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Confissão na fase extrajudicial e posterior retratação em juízo

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19/02/2013 às 14:05
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Conclusão

Chegamos ao final deste trabalho com a sensação de que cumprimos o que fora inicialmente proposto. Apesar de o tema escolhido ser bastante controverso, afinal abordar os imbróglios que permeiam a confissão extrajudicial é tocar em feridas profundas de nosso sistema processual penal e mexer com os interesses de todas as classes envolvidas (advogados, delegados, defensores públicos, membros do Ministério Público e juízes), a pesquisa em torno dessa temática nos permitiu a ampliação dos horizontes de nossa mentalidade acerca da prova e de sua valoração.

Ora, em um Estado Democrático de Direito não vale tudo para alcançar os culpados. Há regras, direitos e garantias que devem ser honrados e respeitados até as últimas consequências, do contrário voltaríamos a viver na barbárie de que saímos quando escapamos do jugo de um Estado totalitário e opressor. É sabido que muitos morreram, e tantos outros nunca foram encontrados, para que hoje possamos fazer valer nossos direitos e garantias constitucionalmente reconhecidos perante as mais altas autoridades de nosso sistema penal.

Com isso pretende-se concluir que o respeito às balizas do Estado Democrático de Direito deve permear todas as ações dos envolvidos no processo penal, inclusive na oportunidade em que se for extrair e valorar a confissão extrajudicial. Para isso é que se fazem necessárias regras mais claras acerca do interrogatório na fase policial, de modo a evitar constrangimentos desnecessários não só aos acusados, por vezes vítimas de coação e de atos abusivos nas delegacias de nosso país, mas também ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, que se vêem obrigados a denunciar e julgar, respectivamente, com base em confissões extraídas de maneira suspeita e posteriormente retratadas em juízo, quando oportunizados o contraditório e a ampla defesa.

Em torno disso girou todo nosso trabalho. Daí a indispensável abordagem mais aprofundada do princípio da não auto-incriminação, procedida no primeiro capítulo. É que não se pode falar em confissão extrajudicial sem antes deixar muito claro aos leitores que os acusados ou suspeitos, por mais repugnantes que sejam os crimes supostamente cometidos e por mais clara que pareça sua culpa, são, antes de tudo, sujeitos de direito, de maneira que é preciso respeitar certos limites e regras pré-estabelecidas.

De fato, todo cidadão brasileiro tem o direito de não produzir prova contra si mesmo, no entanto, fazemos questão de destacar que o princípio nemo tenetur se detegere não confere ao acusado o direito irrestrito à mentira. Não são aceitáveis comportamentos ativos típicos com o fim de obstar o alcance da verdade. É que o direito de não se auto-incriminar não é absoluto, razão pela qual não é possível que alguém se valha de meios ardilosos para garantir sua liberdade. Em outras palavras, as regras impostas pelo convívio em sociedade limitam o direito de permanecer calado, de forma que não é licito ao acusado mentir caso sua conduta seja tipificada como crime.

Dessa forma, é dado ao acusado decidir se colabora ou não na produção da prova. Assim, comportamentos omissivos, mesmo que típicos, são uma consequência do princípio da não auto-incriminação. No entanto, comportamentos ativos, se penalmente tipificados, fogem à esfera do mesmo. Portanto, o direito à mentira, como corolário do nemo tenetur se detegere, vai até onde não configure uma conduta penalmente tipificada. Ou seja, entendemos que a mentira é um direito do acusado, desde que não resulte em crimes.

Uma vez apresentadas as bases do princípio que orienta toda a temática aqui abordada, foi possível, no segundo capítulo, questionar o valor probatório da confissão extrajudicial posteriormente retratada em juízo. Defendemos que esta não pode ser considerada prova direta, mas tão-somente mero indicio[15], que não tem qualquer valor se não estiver associada a outros elementos de prova.

Detalhando melhor, estamos convictos de que não se pode admitir condenação fundada tão-somente em confissão colhida no inquérito policial e posteriormente retratada em juízo, tendo em vista ser necessária a repetição das provas na fase judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa. Essa conclusão se impõe, uma vez que é cediço que estas garantias constitucionais não estão afetas aos lindes daquele procedimento administrativo inquisitorial, haja vista seu caráter meramente informativo (tem por finalidade investigar o crime e desvendar sua autoria, para que o Membro do Ministério Público tenha subsídios para instruir a ação penal em juízo).

