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Embriaguez ao volante: não basta o perigo presumido

18/02/2013 às 15:04
Leia nesta página:

O crime de dirigir veículo automotor em estado de embriaguez, com a redação dada pela nova Lei Seca, é de perigo abstrato ou concreto?

Está em vigor desde 21.12.12 a nova lei seca (Lei 12.760/12), que endureceu mais uma vez o Código de Trânsito (dobrou o valor da multa administrativa, agravou-a no caso de reincidência e facilitou a comprovação da embriaguez). Indaga-se: o crime de dirigir veículo automotor em estado de embriaguez (art. 306), agora, com a redação dada pela nova lei, é de perigo abstrato ou concreto? 

Leonardo de Bem, em livro que estamos preparando, fez uma análise dos vários posicionamentos doutrinários relacionados com o perigo abstrato e chegou à conclusão de que o delito do art. 306 do CTB (na sua nova redação) possui a natureza de perigo abstrato de perigosidade real, que é uma tese muito próxima do perigo abstrato com potencial perigo para o bem jurídico tutelado. Só existiria o crime citado quando houvesse superação de um determinado risco-base. 

Não se trataria, portanto, de perigo abstrato presumido (ou puro), nem tampouco de perigo concreto. Renato Marcão (no portal Atualidadades do Direito) opinou no sentido de que se trata de perigo abstrato puro (presumido). A nova redação dada ao art. 306 do CTB, pela Lei 12.760/12, é a seguinte: 

“Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:

§ 1º - As condutas previstas no caput serão constatadas por: 

I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou 

II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora."

O novo tipo penal, na medida em que exige “capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”, claramente se distanciou dos dois modelos anteriores (de 1997 e de 2008). Criou-se uma terceira situação de ilicitude (distinta das precedentes). Se o legislador mudou a redação da lei, agregando algo que antes não existia, parece muito evidente que houve alteração no perigo abstrato puro ou presumido de 2008.

Desde logo fica evidente o seguinte: o novo tipo penal, em sua literalidade, nem exige comprovação de dano potencial concreto “a outrem” (tal como ocorria em 1997), nem se contentou com a (mera) presunção da influência e da alteração da capacidade psicomotora a partir de uma certa quantidade de álcool por litro de sangue (6 decigramas). Nem uma coisa, nem outra. 

Estamos diante de um tercius, de um novo paradigma de ilícito, que exige uma adequada e constitucional interpretação, observando-se desde logo que fato não se presume: ou acontece ou não acontece. As duas novas exigências formais contidas no art. 306 (alteração da capacidade psicomotora do agente e influência do álcool ou outra substância) devem ficar devidamente comprovadas em juízo. Isso, no entanto, não significa perigo concreto determinado (com vítima certa). 

O que o legislador contemplou no novo art. 306 é distinto do que constava dele em 2008, porém, não deixa de ser uma forma bastante antecipada de tutela do bem jurídico. Trata-se de um campo prévio ao perigo concreto direto, porque, nas sociedades de risco (Risikogesellschaft), bem descritas por Ulrich Beck, a pergunta é: “Como podem ser evitados ou minimizados ou controlados os riscos e ameaças, coproduzidos sistematicamente nos processos de modernização?” (Ganzenmüller et alii: 1997, p. 13). 

O desenvolvimento do direito penal, nas sociedades de risco, utiliza, cada vez mais, a técnica do perigo abstrato (sendo incompatível com elas só o velho sistema da lesão ao bem jurídico do direito penal liberal – Ganzenmüller et alii: 1997, p. 15). Os delitos de perigo, hoje, constituem a mancha de óleo de Lackner, visto que são os “filhos prediletos” do legislador (Ganzenmüller et alii: 1997, p. 17). 

Isso foi feito no novo art. 306, porém, aí não se contemplou o chamado perigo abstrato puro ou presumido (tal como ocorria na redação de 2008), sim, o perigo abstrato de perigosidade real, que equivale ao perigo concreto indireto. 

Se a lesão significa uma efetiva ofensa ao bem jurídico, se o perigo concreto é uma probabilidade de lesão, se o perigo concreto indireto (ou perigo abstrato de perigosidade real) é uma probabilidade de perigo concreto, o perigo abstrato puro (ou presumido) é uma mera possibilidade de perigo (1) de perigo (2) de perigo (3) concreto. Essa tríplice incidência do perigo é inadmissível no direito penal, porque se distancia demasiadamente do bem jurídico protegido. Parodiando Carlos Britto, diríamos tratar-se de um “salto triplo carpado hermenêutico”.

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Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Embriaguez ao volante: não basta o perigo presumido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3519, 18 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23754. Acesso em: 21 nov. 2024.

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