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Análise sobre a validade das cláusulas de eleição de foro nos contratos internacionais de consumo

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28/03/2013 às 14:51
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2. A AUTONOMIA DA VONTADE NOS CONTRATOS INTERNACIONAIS DE CONSUMO

A autonomia da vontade é a questão principiológica chave para a devida compreensão da temática estudada. Assim, faz-se mister, antes de tudo, devidamente conceituá-la.

Esta conceituação nasce na filosofia, por obra do alemão Immanuel Kant, que definiu a autonomia da vontade simplesmente como: “não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal.” [36]

Não obstante, o eminente civilista Paulo Nader traduziu o instituto para o Direito da seguinte forma:

O principio da autonomia da vontade, é um poder criador, que consiste na faculdade de contratar quando, como e com quem quiser, encontra seus limites nas leis de ordem pública e nos bons costumes.[37](grifos do autor)

Esta ideia provém, provavelmente, do novecentista F.C. von Savigny que desenvolveu um conceito similar por ele chamado de poder da vontade (Willensmacht); caracterizando-o como direito subjetivo, e, portanto, ilimitado, das partes contratantes[38]. Contrastando com este posicionamento, outro jurista alemão do século XIX, Bernhard Windscheid, advogou também pelo poder da vontade, mas limitado pelo direito objetivo posto pela ordem estatal.

Posteriormente, C. R. von Jhering, crendo as teorias da vontade formuladas por Savigny e Windscheid insuficientes, desenvolveu a teoria do interesse, ainda mais limitadora da subjetividade contratual, colocando que, mesmo nos casos que não tiver a consciência de seu próprios direitos, o indivíduo pode ter seu direito subjetivo – o interesse – defendido juridicamente.

2.1. A Autonomia da Vontade no Âmbito do Contrato Internacional

Como já colocado nas seções anteriores, o princípio da autonomia da vontade não deve ser encarado como pressuposto contratual absoluto. No que tange ao Direito Internacional, deve este ser sopesado com os princípios de ordem pública, nacional e internacional, visando o equilíbrio da relação jurídica contratual.

Para Strenger, em sua lição de 1968, o princípio seria limitado somente quando houvesse fraude à lei na esfera internacional[39], que é definida pelo autor como “intenção de escapar à lei, que normalmente deveria reger uma relação de direito, por meio de manobras ou artifícios que objetivam fraudulentamente, submissão à lei de um outro país, mais favorável aos resultados visados[40]”. Já identificado, portanto, à época a prática hoje costumeiramente conhecida como forum shopping.

Contudo, não é razoável a sujeição do prejudicado à por vezes onerosa prova de fraude pela outra parte. importante é mencionar que os princípios propostos pelo célebre UNIDROIT – Institut Internacional pour L’Unification du Droit Privé (Instituto Internacional pela Unificação do Direito Privado, em português) não afastaram a aplicação de regras imperativas, nacionais ou internacionais. Ou seja, as normas de ordem pública em um sentido amplo não devem ser negociadas.

Expõe desta forma o artigo 1.4 dos Princípios do UNIDROIT relativos aos contratos internacionais:

Article 1.4 (Règles impératives)

Ces Principes ne limitent pas l’application des règles impératives, d’origine nationale, internationale ou supranationale, applicables selon les règles pertinentes du droit international privé. [41]

Tal dispositivo, todavia, é, em minha compreensão, de aplicabilidade limitada e demasiadamente amplo, pois não explicita quais seriam estas regras imperativas. Existem pontos – não incomuns – onde há divergências entre a jurisprudência e doutrina quanto a superioridade ou de regras tidas como de ordem pública sobre a autonomia da vontade das partes, tendo em vista que a ordem pública é um conceito jurídico indeterminado.

De acordo com Colet Barro[42], a autonomia de vontade no âmbito internacional pouco tem a ver com a liberdade de contratar no âmbito interno. Não concordo inteiramente com a afirmação. É possível identificar que, em ambas as esferas há a mesma base teleológica: a busca da manutenção da ordem pública conexa com respeito dos desejos das partes. Não obstante, é vero que estas duas faces da autonomia da vontade – interna e internacional – se manifestam de maneira diversa.

