3. A Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06) e os processos de criminalização primária e secundária: exemplos de distribuição sócio-econômica do tratamento penal.
A Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, como se aduz de sua própria ementa, instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad, prescrevendo, de um lado, medidas para a prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e, de outro lado, estabelecendo normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de droga. Percebe-se, já a partir da ementa, mas também da leitura mais atenta da lei, que o tratamento conferido àqueles que contribuem para o consumo de substâncias entorpecentes é bastante distinto.
Com efeito, de um lado, se encontra o consumidor ou, como prefere a lei, o usuário de drogas, que recebe da lei medidas de prevenção, atenção e cuidados para a “reinserção”; de outro, os fornecedores – neste conceito incluídos os produtores e os comerciantes intermediários – que da lei recebem apenas medidas de repressão, especialmente consubstanciadas na pena privativa de liberdade e na multa, como se essa fosse (ou devesse ser) para eles a única finalidade da sanção penal. Sintetizando: para uns, prevenção e reinserção; para outros, repressão!
Essa diferenciação de tratamento normativo revela a desigualdade de distribuição da sanção penal mencionada no tópico anterior, logo na primeira fase do processo de criminalização, isto é, na fase de criação da lei penal, de escolha das condutas que devem ser tidas como desviantes e de seleção de quais os bens jurídicos que devem ser protegidos. Com efeito, nesse ponto, adotou-se o discurso de que o consumo em si da droga não é uma conduta tão maléfica para o indivíduo e para a sociedade e, por isso, desmereceria a repressão encarceradora, bastando-lhe medidas preventivas e cuidados para reinserção social do consumidor. Por outro lado, reputou-se como nefasta para a sociedade a conduta daquele que produz e comercializa a droga, pois estaria nela o estímulo para o uso e disseminação do produto no seio da comunidade.
Trata-se evidentemente de considerações puramente especulativas e valorativas, de difícil justificação racional, que contribuíram para uma setorização ou diferenciação também na segunda fase do processo de criminalização, consistente na aplicação da lei penal aos indivíduos tidos como desviantes. Nesse ponto, tendo em vista o alto custo da droga, especialmente daquelas chamadas sintéticas, produzidas por meio de processos químicos altamente industrializados, é possível intuir que os usuários dessas substâncias sejam pessoas de elevado poder aquisitivo, sem o qual não poderiam alimentar a sua dependência. De outra banda, os comerciantes dessas substâncias ilícitas, em sua grande maioria, são recrutados entre aqueles que não dispõem de maiores oportunidades no mercado de trabalho lícito ou sequer têm esperança de inserção nesse mercado. São crianças e jovens das classes mais baixas da população que vêem no comércio de drogas chances sedutoras de realizarem, imediatamente, seus desejos de consumo e ascensão social, esses últimos incentivados diuturnamente pela mídia ostensiva.
Um estudo realizado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pela Universidade de Brasília, entre março de 2008 e julho de 2009, intitulado “Tráfico e Constituição, um estudo sobre a atuação da Justiça Criminal do Rio de Janeiro e do Distrito Federal no crime de drogas”, revelou que é possível, estatisticamente, estabelecer um perfil da pessoa que é condenada pelo tráfico de drogas, isto é, da pessoa que recebe as maiores sanções da Lei de Tóxicos. Segundo essa pesquisa, do que se pode induzir das condenações no Estado no Rio de Janeiro, no período de outubro de 2006 a maio de 2008, a pessoa condenada é, em sua maioria, homem (84%), primário (66%), que foi preso em flagrante (91%), sozinho (60%) e desarmado (apenas 14% portavam armas no momento do flagrante e da prisão), portando maconha (54%), em quantidade inferior a 100 gramas (42%). A maioria desses homens primários e presos com pouca quantidade de droga foi condenada a uma pena superior a 8 (oito) anos de reclusão (58%)[22].
Nota-se, pois, que mesmo a repressão oficial, na sua fase de aplicação da lei penal, supostamente isenta e isonômica (art. 5º, caput, primeira parte, da Constituição), seleciona, entre aqueles cujas condutas poderiam ser consideradas como desvio, os que receberão a pecha de desviante, traficante, bandido, criminoso. Nesse ponto, a Polícia enquanto principal instituição responsável pela prisão em flagrante desempenha papel protagonista nesse processo de seleção. Para obtenção de maiores números e com a intenção de transmitir a sensação de missão cumprida à sociedade, realizam-se numerosas apreensões das “caças” mais frágeis: os inexperientes, desarmados, que agiam sozinhos, isto é, o “vendedor autônomo” ou o “pequeno comerciante/traficante”, como revelou a pesquisa acima mencionada. Esse perfil, aliás, é bem distinto daquele cidadão fortemente armado transitando em motos e carros nas comunidades veiculado na mídia como sendo o algoz da sociedade e dos homens de bem(ns).