Dessa forma, como dito alhures, a confissão na fase policial é mero indício. Não se trata, portanto, de prova, e ninguém pode ser condenado sem provas, sob pena de ofensa ao devido processo legal.

Esclarecido nosso posicionamento acerca do valor probatório da confissão extrajudicial posteriormente retratada em juízo foi possível discorrer  sobre a efetiva aplicação do art. 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal, que abordou pela primeira vez, de forma expressa em um texto constitucional brasileiro, o princípio da não auto-incriminação.

Por fim, entendemos que o referido dispositivo constitucional só será efetivamente aplicado, de maneira a resguardar, na sua essência, o princípio da não auto-incriminação, quando se garantir ao acusado, antes mesmo do interrogatório na fase policial, o acesso a um advogado, de maneira a evitar uma confissão determinada pelo nervosismo diante da acusação impingida ou da figura da autoridade policial ou ainda por pura ignorância com relação ao direito de não produzir provas contra si mesmo.

Ressalte-se uma última vez que a simples informação ao preso de que tem direito à assistência de advogado, sem que o Estado lhe disponibilize, ainda na fase inquisitorial, o acesso a um, não possui qualquer efeito prático diante de nossa realidade, marcada por séculos de abusos físicos e psicológicos àqueles que são submetidos a oitivas diante de nossas autoridades policiais e pelo baixíssimo nível cultural de grande parte da população.


Referências

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NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo e execução penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

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PINTO, Ronaldo Batista. Prova penal: doutrina e jurisprudência. São Paulo: IOB Thomson, 2006.

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Notas

[1]Prova direta é aquela que o juiz pode aferir mediante o contato direto entre os seus próprios sentidos e a realidade fática. Exemplo: inspeção judicial. Difere-se de prova indireta porque nesta não é dado ao magistrado perceber diretamente, em razão de se tratar de fato jurídico passado, tendo que se chegar ao seu conhecimento por meio de outro fato, do qual se possa deduzir a ocorrência do primeiro.

Em outras palavras, a prova é direta quando por si só já prova o alegado e é indireta quando sozinha não é capaz de provar o que se alegou.

[2]Art. 94. A confissão do réo em Juizo competente, sendo livre, coincidindo com as circumstancias do facto, prova o delicto; mas, no caso de morte, só póde sujeital-o á pena immediata quando não haja outra prova.

[3]Art. 208 – Para que a parte seja obrigada a depor he essencial:

§1º Que os artigos sejão claros, precisos, não contradictorios, não criminosos, não diffamatorios, e nem meramente negativos;

[4]Art. 242 – A testemunha que se recusar a depôr declarará, por escrito, antes da audiência, os motivos da recusa, decidindo o juiz livremente, ouvidos, ou não, os interessados.

[5]Direito penal mínimo, nos dizeres de Ferrajoli, é aquele “(...) condicionado e limitado ao máximo, corresponde não apenas ao grau máximo de tutela das liberdades dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo, mas também um ideal de racionalidade e de certeza. Com isso resulta excluída de fato a responsabilidade penal todas as vezes em que sejam incertos ou indeterminados seus pressupostos. (...)

Ao contrário, o modelo de direito penal máximo, quer dizer, incondicionado e ilimitado, é o que se caracteriza, além de sua excessiva severidade, pela incerteza e imprevisibilidade das condenações e das penas e que, consequentemente, configura-se como um sistema de poder não controlável racionalmente em face da ausência de parâmetros certos e racionais de convalidação e anulação. (...).” (FERRAJOLI, 2002, p. 83-84). 

[6]Art. 190. Se confessar a autoria, será perguntado sobre os motivos e circunstâncias do fato e se outras pessoas concorreram para a infração, e quais sejam. (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003)

[7]Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral: (Redação dada pela Lei nº 10.268, de 28.8.2001)

Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.

[8]A obrigatoriedade ou não da submissão ao exame do bafômetro é uma das discussões mais em voga atualmente com relação ao princípio da não auto-incriminação, principalmente após a edição da Lei nº 11.705/2008, que deu a seguinte redação ao artigos 277, § 3º, e 165 do Código de Trânsito Brasileiro:

Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado. (Redação dada pela Lei nº 11.275, de 2006). - destaquei.

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§ 3o  Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.705, de 2008)

Art. 165.  Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)

Infração - gravíssima; (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)

Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses; (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)

Medida Administrativa - retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação. (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)

[9]Constituição Espanhola, Art. 17.3. Toda persona detenida debe ser informada de forma inmediata, y de modo que le sea comprensible, de sus derechos y de las razones de su detención, no pudiendo ser obligada a declarar. Se garantiza la asistencia de abogado al detenido en lãs diligencias policiales y judiciales, en los términos que la ley establezca. - os negritos não constam do original.