A autonomia da vontade se manifesta no Direito Internacional Privado no que diz respeito especialmente à deriva deste contrato num mar de ordenamentos jurídico, a doutrina menos atenciosa identifica a autonomia da vontade internacional somente com a escolha da lei aplicável à relação jurídica. Explica Isabel Ferreira Barcelo:

Portanto, no Direito Interno a autonomia da vontade consiste na liberdade atribuída aos particulares para que estes possam determinar livremente o conteúdo do contrato, segundo os seus interesses e observados os limites previstos em lei, e, por uma perspectiva internacionalista, refere-se à possibilidade das partes encolherem o ordenamento jurídico que regerá o contrato.[43]

Sem embargo, esta liberdade de escolha nos contratos internacionais é fenômeno que apresenta inúmeras divergências e é bastante discutido pelos doutrinadores nacionais, como será disposto a seguir.

2.1.1. A Autonomia da Vontade Internacional no Direito Positivo à luz da Doutrina Pátria

Historicamente, nos países que adotam o sistema jurídico anglo-saxão (common law) o critério para definir a lei aplicável utilizado comumente é o da lei do local da execução obrigação (lex loci executionis), já no sistema romano-germânico (civil law) o critério utilizado seria a do local de celebração (lex loci celebrationis)[44]. O Brasil, como tradicional pertencente do último, adotou o critério do local da constituição da obrigação como regra geral para lei aplicável. Somente como exceção estabelece-se que, entre ausentes, a lei aplicável seja a do proponente, eis o que dispõe a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro:

Art. 9º Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.

§ 1º Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato.

§ 2º A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente.[45] 

A interpretação por vezes dada ao referido dispositivo é que existe oposição legal implícita à escolha da legislação aplicável, por falta de ressalvas no dispositivo, limitando-se assim, de maneira abismal, a autonomia da vontade. Esta interpretação do vigente artigo é de tal forma, pois o antigo Código Civil de 1916, ao dispor sobre a regência da lei brasileira, incluiu em seu dispositivo a literalidade da expressão “salvo estipulação em contrário”:

Art. 13. Regulará, salvo estipulação em contrário, quanto à substância e aos efeitos das obrigações, a lei do lugar, onde forem contraídas.

Parágrafo único. Mas sempre se regerão pela lei brasileira:

I. Os contratos ajustados em países estrangeiros, quando exeqüíveis no Brasil.

II. As obrigações contraídas entre brasileiros em país estrangeiro.

III. Os atos relativos a imóveis situados no Brasil.

IV. Os atos relativos ao regime hipotecário brasileiro.[46](grifo nosso)

 Isto posto, há ainda parte da doutrina que nega a autonomia da vontade no âmbito internacional, como coloca Nadia de Araujo:

Para João Grandino Rodas, o caput do artigo 9º é taxativo e não se pode afirmar a existência da autonomia da vontade para a indicação da lei aplicável no DIPr brasileiro. Ele acredita que resta somente às partes apenas o exercício da liberdade contratual na esfera das disposições supletivas da lei aplicável, por determinação da lex loci contractus.[47]

Não obstante, há também a vertente, defendida por Serpa Lopes, que advoga pela vigência plena da autonomia da vontade, sendo somente afastada quando estiver em jogo uma lei imperativa, isto é, não existiriam limitações por força do artigo 9º:

 De fato, a lei não impõe uma restrição pelo simples prazer de cercear a liberdade individual, mas por motivos ponderáveis, motivos esses que não podem subsistir, em se tratando de situações onde não esteja em causa qualquer norma imperativa.[48]

Outra parte da doutrina, frisam Mendes e Caldas[49], aceita a completa aplicação do instituto, caso este for admitido pelo país onde a obrigação foi constituída, sabendo que as obrigações são regidas pela lei do país em que foram firmadas.