A respeito da (des)função do cárcere nesse contexto ou em circunstâncias análogas a essas, o já citado Alessandro Baratta assevera que:
Antes de ser a resposta da sociedade honesta a uma maioria criminosa (representação cara às maiorias silenciosas de todos os países, e facilmente instrumentalizada nas campanhas de “lei e ordem”), o cárcere é, principalmente, o instrumento essencial para a criação de uma população criminosa, recrutada quase exclusivamente nas fileiras do proletariado, separada da sociedade e, com consequências não menos graves, da classe. Na demonstração dos efeitos marginalizadores do cárcere, da impossibilidade estrutural da instituição carcerária cumprir a função de reeducação e de reinserção social que a ideologia pena lhe atribui, concorrem a observação histórica, que demonstra o substancial fracasso de toda obra desta instituição[23].
De fato, diante dos altíssimos índices de reincidência, amplamente divulgados, já não dá para acreditar que, no Brasil, a pena privativa de liberdade cumpra, na forma como ela é executada, quaisquer de suas pretendidas missões legais[24]. Do mesmo modo, como não se tem notícia de que, com o aumento das condições impostas para progressão de regime nos crimes hediondos, tenham eles diminuído, é, no mínimo, duvidosa a política, ainda hoje reiteradamente usada, de encarcerização. Nessas condições, impende concluir que aumentar o tempo da pena que o réu deve necessariamente cumprir em regime carcerário fechado cumpre um único mister: inocuizá-lo, segregá-lo, isto é, afastá-lo o quanto possível do convívio social.
4. O projeto de lei do senado nº 30/08 e a promessa de mais do mesmo.
No dia 04 de novembro de 2009, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal aprovou, em primeiro turno, o substitutivo do ex-Senador Demóstenes Torres[25], do Democratas (DEM-GO), aos Projetos de Lei do Senado (PLS) nº 30/08, de autoria da Senadora Kátia Abreu, também do Democratas (DEM-TO), e nº 421/08, de autoria do Senador Antônio Carlos Valadares, do Partido Socialista Brasileiro (PSB-SE), que, em comum, impõem condições mais severas para a progressão de regime dos condenados à pena privativa de liberdade, inclusive, para os casos de crimes hediondos, mas não só para estes.
O senador Demóstenes Torres (DEM-GO), presidente da CCJ, recomendou a aprovação do projeto de Kátia Abreu, com algumas modificações, e incorporou parte das sugestões do senador Antônio Valadares. Em seu relatório[26], o autor do substitutivo aduziu que os parâmetros atuais para a progressão de regime seriam muito baixos, considerando o que ele chamou de gravidade objetiva dos crimes hediondos e os “reclamos” da sociedade, a qual não entenderia o porquê de um homicida, de um estuprador ou de um sequestrador permanecer preso por período inferior ao tempo total previsto para a pena no regime fechado. Essa demanda social por um tratamento mais severo à questão exigiria, segundo a visão do Senador, novas frações para a progressão, que melhor se ajustassem à necessidade de prevenção e repressão dos crimes hediondos.
Assim, de acordo com o substitutivo aprovado pelos senadores, o art. 112 da Lei de Execução Penal passaria a exigir não mais o cumprimento de somente um sexto da pena para a progressão de regime, mas sim de um terço dela, como tempo mínimo necessário para a transferência do regime fechado para o semiaberto.
Antes da progressão, o projeto previu, ainda, a exigência de que o preso apresente bom comportamento, comprovado pelo diretor do estabelecimento carcerário, e de que haja um parecer favorável da Comissão Técnica de Classificação e do Ministério Público (exame criminológico). O projeto altera também a Lei de Crimes Hediondos, aumentando o prazo mínimo de cumprimento da pena para a progressão. Os atuais dois quintos de cumprimento passariam para pelo menos a metade, nos casos de réus primários; e os atuais três quintos, para dois terços, se for o réu reincidente. Por fim, seria alterado também o art. 83 do Código Penal, que prevê o livramento condicional, o qual só seria admitido se cumprida mais da metade da pena, nos crimes comuns, e mais de dois terços, nos crimes hediondos e equiparados.
