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Legislação penal de emergência: reflexões sobre a política de aumento do rigor da pena à luz da Criminologia crítica

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08/02/2013 às 13:10
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Discute-se, à luz da criminologia crítica, a política de reformas das leis penais que privilegia mudanças pontuais de aumento do rigor da pena como resposta a fatos que eventualmente têm grande repercussão midiática.

Resumo: Tramita no Congresso Nacional, ao lado do projeto de reforma do Código Penal, o Projeto de Lei do Senado nº 30/08 que propõe critérios mais rígidos para a progressão de regime das pessoas condenadas, em especial, pela prática de crimes hediondos. Esse projeto foi editado em um contexto que demandava rápida resposta do Estado em razão de crimes atribuídos a organizações criminosas. O presente estudo visa refletir, à luz da criminologia crítica, se essa reação estatal é o melhor caminho (ou o único possível) para a solução do problema. Busca-se, ademais, identificar quais são as forças que contribuem para a aprovação de leis penais pontuais como essa, aqui chamadas de leis penais de emergência, e ainda desvelar o porquê de ser esse o caminho preferencialmente escolhido no Brasil.

Palavras-chave: Política Criminal – Criminologia Crítica – Prisão.

Sumário: Introdução - 1.A teoria criminológica do labelling aproach e as bases para a formação de uma criminologia crítica - 2.  Das reformas na Lei nº 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos) e sua vinculação ao contexto social de clamor público emergencial. - 3. A Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06) e os processos de criminalização primária e secundária: exemplos de distribuição sócio-econômica do tratamento penal. - 4. O projeto de lei do senado nº 30/08 e a promessa de mais do mesmo. - 5. Considerações finais: pela aplicação, ao menos, do princípio da proibição do retrocesso. Referências


Introdução.

Diante de um crime grave e violento, as vítimas e parte da sociedade esperam do Estado uma rápida reação, de preferência igualmente severa. Um dia após (ou no mesmo dia) do assassinato de uma criança atribuído a seus pais, é possível encontrar entre os entrevistados selecionados pelos programas de televisão declarações homicidas em favor da aplicação da pena de morte para os que foram considerados autores desse fato. Esse comportamento humano, não raras vezes estimulado pelos meios de comunicação sensacionalistas, não é muito diverso daquele encontrado entre os seres irracionais[1]. Um animal atacado tentará contra-atacar imediatamente, buscando, se possível, eliminar seu oponente. Do mesmo modo, se retirado do Estado o monopólio da violência legitimada, é possível imaginar que a reação mais imediata das vítimas ou das pessoas que lhe são próximas também seria a vingança privada ou a justiça com as próprias mãos[2]. De qualquer modo, a mera substituição da vingança privada pela pública não retira do ato de vingança a sua irracionalidade, a sua característica de impulso natural.     

No Brasil, mas não só, os parlamentares, especialmente aqueles que são donos, sócios ou simples assíduos espectadores das redes de comunicação de massa sensacionalistas, parecem também reagir impulsivamente às notícias de crimes graves. No lugar do debate sobre as complexas causas do crime ou das possíveis (e talvez ainda não pensadas) alternativas para a solução dos conflitos sociais, optam os legisladores brasileiros pela reação mais imediata: a retribuição com o aumento da severidade das penas. Essas alterações legislativas, além de dispensarem quorum qualificado (basta uma maioria simplificada), costumam encontrar fácil aprovação na opinião pública(da) irrefletida.

Cria-se, assim, o ambiente propício para a legislação penal de emergência, ou seja, para as reformas pontuais da lei penal, que visam no mais das vezes apenas simbolizar uma eventual e momentânea sintonia entre os congressistas e a opinião publicada.

Registre-se que a criação desse ambiente não é o único fator que contribui para a aprovação de medidas penais mais rigorosas. Não se olvida que atuam também no Congresso, até mesmo com papel protagonista, grupos de parlamentares que representam as classes que utilizam racionalmente o Direito Penal em benefício próprio. O ambiente de flagrância, isto é, o período de tempo logo após o fato que gerou o alarde midiático e a própria situação de alarde social costumam, contudo, provocar uma nuvem espessa, acinzentada, de desconfiança nas instituições oficiais e também de um medo exagerado e irracional que podem, inclusive, obscurecer a leitura mais clara do problema social mesmo por parte daqueles parlamentares que conhecem os efeitos perniciosos do (ab)uso do direito penal.

 O presente estudo visa justamente examinar, sob a ótica da criminologia crítica, como se dá esse processo de criação da chamada legislação penal de emergência e quais são os possíveis efeitos dessa reação legiferante irrefletida.