Segundo Araujo, Jacob Dolinger acredita ser permitida a eleição contratual da lei aplicável, mesmo esclarece que a posição do legislador em aplicar a lei de constituição contratual é proveniente do entendimento que sempre há uma vontade tácita de submeter o contrato a lei do local no qual foi firmado[50].

A cláusula de foro diz respeito à autonomia de escolha de foro e não de norma, portanto, não me adentrarei mais profundamente em questões que fogem da temática central do presente estudo. Todavia, posiciono-me consoante o momento histórico atualmente vivido, onde as transações comerciais acontecem com uma velocidade e amplitude geográfica cada vez maior, acreditando que a limitação legislativa desarrazoada é prejudicial ao crescimento nacional.

Outrossim, a limitação da uma ato jurídico por uma omissão legislativa considerada em face de uma norma do longínquo ano de 1916 é desarrazoada e inconsistente. Clara é a Constituição ao dispor o princípio da legalidade em seu art. 5º, II, explicando que “ninguém será obrigado a fazer ou deixa de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Assim, de acordo com o texto constitucional, o legislador deveria expressamente dispor no sentido de proibir uma conduta, devendo a omissão ser considerada como uma permissão.

2.1.2. A devida diferenciação da Cláusula de Eleição de Foro e a de Eleição de Norma Aplicável

A autonomia da vontade internacional não se resume a escolha da norma aplicável, há também a escolha do foro aplicável. Ressalta-se que ambos os institutos têm diferenciação clara: a questão do foro aplicável diz respeito somente à matéria processual, é dizer, trata somente do órgão competente para examinar o litígio; enquanto a questão da norma aplicável dispõe sobre a aplicabilidade da lei material em possíveis querelas referentes a contrato, como já anteriormente colocado.

Faz-se necessário frisar tal diferença, tendo em vista o posicionamento corriqueiramente errôneo da doutrina pátria sobre o tema, que confunde ambos os institutos. Franceschini expõe que “no Direito Internacional Privado brasileiro há, ainda, certa confusão entre a lei aplicável e o foro, notadamente em face de uma quase irresistível tendência em favor da aplicação da lei do foro aos contratos internacionais.”[51]

Da mesma forma, ressalta Nadia de Araujo:

Há confusão nas decisões dos tribunais entre autonomia da vontade em escolher a lei aplicável – instituto específico do direito internacional privado – e a autonomia da vontade em estabelecer, através de cláusula contratual, foro em país estrangeiro, apesar de sua permissão pela legislação.[52]

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Tal confusão se dá pelo pouco desenvolvimento do ordenamento jurídico pátrio ao dispor quanto ao estabelecimento de cláusula de foro e o Direito Internacional Privado como um todo.

Ao se debater sobre a autonomia de vontade quanto ao estabelecimento de cláusulas limitadoras da atividade jurisdicional nos contratos internacionais pode-se, portanto, demarcar cinco nítidas situações:

Primeiramente, faz-se relevante citar situação bem específica: o contrato submetido à cláusula de arbitragem, que tem seu tratamento disposto na Lei n°. 9.307 de 1996.

Seguindo a demarcação, há o caso do contrato constituído em território nacional, mas com cláusula que estabelece a regência de norma estrangeira. Situação que é, de longe, a mais examinada pela doutrina e jurisprudência pátria, e, como já expresso anteriormente, inclino-me por sua validade.

Deve se enumerar igualmente a situação oposta: o caso do contrato constituído em território estrangeiro, com competência originária estrangeira, mas com cláusula que estabelece a regência de norma nacional. Fato este pouco estudado pela doutrina e que só traria efeitos em nosso sistema jurídico em caso de eventual necessidade de homologação do julgado estrangeiro.

Já sobre a eleição de foro, pode se enumerar as duas últimas situações: O contrato constituído em território nacional, mas com cláusula que estabelece a regência de foro estrangeiro; e a situação inversa onde o contrato constituído em território estrangeiro estabelece cláusula de regência de foro nacional.

