5. Liberdade religiosa versus não discriminação a homossexuais
5.1. Possível colisão entre os direitos fundamentais
O princípio da liberdade religiosa e o princípio da igualdade ou não discriminação se encontram no mesmo grau de hierarquia e possuem o mesmo nível de força e vinculação.
Trata-se de valores muito caros a sociedade – liberdade e igualdade. Ambos constituem o alicerce do Estado Democrático de Direito, sendo impossível a existência de um sem o outro.
Exatamente, em razão disso é que o ordenamento brasileiro atribuiu o mesmo peso genérico a eles.
Por isso, em uma suposta colisão entre esses princípios em um caso concreto o intérprete enfrentaria grande dificuldade.
Segundo Glauber Moreno Talavera, a compatibilização entre o princípio da igualdade e o princípio da liberdade é difícil, conforme se verifica no trecho abaixo:
No plano conceitual, a questão atacada é de jaez principiológico. Todos sabem o quão difícil é compatibilizar-se os princípios da liberdade e da igualdade, pois, como adverte Norberto Bobbio, o libertarismo e o igualitarismo fundam suas raízes em concepções do homem e da sociedade profundamente diversas, sendo que para o liberal o fim principal é a expansão da personalidade individual e, para o igualitário, o fim principal é o desenvolvimento da comunidade em seu conjunto, mesmo que ao custo de diminuir a esfera de liberdade dos singulares. Elucida, ainda, o eminente jusfilósofo peninsular, que a única forma de igualdade, que é compatível com a liberdade tal como compreendida pela doutrina liberal, é a igualdade na liberdade, que tem como corolário a idéia de que cada um deve gozar de tanta liberdade quanto compatível com a liberdade dos outros.[33]
Todavia, em regra, a liberdade religiosa, que surgiu como verdadeiro desdobramento da liberdade de expressão ou manifestação do pensamento, não pode ser alvo de limitações, senão aquelas previstas na Constituição, segundo a jurisprudência assente do Supremo Tribunal Federal:
“Limitações à liberdade de manifestação do pensamento, pelas suas variadas formas. Restrição que há de estar explícita ou implicitamente prevista na própria Constituição”. [34]
Por tudo isso, é que se pode afirmar que as religiões – cristianismo, judaísmo, islamismo – que não concordam com o homossexualismo têm direito de se manifestar criticamente contra tal comportamento.
E essa posição ou manifestação religiosa contra o homossexualismo não pode ser considerada homofobia ou discriminação, pois tais manifestações se encontram dentro dos limites constitucionais do princípio da liberdade religiosa.
Por outro lado, afirmar que manifestação religiosa é homofobia pode ser verdade se os religiosos extrapolarem os limites de sua liberdade, praticando atos de violência contra os homossexuais.
Citações bíblicas, opiniões contrárias, críticas ao homossexualismo, e não contra os homossexuais como pessoas individualizadas, são atitudes que se coadunam com os princípios da liberdade em seus vários aspectos, assim como com o princípio do Estado Democrático de Direito.
Vale ressaltar a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal que nesse sentido preceitua: “A liberdade de expressão constitui-se em direito fundamental do cidadão, envolvendo o pensamento, a exposição de fatos atuais ou históricos e a crítica.” [35]
Enquanto as manifestações religiosas se restringirem aos limites do princípio da liberdade de expressão religiosa, não poderão ser acusadas de discriminação ou homofobia.
Nesse sentido, nem o legislativo nem o judiciário ou executivo podem proibir os religiosos de emitir qualquer opinião contra o homossexualismo, sob pena de violarem o direito fundamental à liberdade religiosa.
Da mesma forma que não se pode acusar um homossexual de crime de discriminação religiosa por criticar qualquer instituição religiosa.
No afã de defender sua homossexualidade, muitos criticam as religiões e seus líderes. Todavia, desde que não extrapolem os limites de sua liberdade de expressão, eles não estarão cometendo crime contra a liberdade religiosa ou crime contra honra.
Todos são igualmente livres para criticar uns aos outros.
A liberdade e a igualdade sempre se entrelaçam, de forma que não pode haver igualdade sem liberdade, nem muito menos liberdade sem igualdade.
Desse modo, não é necessária nenhuma restrição para a concretização desses dois preceitos principiológicos em questão. É perfeitamente possível a convivência entre eles em um mesmo contexto social.
Portanto, percebe-se, em uma análise abstrata dos princípios constitucionais estudados, que não há uma colisão entre os direitos fundamentais da liberdade religiosa e da não discriminação aos homossexuais.
Neste caso, deve-se realizar uma harmonização dos direitos fundamentais, aplicando os princípios da unidade da constituição e da harmonização dos direitos fundamentais.