 Para tanto, inicialmente, contextualizar-se-á como ocorreu a mudança de paradigma no âmbito da criminologia, que passou a se deter não mais no desvio ou no desviante, mas sim na reação social que qualifica uma ação como desvio e o seu autor como desviante. Em seguida, será examinado como se deu o processo de reforma da Lei de Crimes Hediondos contrastando-o com o da Lei de Drogas, buscando deles retirar a experiência histórico-social para, enfim, examinar o Projeto de Lei do Senado nº 30/08, que, tendo surgido em um contexto de alarme social, pode ser aprovado no próximo cenário de ampliada cobertura midiática da violência.


1. A teoria criminológica do labelling aproach e as bases para a formação de uma criminologia crítica.

Tradicionalmente, atribuem-se aos primeiros positivistas as primeiras pesquisas com pretensões científicas a respeito da origem ou das causas do crime. De fato, entusiasmados pelas promessas de veracidade e racionalidade do desenvolvimento científico que se verificava nas ditas ciências naturais, pensadores do século XIX como Lombroso, Ferri e Garofalo, pretenderam encontrar essas causas por meio da aplicação do método científico também a fatos sociais, como o crime. O foco dessas primeiras pesquisas, especialmente a lombrosiana, centrou-se na análise do homem delinquente, buscando encontrar nele as causas justificadoras para a ação delituosa. Do ponto de vista dessas teorias etiológicas da criminalidade, determinadas pessoas já nascem com (ou adquirem ao longo da vida) atributos que as levam à prática de delitos, determinismo esse que se mostrará contrário às teorias iluministas sobre o livre-arbítrio.

Entretanto, como se observou no século seguinte, não há como definir que alguém é ou necessariamente tornar-se-á criminoso, pois o próprio conceito de crime está condicionado a juízos normativos, variáveis no tempo e no espaço. Além disso, mesmo do ponto de vista sociológico, a partir da leitura estrutural-funcionalista do desvio de Emile Durkheim, o desvio é tido como um fenômeno normal de toda estrutura social, não devendo as suas causas ser pesquisadas nem em fatores bioantropológicos e naturais (clima e raça), nem em sua situação patológica da estrutura social[3]. Não se conhece sociedade em que não haja o desvio. Anormal seria apenas a hipótese de expansão excessiva em situações de anomia[4]

Além disso, os crimes são definidos por convenções sociais, caracterizando-se como uma qualidade negativa atribuída a uma determinada conduta humana. Será criminoso aquele comportamento que para uma determinada sociedade em uma determinada época for considerado reprovável. Esses comportamentos são escolhidos por quem detém o poder de dizer nessa sociedade o que é ou não reprovável. É justamente esse processo de escolha sistêmica, ou melhor, de reações das instâncias oficiais de controle social que se constitui no objeto de estudo do labeling approach, que considera essa reação social oficializada em sua função constitutiva da criminalidade. Com a mudança intencional de foco (ou paradigma) dos estudos proporcionada pelas teorias do labeling approach passa-se de uma criminologia de matiz etiológica para uma criminologia da reação social, que questiona a aparente neutralidade da criação, aplicação e interpretação do Direito Penal, bem como o processo de definição ontológica da criminalidade.

Sobre essa mudança de foco, Sérgio Salomão Shecaira ressalta que:

O movimento criminológico do labellin approach, surgido nos anos 60, é o verdadeiro marco da chamada teoria do conflito. Ele significa, desde logo, um abandono do paradigma etiológico-determinista e a substituição de um modelo estático e monolítico de análise social por uma perspectiva dinâmica e contínua de corte democrático. [...] As questões centrais do pensamento criminológico, a partir desse momento histórico, deixam de referir-se ao crime e ao criminoso, passando a voltar sua base de reflexão ao sistema de controle social e suas consequências, bem como o papel exercido pela vítima na relação delitual[5].

Para Molina, o labelling approach se estrutura em torno do interacionismo simbólico, da natureza “definitorial” do delito, do caráter constitutivo, paradigmático e seletivo do controle social e do efeito criminógeno da pena[6].

De fato, os teóricos do labelling aproach[7] fundam-se em uma abordagem interacionista, segundo a qual o ser humano se define e define sua ação na sociedade a partir de sua interação social, isto é, do seu relacionamento com o outro. Assim, uma vez etiquetado como criminoso pela sociedade e desta excluído pelo encarceramento, no período de convívio prisional, o cidadão apenado (etiquetado) assume o papel a ele atribuído de “marginal” e passa a se comportar em relação a sociedade de acordo com esse papel assumido cumprindo assim a self fufilling prophecy.