Desta forma, o presente estudo dedica-se especificamente às cláusulas de estabelecimento de foro estrangeiro nos contratos de consumo, que será alvo de disposições mais minuciosas nos capítulos posteriores.

2.2. A Autonomia da Vontade no Âmbito do Contrato Consumerista

O tratamento específico do contrato de consumo no ordenamento jurídico nasce propriamente pela necessidade de se tutelar tal relação contratual por demais dispare. Como disporei neste tópico, há flagrante diferença de poderes entre as partes de uma relação de consumo, fazendo-se, assim, necessário uma relativização do conceito clássico de autonomia contratual.

2.2.1. A Moderna Crise do Contratualismo

Ao tratar deste assunto, cabe, introdutoriamente, contrastar a realidade das práticas contratuais atuais em face ao que havia nos primórdios da normatização do Direito Contratual. Atualmente, com o avanço do capitalismo global e a democratização das relações econômicas, é incontestável que a maior parte dos contratos firmados são entre um leigo, que compra para seu uso pessoal, o consumidor; e um negociador profissional, o fornecedor. Relações estas que, de fato, são pobremente tuteladas na legislação civil tradicional, haja vista a contemporaneidade da temática.

Cláudia Lima Marques coloca tais contratos como frutos da intitulada crise da pós-modernidade[53], na qual impera uma crescente racionalização e padronização das relações humanas, e, por tais razões, não mais se mostrariam suficientes os valores vinculados ao conceito tradicional de contrato.

A doutrinadora esclarece que na concepção tradicional de contrato haveria uma posição de paridade entre as partes contratantes, perante o direito e a sociedade, podendo elas então discutir especifica e individualmente sobre as cláusulas contratuais, negócios jurídicos hoje denominados como contratos paritários[54].

Inobstante, o contrato tradicional tem perdido cada vez mais campo, na prática negocial hodierna, para o contrato de consumo, que, por sua vez, ao contrário do anterior, mostra grande disparidade de força entre os contratantes e carece de negociação entre as partes, fato condizente com os anseios do mercado. Pertinentemente Marques ilustra a atual desigualdade nas relações contratuais:

Como se observa na sociedade de massa atual, a empresa ou mesmo o Estado, pela sua posição econômica e pelas suas atividades de produção ou distribuição de bens ou de serviços, encontram-se na iminência de estabelecer uma série de contratos no mercado. Estes contratos são homogêneos em seu conteúdo (por exemplo, vários contratos de seguro de vida, de compra e venda a prazo de bem móvel) mas concluídos com uma série ainda indefinida de contratantes.[55]

Em favor de economia, praticidade e segurança, predominam os contratos já preparados pelo fornecedor oferecidos a simples concordância dos consumidores, habitualmente com condições já estabelecidas.

Evidencia-se a crise do contrato, ainda segundo Marques, pela “decadência do voluntarismo no Direito Privado”[56], ou seja, a atual realidade econômica global levou ao crescente domínio de contratos “pré-fabricados”. Estes, também chamados contratos de adesão, deram origem a uma limitação da autonomia de forma estrutural. Situação fática esta refletiva também na legislação, em especial na consumerista.

2.2.2. A Autonomia da Vontade e o Contrato de Adesão

Nada mais do que a predominância dos contratos de adesão levou a maior parte dos países a legislarem almejando a proteção da parte mais vulnerável da relação jurídica. Felizmente, o Brasil entrou no rol destas nações com a edição do Código de Defesa do Consumidor em 1990.

Os contratos de consumo são comumente construídos na prática comercial com base no chamado do contrato de adesão, que são até mesmo definidos legalmente pelo Código de Defesa do Consumidor:

Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.[57]

Faz-se mister ressaltar que a doutrina, em especial a professora Cláudia Lima Marques, menciona também um outro instituto similar ao contrato de adesão, proveniente da doutrina germânica, conhecido como cláusulas gerais contratuais (Allgemeine Geschäftsbedingungen em alemão). Estas dizem respeito à fase pré-contratual, onde são elaboradas unilateralmente as condições contratuais.