Entretanto, o direito não é uma ciência exata e, por isso, pode acontecer casos concretos em que configurem uma colisão entre o direito à liberdade religiosa e o direito a não discriminação. Nesse caso, é imperioso que o aplicador do direito se valha da técnica da ponderação de interesses, à luz do princípio da proporcionalidade.
Na colisão de direitos fundamentais, verifica-se a impossibilidade de convivência de dois direitos fundamentais ao mesmo tempo, em um determinado caso concreto. Por isso, surge a necessidade de restrição de um direito fundamental de forma que se possa solucionar o conflito.
5.2. Projeto de Lei nº 122/2006
O Projeto de Lei nº 122, iniciado na Câmara dos Deputados em 2006 e atualmente tramitando no Senado Federal, pretende incriminar a descriminação aos homossexuais.
Quanto a ele, aplica-se o mesmo raciocínio.
Os valores constitucionalmente protegidos como a vida, a liberdade, a igualdade são bens que devem ser juridicamente tutelados na esfera penal, pois são considerados relevantes para a sociedade.
Segundo os princípios da subsidiariedade, da intervenção mínima e da ofensividade do direito penal, a criminalização do ato de discriminação contra homossexuais seria justificada, já que se trata da proteção do bem jurídico fundamental: igualdade.
Aliás, a punição de todas as formas de discriminações na esfera penal é legítima, pois se coaduna perfeitamente com os preceitos constitucionais de proteção à igualdade e repressão a todas as formas de discriminações.
O próprio princípio da igualdade, como já visto, abrange o resguardo efetivo das pessoas por meio do Estado, através de leis penais quando necessário.
É o que acontece com os atos definidos na Lei nº 7.716 de 1989 (com as modificações introduzidas pelas Leis nºs 8.081 de 1990, 8.882 de 1994 e 9.459 de 1997) e com suas modificações pretendidas pelo Projeto de Lei nº 122 de 2006, além das pretensões em dá nova redação ao § 3º do art. 140 do Decreto–Lei nº 2.849, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, e ao art. 5º da Consolidação das Leis do Trabalho, entre outras providências.
Pretende o PL reprimir de forma mais veemente as arbitrariedades cometidas historicamente por diversos segmentos da sociedade contra os homossexuais.
Note-se que a referida Lei nº 7.716, mesmo alterada, continua a prever a punição de crimes resultantes de outros tipos de discriminação ou preconceito, que não apenas aquela contra homossexuais, como por exemplo, as discriminações em razão de raça, cor, etnia, religião ou procedência regional.
Destaca-se, nesse momento, a proteção da mesma Lei contra discriminações em razão da religião, o que demonstra que o legislador não está alheio aos direitos e liberdades conferidas também a esse significativo seguimento da sociedade.
O que se pode depreender do Projeto de Lei quanto ao confronto entre a liberdade religiosa, de um lado, e a não discriminação a homossexuais, de outro, é que não há preterição dos direitos relativos à religião, e nem poderia haver face à natureza constitucional deste direito fundamental.
Da mesma forma que não se admite qualquer discriminação por motivo religioso, também não se quer admitir qualquer discriminação por motivo de orientação sexual.
Busca-se, portanto, exatamente promover a igualdade entre todos os segmentos da sociedade, respeitando todas as diferenças.
6. Conclusão
Dessas singelas considerações, pode-se aferir que não há como negar a existência de um histórico de discriminações que precisa urgentemente ser desconstruído para que os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana possam verdadeiramente ser realizados em uma sociedade justa.
As discriminações religiosas ou em razão da orientação sexual escolhida por uma pessoa devem ser banidas do ordenamento brasileiro.
Por isso, todas as ações do Estado nesse sentido são muito bem vindas, sejam elas através de políticas públicas ou por meio de leis, desde que elas sejam imparciais e se coadunem com a realidade da sociedade brasileira.
A conclusão que se pode chegar é que tanto o direito à não discriminação aos homossexuais quanto o direito à liberdade religiosa devem ser garantidos, respeitados e protegido pelo ordenamento jurídico brasileiro e pelas autoridades políticas, segundo o mesmo peso e a mesma medida.
Assim, o Projeto de Lei n° 122 de 2006 responde a esses anseios no sentido de combater mais uma forma de discriminação tão praticada na sociedade brasileira: a discriminação contra os homossexuais.
Os direitos fundamentais, protegidos constitucionalmente como cláusula pétrea no ordenamento jurídico brasileiro, são passíveis de conflitarem entre si, já que refletem a sociedade pluralista na qual eles se inserem.
Todavia, colisões de direitos fundamentais não são insuperáveis. O ordenamento pátrio brasileiro já adota técnicas pacificadoras em seus julgados, tal como a ponderação de interesses.