Além disso, para essa corrente do pensamento criminológico, o crime é um conceito essencialmente valorativo, não existindo uma conduta humana assim caracterizada ontologicamente. Trata-se sempre de uma qualidade atribuída socialmente e dependente de certos processos sociais de definição. Por conseguinte, inexistindo conduta humana que seja de per se crime, são as agências de controle social que, ao escolher determinados comportamentos humanos como reprováveis, chamam-no de crime. São essas agências, portanto, que, nesse sentido, constituem as condutas reputadas como criminosas.

A partir de estudos empíricos e da constatação de que pessoas que praticam condutas semelhantes têm distintas chances de ser etiquetadas, a depender do lugar que ocupam na pirâmide social, a teoria do labelling approach destaca também a seletividade do controle social exercido por meio da pena. Percebe-se também que essa pena não só não atinge os fins preventivos a que se destina como também é dotada de um alto grau de irracionalidade em razão de seu efeito criminógeno, exacerbando o conflito social no lugar de resolvê-lo, potencializando e perpetuando, desse modo, a desviação[8].

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A maior contribuição da teoria do labelling approach está realmente na mudança de paradigma que provoca no âmbito dos estudos criminológicos. Ao destacar o papel do processo de criminalização, isto é, da reação social na formação da idéia de criminalidade, essa abordagem permite a desmistificação de conceitos arraigados na dogmática penal e o questionamento de algumas premissas do pensamento político-criminal, como o do caráter igualitário ou isonômico de distribuição da pena e o de sua suposta eficácia na redução da criminalidade. Apesar dessas virtudes, essa teoria não deixa de apresentar insuficiências. De fato, ao destacar o processo de criminalização realizado pelas agências de controle como sendo fator determinante para a exclusão dos desviantes (em última análise, criador do desvio), a teoria do labelling approach minimizou ou desconsiderou os fatores criminógenos inerentes à própria sociedade capitalista, que aprofunda (ou, no mínimo, conserva) a desigualdade social para excluir os que não estão dentro (ou querem entrar à força) na sociedade de consumo. Tem razão, pois, Shecaira ao concluir que: “melhor seria se descrevêssemos tal pensamento como um enfoque criminológico de algo que consegue dar conta com absoluta precisão do que sucede e de como sucede, mas não do por que sucede”[9].

A resposta a esse por que sucede pode ser oferecida sobre uma perspectiva marxista das influências do modelo de produção sobre as manifestações superestruturais. Shecaira identifica o surgimento da criminologia crítica na obra de Rusche e Kirchhmeimer Punição e estrutura social, republicada nos EUA, em 1967, na qual a pena de prisão é associada ao surgimento do capitalismo mercantil[10]. Segundo ele, a partir da releitura dessa obra, na década de 1970, diversos grupos de estudiosos são formados como o Union of Radical Criminologists, da Universidade de Berkeley, nos EUA; o National Deviance Conference, na Inglaterra; o Krum (Associação Sueca Nacional para a Reforma Penal), de matiz abolicionista; e, na Itália, a partir das obras de Melossi, Pavarini, Bricola e Baratta, naquele grupo de estudiosos que ficou conhecido como Escola de Bolonha[11].

De todas essas abordagens críticas, optamos por destacar aqui, em razão de compreendermos ser a que mais se aproxima da realidade sul-americana, a visão de Alessandro Baratta, para quem a criminalidade se revela:

Como um status atribuído a determinados indivíduos, mediante uma dupla seleção: em primeiro lugar, a seleção dos bens protegidos penalmente, e dos comportamentos ofensivos destes bens descritos nos tipos penais; em segundo lugar, a seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações a normas penalmente sancionadas. [12]

A criminalidade seria, sob essa perspectiva, um bem negativo, distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixada no sistema sócio-econômico e conforme a desigualdade social entre os indivíduos[13]. Como destaca o próprio Baratta, os representantes da criminologia crítica “partem de um enfoque materialista e estão convencidos de que só uma análise radical dos mecanismos e das funções reais do sistema penal, na sociedade tardo-capitalista, pode permitir uma estratégia autônoma e alternativa no setor de controle social do desvio, ou seja, uma ‘política criminal’ das classes atualmente subordinadas”[14].