Marques leciona que tal instituto não pode ser confundido com o contrato de adesão, posto que, de acordo com a Comissão das Comunidades Europeias, os contratos submetidos a condições gerais também englobariam os contratos não escritos[58], como, exempli gratia, os contratos de transporte.

Sem embargo, a maior parte da doutrina pátria encara as cláusulas gerais contratuais como mera mudança de foco na análise de igual instituto, o contrato de adesão, como expõe Orlando Gomes:

Considerada como aspecto da formulação das cláusulas por uma só das partes, recebe a denominação de condições gerais dos contratos [...] Encarada no plano da efetividade, quando toma corpo no mundo da eficácia jurídica, é chamada de contrato de adesão.[59]

Do outro lado do Atlântico, os portugueses, que seguiram a conceituação alemã em sua legislação, criticam a inobservância pelos brasileiros de tal diferenciação, como coloca José de Oliveira Ascensão:

A categoria das cláusulas contratuais gerais não teve praticamente acolhimento no Brasil. Não o teve na lei; e a doutrina e a jurisprudência continuaram a referir o contrato de adesão, e não a categoria mais escorreita das cláusulas contratuais gerais.[60]

Em que pese às críticas à legislação brasileira por parte da doutrina, a jurisprudência trata igualmente os contratos submetidos a cláusulas gerais como contratos de adesão. Mostrando-se inócua e preciosista, para fins práticos, sua diferenciação, haja vista que ambas situações serão tuteladas pelo Direito do Consumidor.  

Para todos os efeitos, portanto, seguirá o presente trabalho o entendimento que os contratos de adesão englobariam também os contratos submetidos a condições gerais.

Ademais, faz-se relevante mencionar que contrato de adesão não se confunde com contrato de consumo. Havendo limitações a estes não só na legislação específica, mas nas disposições gerais sobre os contratos no atual Código Civil. [61]

Não obstante, mesmo que os contratos de adesão não necessariamente deem origem aos contratos de consumo; estes, em uma indubitável maioria, são concretizados naqueles.

2.2.3. As Limitações à Autonomia da Vontade no Contrato de Consumo

Historicamente, a expressão contrat d’adhésion é atribuída à doutrina francesa. De fato, a presença da própria expressão adesão leva a crer em uma manifestação unilateral de uma das partes, seguida da aceitação ou não pela outra parte. Este negócio jurídico é descrito pelos anglófonos como um contrato com base take it or leave it (leve-o ou deixe-o).

Por isso, muito já se discutiu na doutrina sobre a existência ou não de natureza contratual neste instituto, que já foi mesmo visto pelos doutrinadores mais fatalistas como culpado pela “morte do contrato”[62], posto que a função do Estado, tradicionalmente vista como exceção, tornar-se-ia uma regra segundo esta doutrina fatalista. Tal visão não é verdadeira, não se deve tratar o contrato de adesão como forçosamente abusivo, sendo sua regular existência perfeitamente legal.

Nos contratos consumeristas, e especialmente nos contratos de adesão, a declaração de vontades não é limitada somente quanto aos bons costumes e à ordem pública, mas também quanto as condições pré-dispostas por um dos contratantes. A autonomia de vontade do consumidor, expressa contratualmente pela declaração de vontade, manifesta no mundo, portanto, pela aceitação do contrato oferecido.

Tendo em vista esta diferenciação do contrato habitual, faz-se essencial a existência de um dever de transparência nas relações de consumo, como já exposto. Assim, deve o consumidor ser amplamente informado das condições em que estar contratando para que o exercício pleno de sua autonomia da vontade ocorra.

Para garantir a plena liberdade para contratar, o Código de Defesa do Consumidor estabeleceu inúmeras regras sobre a veiculação das ofertas e das cláusulas contratuais. Um exemplo é o artigo 30, que obriga o fornecedor a se manter nos termos da oferta concedida.

