder estejam submetidos ao controle dos destinatários do poder, constituídos em detentores supremos do poder.

Sendo a natureza humana como é, não cabe esperar que o detentor ou os detentores do poder sejam capazes, por autolimitação voluntária, de liberar os destinatários do poder e a si mesmos do trágico abuso do poder. Instituições para controlar o poder não nascem nem operam por si sós, senão que deveriam ser criadas ordenadamente e incorporadas conscientemente no processo do poder. Há passados muitos séculos desde que o homem político aprendeu que a sociedade justa, que lhe outorga e garante seus direitos individuais, depende da existência de limites impostos aos detentores do poder no exercício de seu poder, independentemente de se a legitimação de seu domínio tem fundamentos fáticos, religiosos ou jurídicos. Com o tempo se tem reconhecido que a melhor maneira de alcançar este objetivo será fazendo constar os freios que a sociedade deseja impor aos detentores do poder em forma de um sistema de regras fixas – a Constituição – destinada a limitar o exercício do poder político. A Constituição se converteu assim no dispositivo fundamental para o controle do poder político. (Tradução livre)

Segundo Loewenstein, o telos (a finalidade) da Constituição consiste em criar mecanismos institucionais que sirvam de limites ao exercício do poder político, especialmente em face dos abusos governamentais, e que permitam a participação legítima dos destinatários do poder no processo político.

Loewenstein (1965, p. 200), após analisar a dinâmica das mudanças constitucionais, fere o tema do “sentimento constitucional”, e aduz:

Com a expressão ‘sentimento constitucional’ (Verfassungsgefûhl) se toca um dos fenômenos psicológico-sociais do existencialismo político mais difíceis de captar. Se poderia descrever como aquela consciência da comunidade que, transcendendo a todos os antangonismos e tensões existentes político-partidários, econômico-sociais, religiosos ou de outro tipo, integra a detentores e a destinatários do poder no marco de uma ordem comunitária obrigatória, justamente a constituição, submetendo o processo político aos interesses da comunidade. Este fenômeno pertence ao imponderável da existência nacional e não pode ser produzido racionalmente, ainda que possa ser fomentado por uma educação da juventude [...] Sem embargo, a formação do sentimento de constitucionalidade depende amplamente dos fatores irracionais, da mentalidade e da experiência histórica de um povo, especialmente se a constituição tiver se saído bem em épocas de necessidade nacional. (Tradução livre)

No ponto que nos interessa mais imediatamente, Loewenstein inicia a apresentação de sua classificação ontológica das Constituições, aquilo que essencialmente têm sido as Constituições. Antes, contudo, ele jocosamente fala dos modelos tradicionais de classificação das Constituições e recorda a figura do proverbial “homem de Marte”, que se a esse alienígena fossem apresentadas as Constituições dos países não poderia imaginar de sob as coincidência estruturais, freqüentemente, textuais dessas disposições jazem as mais diferentes conformações da dinâmica do poder.

Com efeito, as tradicionais classificações constitucionais não dizem nada acerca da essência (ontologia) da Constituição naquilo que efetivamente interessa, ou seja, se a Constituição se revela um instrumento normativo de controle efetivo do exercício do poder político, segundo Loewenstein.

Isso quer dizer as clivagens entre as constituições materiais ou formais, rígidas ou flexíveis, sintéticas ou analíticas, liberais ou sociais, monárquicas ou republicanas, presidencialistas ou parlamentaristas, não revelam a essência do fenômeno constitucional, que será capturada se se analisar a realidade normativa, em vez de simples leitura do texto constitucional.

Nessa perspectiva, Loewenstein propõe um novo critério classificatório: o ontológico, que visa considerar o grau de concordância e conformidade entre as normas constitucionais e a realidade do processo político, que verifica a correspondência entre o texto normativo e o contexto social.

Por esse critério, Loewenstein diferencia as constituições em normativas ou nominais ou semânticas.

Segundo Loewenstein (1965, p. 217), a Constituição é normativa na medida em que os detentores e os destinatários do poder observam e cumprem as normas dimanadas dela – a Constituição. As condições para o surgimento da Constituição normativa são as seguintes:

Em uma ampla medida, a questão fundamental sobre se fará realidade a conformação específica do poder prevista constitucionalmente depende do meio social e político onde a constituição tem que valer. Quando se implanta, sem uma prévia educação política, uma democracia constitucional plenamente articulada em um Estado, recém liberado de uma autocracia tradicional ou da tutela colonial, é quase um milagre se deita raízes imediatamente. Para que uma constituição seja viva, deve ser, para tanto, efetivamente “vivida” por destinatários e detentores do poder, necessitando um ambiente nacional favorável para sua realização. A tradição autocrática no processo governamental tem que haver-se perdido o suficiente entre os governantes e os governados, para que o Estado constitucional tenham uma “faire chance” de êxito. Para que uma constituição seja viva, não é suficiente que seja válida em sentido jurídico. Para ser real e efetiva, a constituição terá que ser observada lealmente por todos os interessados e terá que estar integrada na sociedade política, e esta nela. A constituição e a comunidade terão que ter passado por uma simbiose. Somente neste caso cabe falar de uma constituição normativa: suas normas dominam o processo político ou, ao inverso, o processo de poder se adapta às normas da Constituição e se submete a elas. Para usar de uma expressão da vida diária: a constituição é como um traje que serve bem e que se usa realmente. (Tradução livre)