De fato, a criminologia crítica parte da associação marxista de que cada sistema de produção escolhe as penas que melhor se adaptam às suas relações sociais (Rusche e Kirschhmeimer) e reconhece na pena de prisão a eleição predileta do sistema capitalista que a utiliza para disciplinar a massa excedente da mão-de-obra ao trabalho na fábrica (Melossi e Pavarini). Na visão de Zaffaroni, a criminologia crítica teria por objetivo desvelar as intenções daqueles que produzem as seleções havidas na criação e aplicação das normas penais, demonstrando a intenção da classe dominante de ordenar a sociedade de determinada maneira[15]. Em outras palavras, destaca o penalista argentino, essa corrente da criminologia visaria responder à pergunta formulada por Howard Becker: quem impõe a norma e para quê?[16]

Sem a pretensão de responder de forma exaustiva, nesse breve estudo, a essas perguntas, desejamos ao menos apontar caminhos para a identificação das forças que servem de impulso para a edição das leis penais de emergência e qual a sua possível finalidade.


2. Das reformas na Lei nº 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos) e sua vinculação ao contexto social de clamor público emergencial.  

O cotejo entre as mais recentes alterações legislativas à chamada Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90) e a conjuntura social do momento em que elas foram votadas e aprovadas demonstra, claramente, a relação existente entre a divulgação midiática de um clamor popular, chamado, não raras vezes, de senso comum (ou de opinião pública), oriundo de um fato supostamente criminoso, e o endurecimento da legislação penal[17].

Inicialmente, não se pode deixar de mencionar que a aprovação da própria Lei nº 8.072, em 25 de julho de 1990, foi instantaneamente acelerada após os seqüestros dos empresários Roberto Medina e Abílio Diniz[18]. De fato, recorda-se que, em 11 de dezembro de 1989, às vésperas das primeiras eleições presidenciais pós-ditadura militar, o empresário Abílio Diniz foi seqüestrado, em São Paulo, e libertado, sete dias depois, diante das câmeras de televisão, tendo sido o seqüestro atribuído a integrantes do Movimento de Izquierda Revolucionaria (MIR). Meses depois, condutas como essa passaram a ser consideradas crimes hediondos.

Não demorou para que ocorresse a primeira mudança na chamada Lei de Crimes Hediondos. Dessa vez, a inovação legislativa ocorreu pouco tempo depois da morte da atriz Daniela Perez, de 22 anos, em 28 de dezembro de 1992, no Rio de Janeiro. O crime foi atribuído ao também ator Guilherme de Pádua, que, com o auxílio de sua esposa Paula Thomaz, teria desferido dezesseis golpes de tesoura no pescoço e no peito da vítima. Com o apelo, em rede nacional, promovido pela mãe da atriz Daniela, a autora de novelas Glória Perez, apoiada pela Rede Globo de Televisão, criou-se uma comoção popular e uma pressão legiferante para um tratamento mais rigoroso de delitos dessa espécie. Em 6 de setembro de 1994, foi, então, editada a Lei nº 8.930/94, que, alterando o art. 1º da Lei nº 8.072/90, acrescentou no rol dos chamados crimes hediondos, o homicídio simples, quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e o homicídio qualificado (art. 121, §2º, do Código Penal).

Em 07 de fevereiro de 2007, o roubo de um carro no Rio de Janeiro terminou com a morte trágica de um menino, João Hélio Fernandes, de 6 (seis) anos de idade. Ele estava no carro com sua mãe, quando cerca quatro homens a empurraram para fora e seguiram conduzindo o veículo, antes que o garoto fosse retirado do automóvel. João Hélio ficou preso pelo cinto de segurança, do lado de fora do carro, e foi arrastado por aproximadamente sete quilômetros. Com o intuito de atender aos reclamos de combate à impunidade, mudanças foram introduzidas na Lei de Crimes Hediondos pela Lei nº 11.464, de 28 de março de 2007. A mais significativa delas referiu-se às condições para a progressão de regime de cumprimento de pena, majorando-as e exigindo, na hipótese de ser o condenado primário, o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena; e, se ele for reincidente, 3/5 (três quintos). Isso porque o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do habeas corpus (HC) nº 82959-SP, havia declarado a inconstitucionalidade da vedação à progressão de regime nos casos de crimes hediondos e equiparados contida no parágrafo primeiro do art. 2º da Lei nº 8.072/90, permitindo, destarte, a progressão, com o cumprimento de 1/6 (um sexto) da pena, nos moldes do que era autorizado para os demais delitos.