Enquanto a autonomia da vontade do consumidor limita-se por participar infimamente no processo negocial do contrato, a autonomia de vontade do fornecedor de bens e serviços também é fortemente limitada na legislação consumerista. Uma dessas limitações é a nulidade das cláusulas consideradas legalmente abusivas, listadas ao artigo 51 do CDC, sobre as quais disporei com mais delongas posteriormente.

De pronto, é importante mencionar que se deve ponderar e refletir no caso concreto sobre a anulação de tais possíveis cláusulas, posto que indiretamente fazem parte da limitação geral de negociar desconsiderando a “ordem pública e os bons costumes”. Não há, de tal forma, limitação específica à autonomia da vontade aos contratos de consumo desconexa aos princípios relativos aos contratos em geral.

Pode se questionar, entretanto, que há normas limitadoras na legislação consumerista que não necessariamente compõem a ordem pública, mas parte integrante de uma ampla política legislativa de proteção ao consumidor. Caso este é o do artigo 47 do CDC que determina que todas as cláusulas contratuais estabelecidas devem ser interpretadas em favor do consumidor. Sem embargo, mesmo admitindo o fim político da norma, creio que o posicionamento político da legislação não a desqualifica como norma de ordem pública.

Com efeito, há uma busca cada vez maior do Direito em não somente garantir os direitos de liberdade, ligados à primeira geração dos Direitos Fundamentais, mas compatibilizá-los – e, assim, intensificá-los – com direitos de ordem social e econômica, identificados como a segunda geração dos Direitos Fundamentais. Desenvolve Cláudia Lima Marques:

À procura do equilíbrio contratual, na sociedade de consumo moderna, o direito destacará o papel da lei como limitadora e como verdadeira legitimadora da autonomia da vontade. A lei passará a proteger determinados interesses sociais, valorizando a confiança depositada no vínculo, as expectativas e a boa-fé das partes contratantes.[63]

 Neste azo, observa-se, sobretudo, um propósito legislativo de equilíbrio nas relações jurídicas e, somente visando-o, interfere o Estado nas relações contratuais privadas.

Desta forma, não há como negar a existência da autonomia da vontade das partes na celebração de um contrato de adesão – mesmo que com limitações, seja pela própria natureza jurídica do instituto ou pela intervenção estatal –, as partes não são forçadas a contratar, a moderna massificação das relações contratuais dá ampla liberdade ao consumidor escolher as condições negociais que ele decidir melhores. Expõe Lefebvre:

Aujourd’hui, le contrat résulte encore de la rencontre de deux volontés et une personne ne saurait être liée contractuellement contre son gré. La rencontre de deux volontés et la création du contrat qui en résulte n’impliquent pas nécessairement que le contenu ait pu être négocié et déterminé par les deux contractants. La volonté réside souvent dans le seul fait d’avoir accepté les termes d’un contrat. C’est le phénomène du contrat d’adhésion. Le contractant adhère ou non au contrat qui lui est proposé. C’est Le seul espace où sa volonté peut s’exercer. Qui dit contrat d’adhésion, ne dit pas nécessairement abus. Le contrat d’adhésion répond souvent à une nécessité du contexte économique.[64]

A limitação em contratar do consumidor e a submissão a legislação específica não limitam a expressão da autonomia da vontade nos contratos de consumo, mas emolduram-na a uma realidade socioeconômica moderna, na qual relevam-se o desenvolvimento econômico e a proteção jurídica do menos favorecido.

Por fim, ressalta-se a interpretação histórica: o tratamento jurídico diferencial destas relações só reflete suas características econômicas modernas que, por sua vez, são forçosamente diferentes das de tempos passados. Não há como se conceber o Direito como uma entidade imutável entalhada nos murais do tempo, mas sim uma ciência dinâmica na qual os conceitos devem ser constantemente revisados para sua melhor aplicação na sociedade. Tal qual coloca o antigo brocardo latino, ubis societas, ibi ius.

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Sobre o autor
Bruno Aires de Sá

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SÁ, Bruno Aires. Análise sobre a validade das cláusulas de eleição de foro nos contratos internacionais de consumo . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3557, 28 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23968. Acesso em: 26 abr. 2024.

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