O outro tipo de constituição é o nominal, que vem a ser aquele sistema jurídico válido, mas que ainda não tem força normativa suficiente para domesticar o processo político, de sorte que há uma clivagem entre o texto constitucional e a realidade social. Eis a motivação do sistema constitucional nominal, segundo Loewenstein (1965, p. 218):

O que a constituição nominal implica é que os pressupostos sociais e econômicos existentes – por exemplo, a ausência de educação geral e, no particular, de educação política, a inexistência de uma classe média independente e outros fatores – no momento atual operam contra uma concordância absoluta entre as normas constitucionais e as exigências do processo político. A situação, de fato, impede, ou não permite por agora, a completa integração das normas constitucionais na dinâmica da vida política. Provavelmente, a decisão política que conduziu a promulgar a constituição, ou este tipo de constituição, foi prematura. A esperança, sem embargo, persiste, dada a boa vontade dos detentores e dos destinatários do poder, de que cedo ou tarde a realidade do processo político corresponderá ao modelo estabelecido na constituição. A função primeira da constituição nominal é educativa; seu objetivo é, em um futuro mais ou menos distante, converter-se em uma constituição normativa e determinar realmente a dinâmica do processo político no lugar de estar submetida a ela. E para continuar com nosso exemplo: o traje está pendurado no armário durante um certo tempo e será usado quando o corpo nacional houver crescido.(Tradução livre)

Por fim, Loewenstein visita o terceiro tipo de sistema constitucional, o semântico, que vem a ser aquela Constituição que, ao invés de controlar e limitar os abusos governamentais, é utilizada para justificar, dando uma aparência de legalidade constitucional, os abusos políticos. É uma Constituição paradoxal, pois a essência de toda Constituição é frear o abuso político, mas a semântica torna o poder sem peias e sem amarras. Eis a explicação de Loewenstein (1965, p. 219):

A conformação do poder está congelada em benefício dos detentores fáticos do poder, independentemente de que esses sejam uma pessoa individual (ditador), uma junta, um comitê, uma assembléia ou um partido. Esse tipo se pode designar como constituição semântica. Se não houvesse em absoluto nenhuma constituição formal, o desenvolvimento fático do processo político não seria notavelmente diferente. Em lugar de servir à limitação do poder, a constituição semântica é aqui um instrumento para estabilizar e eternizar a intervenção dos dominantes fáticos da localização do poder político. E para continuar com o exemplo anterior: o traje não é em absoluto um traje, mas um disfarce. (Tradução livre)

A Constituição semântica é típica dos regimes políticos antidemocráticos ou autoritários. A nominal é típica dos países em desenvolvimento social, econômico e político, que têm pouca tradição democrática ou recém saídos do autoritarismo. E a normativa é própria dos países mais desenvolvidos, com instituições mais estáveis e com a sociedade civil melhor organizada.

Loewenstein chama a atenção para o simbolismo constitucional e para as aparências de constitucionalidade, e critica uma ingenuidade otimista do mundo ocidental que apostou todas as suas esperanças nos textos constitucionais escritos, e fala dos perigos em torno da erosão da consciência ou do sentimento de constitucionalidade decorrente dessas imensas expectativas depositadas nas Constituições, muitas vezes divorciadas da realidade social de cada povo e nação.

Essas frustrações constitucionais, segundo Loewenstein, podem atrair panacéias escatológicas das “flautas mágicas dos caçadores de ratos”, com o surgimento de salvadores da pátria, com fortes tendências autoritárias, pois, continua Loewenstein, a crise de normatividade da constituição escrita se reflete na crise do próprio Estado democrático constitucional do futuro.

Segundo Loewenstein, a normatividade constitucional passa necessariamente por uma consciência constitucional dos governantes e dos governados. Essa é praticamente a mesma tese de Hesse. E inclusive de Lassalle, na medida em que o povo deve ser o principal fator real de poder integrante de uma Constituição.

Pois bem, à luz do que expusemos, podemos visitar os sistemas constitucionais lusófonos e verificar se as suas Constituições não passam de “folhas de papel”, seqüestradas pelos fatores reais de poder; ou se têm “força normativa”, capazes de conformar e ordenar o poder político e a sociedade; e nessa linha, se são sistemas constitucionais normativos, nominais ou semânticos.

Tenha-se que além dessas aludidas perspectivas constitucionais, utilizaremos informações e dados acerca das condições de vida das populações dos Estados ora examinados, veremos o grau de respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, se vige um sistema democrático com respeito pelas liberdades fundamentais, se o exercício do poder público é pautado pela decência e honestidade do administrador e do político, ou seja, surpreenderemos se os indivíduos e a coletividade vivenciam um sistema verdadeiramente de justiça e de paz, a partir ou a despeito dos textos constitucionais respectivos.

Para alcançar essa finalidade, utilizaremos de dados e informações de organismos ou entidades internacionais de reconhecida seriedade e insuspeita corretude.

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

LUIS CARLOS é piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; orador da Turma "Sexagenária" - Prof. Antônio Martins Filho; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA, do Centro Universitário de Brasília - CEUB e do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; e "Lições de Direito Constitucional".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. O sistema constitucional dos países lusófonos.: Um breve passeio no modelo jurídico-político de Angola, do Brasil, de Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, à luz das concepções de Ferdinand Lassalle, Konrad Hesse e Karl Loewenstein. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3494, 24 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23514. Acesso em: 21 nov. 2024.

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