A mutação legislativa repressora que se avizinha, impulsionada pelo substitutivo do Senador Demóstenes Torres, acima comentado, cuja manifesta finalidade é tentar demonstrar, retoricamente, que o Congresso Nacional brasileiro, apesar da crise ético-moral que o aflige, está atento aos ditos reclamos da sociedade por segurança, corrobora a adoção de uma política criminal apoiada apenas em pressupostos equivocados a respeito da origem do crime e da eficácia da pena privativa de liberdade, desprovidos de fundamentos técnicos racionalmente debatidos e que, até a presente data, não possui resultados positivos cientificamente comprovados.

Carlos Barros Leal, ex-membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), assim identificou o problema da chamada “legislação do pânico” e sua ineficiente resposta às demandas geradas pela criminalidade:

Mergulhada no espiral da violência e manipulada pelos meios de comunicação social e pelos movimentos de lei e ordem (law and order), a sociedade, atemorizada, em pânico, sem saber o que fazer, é induzida a não pensar nas raízes do problema, na possibilidade de enfrentá-lo em suas origens e simplesmente demandar mais repressão, novos tipos penais, mais prisão (e nesse caso pouco importa se existe ou não uma sentença formal condenatória, mesmo porque a presunção de inocência é um conceito vulnerado a toda hora pelos órgãos policiais e pela mídia, sob o aplauso generalizado dos que vêem em ações espetaculosas ou em manchetes descomprometidas com a busca da verdade o aceno de uma resposta efetiva) e com isso assegura a permanência de um círculo vicioso, propugnando, em lugar de medidas de cunho preventivo (de curto,  médio e longo prazo), a vingança, o castigo, especialmente o aprisionamento, na ingênua ilusão de que, dessa forma, se possa refrear a ascensão da criminalidade.[19]

O resultado dessa legislação do pânico pode ser encontrado nas superlotadas penitenciárias nacionais. Com efeito, não são os crimes de corrupção, que têm como resultado o desvio de milhões de reais do orçamento da saúde ou da educação públicas, ou mesmo os crimes de sonegação fiscal, que impedem a chegada dessa verbas aos cofres públicos, os que são punidos. Também não são os supersocializados autores desses crimes que, tendo toda a liberdade e condição de se comportar conforme o direito, optaram livremente por se comportar de forma ilícita, aqueles que serão condenados. Não são igualmente os latifundiários mandantes de crimes de homicídio nos conflitos agrários os que serão presos[20]. Com efeito, ao menos do ponto de vista estatístico, é possível esboçar um perfil diverso da pessoa que se encontra presa, hoje, no Brasil, por exemplo.

 Com base em estudo coordenado pelo Professor Roberto da Silva, com fundamento em pesquisas realizadas pelo Instituto Ethos, de São Paulo, é possível afirmar que, em sua maioria, a pessoa presa no país é um homem (95%), negro ou pardo (mais de 50%), originário de família desestruturada (mais de 90%), que tem menos de oito anos de estudos (mais de 90%), não possui advogado particular para sua defesa (80%) e cometeu um crime praticado contra o patrimônio (80%).[21] Assim, se é certo que não se pode afirmar que todo homem pobre e de baixa instrução no Brasil cometeu ou cometerá um crime, certo é também que as pessoas oriundas das classes mais baixas da população e que cometem delitos contra o patrimônio das classes mais altas (ao menos, tendencialmente) são aquelas escolhidas pelo sistema punitivo para serem encarceradas e privadas de sua liberdade.

Entretanto, não é só na fase de execução da pena que se verifica a injustiça do sistema penal pátrio. Também nos chamados processos de criminalização primária e secundária há desigualdade. E, como se demonstrará adiante, a iniqüidade no tratamento da “clientela” do Direito Penal se mostra ainda mais evidente se bem analisada a política nacional de combate às drogas.

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Sobre o autor
André Carneiro Leão

É Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal. É Professor da Faculdade Damas de Instrução Cristã. Professor convidado do Instituto de Magistrados de Pernambuco-IMP. É Defensor Público Federal. Titular do 9ª Ofício Criminal da DPU/PE. Ex-chefe da Defensoria Pública da União em Pernambuco. Vice-Diretor da Escola Superior da Defensoria Pública da União (ESDPU). Coordenador Estadual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais-IBCCRIM. Foi professor universitário de Direito Penal e Processual Penal da Faculdade de Direito de Olinda (AESO/BARROS MELO). Foi professor de cursos para concursos. Foi Professor e Coordenador da disciplina Direito Previdenciário da Escola Superior da Advocacia de Pernambuco (ESA/PE). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEÃO, André Carneiro. Legislação penal de emergência: reflexões sobre a política de aumento do rigor da pena à luz da Criminologia crítica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3509, 8 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23676. Acesso em: 18 abr. 2024.

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