Considerando a hipótese de uma possível colisão de direitos fundamentais entre direito à liberdade religiosa e a não discriminação aos homossexuais, em um caso concreto, a solução se daria com a ponderação desses direitos por meio das três fases do princípio da proporcionalidade.
Entretanto, diante de um confronto entre o princípio da não discriminação aos homossexuais e o princípio da liberdade religiosa no plano abstrato da lei em tese, conclui-se que pela possibilidade da harmonização dos desses direitos fundamentais.
A solução da harmonização se impõe como medida mais adequada e constitucionalmente correta, trazendo uma solução justa e pacificadora.
Portanto, percebe-se que é possível que os direitos à liberdade, inclusive religiosa, e a não discriminação aos homossexuais caminhem de mãos dadas, expressando a mais ampla realização dos direitos fundamentais e o respeito pelas diferenças em um país democrático e de direito.
Notas
[1] MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2003.
[2] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mátires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 1.ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
[3] HOMER, Chris; WESTACOTT, Emrmys. O conceito de religião. Disponível em: <http://www.pensamentocritico.com/index.php?option=com_content&task=view&id=54&Itemid=29>. Acesso em: 03 jan. 2009.
[4] MARX, Karl. Religião. Disponível em: <http://br.geocities.com/fusaobr/religiao.html>. Acesso em: 05 jan. 2009.
[5] MIRANDA, Jorge. Manual de direito fundamental. Tomo IV. Direitos Fundamentais. 3 ed. Revista e actualizada. Coimbra editora.
[6] Ibidem.
[7] Ibidem.
[8] MIRANDA, op.cit.
[9] Ibidem.
[10] MIRANDA, op.cit.
[11]Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/scripts/scripts/rui/mostrafrasesrui.idc?CodFrase=1622
[12] COOLEY, Thomas M.. Princípios gerais de direito constitucional nos Estados Unidos da América. Campinas: Russel, 2002.
[13] Ibidem
[14] No mesmo sentido Thomas M. Cooley e Supremo Tribunal Federal que decidiu que o curandeirismo não se inclui no âmbito da liberdade religiosa: RHC 62240, RTJ, 114/1038, Rel. Francisco Resek.
[15] MENDES; COELHO; BRANCO, op.cit.
[16] MIRANDA, op.cit.
[17] MIRANDA, op.cit.
[18] “O princípio da isonomia, que se reveste de auto-aplicabilidade, não é — enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-jurídica — suscetível de regulamentação ou de complementação normativa. Esse princípio — cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público — deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios (RDA 55/114), sob duplo aspecto: (a) o da igualdade na lei e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei — que opera numa fase de generalidade puramente abstrata — constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância desse postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e produzido a eiva de inconstitucionalidade.” (MI 58, Rel. p/ o ac. Min. Celso de Mello, julgamento em 14-12-90, DJ de 19-4-91)Grifo acrescido.
[19] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
[20] Ibidem
[21] MENDES; COELHO; BRANCO, op.cit
[22] MELLO, op.cit.
[23] “A lei pode, sem violação do princípio da igualdade, distinguir situações, a fim de conferir a um tratamento diverso do que atribui a outra. Para que possa fazê-lo, contudo, sem que tal violação se manifeste, é necessário que a discriminação guarde compatibilidade com o conteúdo do princípio.” (ADI 2.716, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 29-11-07, DJE de 7-3-08)
[24] MIRANDA, op.cit.
[25] MIRANDA, op.cit.
[26] TALAVERA, Marcos Moreno. Parcerias entre pessoas do mesmo sexo: o preconceito e a justiça. Disponível em: http://www.datavenia.net/artigos/homossexuais_justica.htm>. Acesso em: 08 jan. 2009.
[27] Ibidem.
[28] PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Brasil sem Homofobia. Disponível em: <http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/brasilsem>. Acesso em: 08 jan. 2009.
[29] SANT’ANNA, Marina. Brasil sem homofobia. Jornal Tribuna do Planalto. Disponível em: http://www.tribunadoplanalto.com.br/modules.php?name=News&file=print&sid=1282. Acesso em: 13 jan 2009.
[30] MISSÈ, Michel. Violência. Disponível em: < HTTP://www.unicrio.org.br/Textos/dialogo/michel_misse.html>. Acesso em: 13 jan 2009.
[31] TELES, Maria A. Amélia; MELO, Mônica. A violência doméstica contra a mulher. Disponível em: < HTTP://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/>. Acesso em: 13 jan 2009.
[32] Ibidem.
[33] TALAVERA , op.cit.
[34] ADI 869, Rel. p/ o ac. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 4-8-99, DJ de 4-6-04
[35] HC 83.125, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 16-9-03, DJ de 7-11-03