Os PLS em questão (o de nº 30/08 e 421/08) foram encaminhados para a Comissão de Direitos Humanos, em 11 de março de 2010. O então Presidente da CDH designou como relator o Senador Elizeu Resende. Com a mudança da composição dessa Comissão, em 2011, o então Presidente da CDH, o Senador Paulo Paim, designou como novo relator para a matéria o Senador Demóstenes Torres que, agora, também era membro dessa Comissão. Em 11 de maio de 2011, esse Senador (hoje, ex-Senador, frise-se), apresentou relatório pela aprovação do PLS 30/08 e rejeição do PLS 421/08. Contudo, em agosto de 2011, a pedido do próprio Senador Demóstenes Torres, o Projeto é retirado da pauta para reexame, tendo sido redistribuído em novembro desse mesmo ano, em decorrência do afastamento do Senador Torres dessa Comissão.
Em 12 de dezembro de 2011, assume a relatoria do projeto na CDH, a Senadora Ana Rita, que apresenta, cinco meses depois, relatório pela rejeição integral da matéria. Em 24 de maio de 2012, esse relatório é aprovado e passa a representar o parecer da CDH pela rejeição da matéria.
Os Projetos, contudo, seguem para a Comissão de Assuntos Econômicas (CAE), na qual o PLS 30/08 recebe parecer favorável pela aprovação, sendo considerado prejudicado o PLS 421/08. Por fim, a pedido do então Presidente do Senado José Sarney, os projetos são encaminhados à Comissão Temporária de Reforma do Código Penal Brasileiro, onde se encontram até a presente data, sob a relatoria do também membro do Ministério Público, o Senador Pedro Taques.
Como se pode perceber do discurso adotado pelo ex-Senador Demóstenes Torres, até então considerado por muitos como um dos bastiões da moralidade no Congresso, e acolhido por seus pares da CCJ e da CAE para fins de aprovação do projeto de lei que é objeto do presente estudo, o pressuposto dessas alterações legislativas é que o agravamento das penas, com o condenado passando mais tempo preso, melhor atenderia “à necessidade de prevenção e repressão” dos crimes, em especial, dos ditos hediondos. Além disso, das próprias palavras do citado parlamentar acima reproduzidas, também é possível aduzir que essa pretensão de reforma da legislação criminal não surgiu desvinculada de um contexto de comoção social. Efetivamente, poucos dias antes da sessão da referida Comissão, um helicóptero da polícia militar do Rio de Janeiro explodiu após ser atingido e forçado a pousar abruptamente durante uma operação policial no Morro dos Macacos.
Essa operação teria sido iniciada a partir de relatos de moradores a respeito de intenso tiroteio, no local, decorrente da tentativa de “invasão” do Morro por um grupo de moradores do Morro São João. A mídia brasileira atribuiu o conflito à disputa entre traficantes pelo comando territorial[27].
Se aprovado o projeto de lei mencionado no início do presente estudo, o réu deverá cumprir ao menos a metade da pena preso, no regime fechado, para ter direito à progressão. Considerando que, consoante os dados do Ministério da Justiça, mais de 70% das pessoas presas hoje no Brasil têm pena superior a 8 anos, se fixarmos nesse patamar de 8 anos, o réu primário que fosse acusado e condenado por tráfico de drogas, por exemplo, deveria passar, pelo menos 4 (quatro) anos preso, no regime fechado (metade da pena, nos crimes considerados hediondos).
Nas péssimas e desumanas condições das atuais penitenciárias brasileiras, circunstâncias, aliás, conhecidas de todos os parlamentares brasileiros (basta consultarem as conclusões do relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do Sistema Carcerário), não só não haverá qualquer contribuição para a fantasiada ressocialização do indivíduo condenado como também ser-lhe-ão oferecidas todas as condições para que ele, sendo antes apenas um “iniciado” siga uma verdadeira “carreira desviante”, o que já se observa, hoje, como visto, com a aplicação da Lei de Crimes Hediondos e da Lei de Drogas na forma como estão.