Constituição Espanhola, Art. 24.2. Asimismo, todos tienen derecho al Juez ordinario predeterminado por la ley, a la defensa y a la asistencia de letrado, a ser informados de la acusación formulada contra ellos, a un proceso público sin dilaciones indebidas y con todas las garantías, a utilizar los medios de prueba pertinentes para su defensa, a no declarar contra si mismos, a no confesarse culpables y a la presunción de inocencia. La ley regulará los casos en que, por razón de parentesco o de secreto profesional, no se estará obligado a declarar sobre hechos presuntamente delictivos. - destaquei.

[10]Constituição dos Estados Unidos da America – Artigo V (Quinta Emenda) – Ninguém será detido para responder por crime capital, ou outro crime infamante, salvo por denúncia ou acusação perante um Grande Júri, exceto em tratando de casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, ocorram nas forças de terra ou mar ou na milícia, durante serviço ativo; ninguém poderá pelo mesmo crime ser duas vezes ameaçado em sua vida ou saúde; nem ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de testemunha contra si mesmo; nem ser privado da vida, liberdade, ou bens, sem processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público, sem justa indenização. - os negritos não constam do original.

[11]“A certeza que se busca no processo penal é, assim, uma certeza garantia – garantia do acusado em face do poder punitivo estatal. Uma certeza que não pode ser alcançada a qualquer preço, mas que encontra limitações no fundamento ético do processo penal e do Estado democrático de direito: a dignidade da pessoa humana.” (PRADO, 2006, p. 142-143).

[12]Ernesto Miranda foi condenado em um tribunal estadual do Arizona por rapto e estupro. Sua condenação baseava-se na confissão que Miranda fizera aos policiais após duas horas de interrogatório, sem ter sido avisado de que tinha direito à presença de um advogado. A Suprema Corte Estadunidense, em julgamento realizado em 1966, anulou a condenação e tornou obrigatório que os policiais, ao efetuarem uma prisão, fizessem o que hoje é conhecido como aviso Miranda — avisassem o suspeito do direito de permanecer calado e que qualquer coisa que dissesse poderia ser usada contra ele e do direito de ter um advogado presente no interrogatório e que, no caso de não poder pagar, um advogado lhe seria indicado. (Perfil do Governo dos E.U.A. Decisões Marcantes da Suprema Corte. Postado em set. 2007. Disponível em: <http://www.embaixada-americana.org.br/government/ch6.htm>. Acesso em: 05 jun. 2009.)

Assim, nos Estados Unidos, todos os acusados têm o direito de permanecer em silêncio e os promotores não podem usar depoimentos feitos pelos acusados enquanto estiverem sob a custódia da polícia, a menos que os policiais os avisem dos seus direitos.

[13]Ver Nota de Rodapé nº 08.

[14]Entendemos que, caso o contraditório seja antecipado para o interrogatório policial, a confissão na seara administrativa, desde que seja previamente disponibilizado o advogado, deixará de ser mero indício, como defendemos ao longo deste monografia, e passará a ser efetivamente uma prova, uma vez que não seria necessária sua repetição na fase policial.

[15]Adotamos neste monografia a distinção entre indício e prova feita por Ferrajoli (2002, p. 106), segundo o qual prova é o fato probatório ocorrido no presente e do qual se infere o delito ou outro fato do passado e indício é um fato provado no passado do qual se infere a ocorrência do delito ou de outro fato do passado que, por sua vez, tem valor probatório de indício.


Abstract: The extrajudicial confession phase occurs, in most cases, by duress or due to the lack of opportunity to consult with a lawyer before interrogation under the police authority. This article aims to analyze the fundamental question suggested above against the principle of non-self-incrimination, through reflection on the probative value of such confession and seeking ways to ensure the effective application of art. 5, subsection LXIII, of the 1988 Constitution, which guarantees the detainee the right to silence and to legal counsel.

Keywords: Extrajudicial confession. Principle of non-self-incrimination.

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Sobre o autor
Diego Brunno Cardoso de Souza

Analista Processual do MPU

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Diego Brunno Cardoso. Confissão na fase extrajudicial e posterior retratação em juízo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3520, 19 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23759. Acesso em: 27 abr. 2024.

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