5. Considerações finais: pela aplicação, ao menos, do princípio da proibição do retrocesso.
Ao lado das políticas que pregam o aumento do rigor do Direito Penal como única forma (ou como forma mais eficiente) de intervenção estatal para redução dos índices de criminalidade, é possível sustentar uma compreensão minimalista do Direito Penal, a partir de uma abordagem criminológica diferenciada, que leve em consideração não só as possíveis e imaginadas causas naturais do crime, mas também o próprio processo de criminalização dos indivíduos e as conseqüências nefastas para a própria sociedade da adoção da pena privativa de liberdade como principal instrumento de controle social.
Os fundamentos para a limitação do tempo no cárcere ainda podem ser aduzidos também na seguinte passagem do Manual de Direito Penal brasileiro de Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli:
Não se trata de execução penal que tenha objetivos ressocializadores, nem de melhoria, mas de deterioração irreversível e neutralizadora. A nós parece que uma pena que traga como resultado a deterioração da pessoa como meio de neutralizá-la é similar a uma pena mutilante, só que executada com bastante paciência, deixando passar o tempo e o período de prisão[28].
Com efeito, a falência da pena de prisão já pode ser considerada hoje um diagnóstico repleto de truísmos. A pena não ressocializa (nem deveria pretender esse fim) nem previne crimes, sendo suficiente para confirmar essa asserção a verificação do índice de reincidência e da alta taxa de criminalidade/criminalização que tem, quando muito, migrado de uma região do país para outra, quiçá acompanhando o desenvolvimento econômico das regiões de destino. Por outro lado, nas condições desumanas em que é imposta, a pena brutaliza o ser humano, que, se entra descrente nas suas possibilidades de inserção no mercado de trabalho e de consumo, sai convicto de que, sendo considerado inimigo da sociedade, a enxerga da mesma forma, com a diferença de que, agora, está ele devidamente armado e capacitado para o combate.
Essa política penal de guerra é fomentada, como vimos, pela irracionalidade das chamadas leis penais de emergência, que justamente pela velocidade com que são editadas e aprovadas não permitem qualquer discussão ou reflexão sobre as causas do problema que busca solucionar, sobre os seus efeitos imediatos e de longo prazo e, muito menos, sobre os caminhos alternativos.
Parece-nos que, de fato, apenas um olhar crítico sobre a realidade do desvio, do desviante e do processo de atribuição desses valores sociais pode contribuir para a rediscussão das premissas da política criminal e para inserir, entre as medidas possíveis de controle social, aquelas outras que visem efetivamente transformar a realidade a partir de uma lógica contrária à da violência. Essa outra lógica ou esse outro caminho, por evidente, não me parece está na reação animalesca da retaliação, mas exatamente naquilo que nos diferencia enquanto seres humanos que é a racionalidade da solidariedade. Se a redução das desigualdades sociais não implicará na extinção do desvio na sociedade brasileira, porque essa extinção é simplesmente impossível em qualquer sociedade humana, permitirá, ao menos, reduzir significativamente a injustiça da Justiça Criminal que distribui pena para quem demanda justiça social.
De qualquer modo, mesmo sob a ótica da dogmática penal, a pretensão de executar penas nos moldes propostos no Projeto de Lei do Senado nº 30/08 fere, em absoluto, o princípio da proibição do retrocesso. Esse princípio, que, dada sua índole verdadeiramente humanitária, pode ser considerado como garantia fundamental implícita (art. 5º, §2º, da CF/88)[29], consiste em evitar que o legislador venha a revogar integralmente ou parcialmente um ou mais diplomas infraconstitucionais efetivadores de direitos individuais e sociais para impor-lhes maiores restrições. Ele encontra fundamento na ideia de que uma mutação legislativa restritiva de direitos já consolidados se constituiria em retrocesso inadmissível diante da incorporação da efetividade desses direitos, nesse grau, ao patrimônio constitucional e fundamental do ser humano.
Com efeito, alterar o dispositivo que assegura ao apenado a progressão de regime nesses termos para restringir ainda mais sua liberdade constitui-se, sem dúvida, em retrocesso constitucionalmente inadmitido, tendo em vista o grau (mínimo) de liberdade de que se dispõe, ao menos no que tange à progressão, desde a edição da Lei de Execução Penal, há mais de duas décadas e meia (em 11 de julho de 1981).
Em tempo de destaque midiático diuturno de uma determinada faceta da violência social e época na qual telejornais contratam integrantes da tropa de elite da polícia militar para comentar políticas de segurança pública, é preciso mesmo antecipar-se criticamente aos projetos que tramitam no Congresso, ao menos, para que tenhamos tempo de discuti-los, refletindo sobre o caminho que desejamos seguir.