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Análise sobre a validade das cláusulas de eleição de foro nos contratos internacionais de consumo

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28/03/2013 às 14:51
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3. A VALIDADE DAS CLÁUSULAS ELETIVA DE FORO NOS CONTRATOS CONSUMERISTAS INTERNACIONAIS

A cláusula de eleição de foro permite às partes designar as cortes onde serão julgadas as eventuais disputas sobre o contrato firmado. Por esta, os contratantes abdicam da jurisdição natural e acordam novo foro para julgar as pendências negociais. Esta disposição, como já explicitado no capítulo anterior, não se confunde com a cláusula de eleição de norma, que, por sua vez, é fruto de intensa discussão na doutrina brasileira quanto sua validade.

São inúmeros os fatores que levam aos contratantes firmar entre eles contrato com cláusulas de eleição de fórum, e, em que pese a existência do instituto não ser recente, grande parte destes fatores estão ligados ao fenômeno do Capitalismo Globalizado. Companhias multinacionais fazem amplos negócios em todos os cantos do mundo, com uma velocidade até pouco tempo inimaginável, grande parte deste avanço se deve ao desenvolvimento a passos largos dos meios de comunicação.

De fato, hoje somos capazes de firmar contratos pela tela de um computador via internet sem nem mesmo conhecer aquele com que negociamos, criando situações juridicamente tuteláveis nunca antes vistas e a Cláusula de Eleição de Foro pode se mostrar como opção mais simples e barata que a clássica Cláusula Arbitral. Contudo, é de comum conhecimento que a adequação do Direito a situações novas é processo lento, sendo a atividade legislativa não tão dinâmica quanto o surgimento de fatos jurídicos. Ipso facto, para melhor tutelar tais eventos, são levadas as partes a inovar e o julgador deve estar atento a tais velozes mudanças ao se deparar com situação similar.

Sendo as cláusulas de foro nos contratos de consumo internacionais o objeto deste estudo, disporei aqui, para fins didáticos, primeiramente sobre a cláusula de eleição de foro nos contratos internacionais e nos contratos de consumo separadamente, e a aplicabilidade de ambos, para só então tecer observações sobre quando estes se mesclam.

3.1. As Cláusulas de Eleição de Foro nos Contratos Internacionais

A interpretação da cláusula de eleição contratual de foro em âmbito internacional se mostra uma incumbência bem mais complexa do que em âmbito interno. Tal trabalho revela-se hercúleo, haja vista a multiplicidade de ordenamentos jurídicos envolvidos e a diversidade de paradigmas doutrinários, legislativos e jurisprudenciais listados neste tópico.

3.1.1. A Validade do Instituto do Dépeçage no Direito Brasileiro

Vocábulo de origem francesa, dépeçage significa “fracionamento, desmembramento”, é termo utilizado atualmente não somente pela doutrina francófona, mas no mundo inteiro, designando situação específica quanto ao conflito de leis no Direito Internacional Privado.

Conceitua-se o depeçage como um mecanismo de fracionamento de um contrato específico visando que este seja submetido a legislações de países diversos em pontos diferentes dos contratos. Maria Helena Diniz define o instituto como:

(...) um método analítico mais profundo do que todos os elementos de conexão existentes no contrato internacional, qualificando-o mais perfeitamente. Dar-se-á o dépeçage quando em uma dada uma situação jurídica, multiconectada, for possível a incidência de normas de diferentes ordens jurídicas relativamente a diferentes aspectos de um contrato.[65]

Segundo Emiliano Humberto Della Costa a ocorrência do instituto se dá em duas hipóteses: Primeiro, em decorrência da autonomia da vontade das partes em escolher mais de uma lei para reger o contrato por elas firmado; e, em segundo, por consequência da própria sistemática do Direito Internacional Privado, pois, em suas palavras, “a substância [do contrato] pode ser regida por uma lei, enquanto, por exemplo, a capacidade das partes por outra.” [66]

A ulterior circunstância, destarte, é proveniente de um conflito de normas. Maria Helena Diniz explica:

Considerando que há limitações à autonomia da vontade dos contratantes, e sua vontade não pode reger todos os aspectos do contrato, é preciso decompor o contrato em seus vários elementos, para aplicar a cada uma de suas partes a lei pertinente. Por exemplo, pode ocorrer em um contrato que a capacidade das partes seja regida pela lei pessoal de algum dos contratantes; as obrigações das partes pela de um país neutro; a forma, a lei do local de celebração; e a transferência do domínio, à lei de situação do imóvel.[67]

Deste modo, enquanto visualiza-se na primeira circunstância uma vasta liberdade contratual, a outra é fruto do conflito de legislações proveniente da limitação da autonomia de vontade das partes. Ambos os casos, tão diversos e praticamente opostos, são frutos de um mesmo instituto, o dépeçage.

Isto se dá em especial pela natureza do contrato e a atenção das partes quanto às chamadas mandatory rules (regras imperativas) internas de cada país envolvido, em especial as regras de conexão. Portanto, sendo as regras de conexão de países distintos compatíveis entre si e optando o contratante não ir contra estas, não há como negar a vigência de uma norma eleita validamente para uma parte específica do contrato.

Sem embargo, é caso também de dépeçage quando há conflito de normas dos ordenamentos jurídicos envolvidos na transação, ou mesmo um conflito de normas dentro das normas internas de competência. Verbi gratia, imaginemos um caso venha onde foi firmado contrato de venda de imóvel brasileiro, mas o negócio foi efetuado em país estrangeiro.

Ora, por força das normas listadas ao artigo 89, inciso I, do Código de Processo Civil e do artigo 12, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, esta ação seria de competência exclusiva da autoridade judicial brasileira. Fato este que, pela forma do dépeçage, não excluiria a vigência do artigo 9º também da LINDB que dispõe que lei que rege as obrigações é aquela do país onde elas foram constituídas. Nesta hipótese, então, há competência jurisdicional de um foro brasileiro cumulada com a vigência de normas estrangeiras sobre o caso concreto.

Em que pese ser válido o instituto do fracionamento no Direito Brasileiro, sobretudo pela inexistência de proibição legal de tanto, os juízes ainda mostram cautelosos ao aplicá-lo. Alega mesmo Nadia de Araujo que há dificuldades em sua aplicação, por geralmente ser somente uma lei necessária à solução das querelas postas[68], havendo, assim, além do temor dos julgadores, poucas oportunidades de manifestação sobre o instituto.

Esta problemática não é somente observada em nosso país, mas também em outros ordenamentos jurídicos aparentemente mais habituados e mais preparados a tais circunstâncias, como é o caso dos Estados Unidos. Em realidade, neste país se constata uma possibilidade ainda mais elevada de conflito de normas de conexão, haja vista a amplitude da competência legislativa dos estados. Sendo o fracionamento lá um fermentador de excessiva complexidade à causa, como explica Stevenson:

First, depecage forces the court’s legal analysis to become extremely complex. Secondly, there is a question as to how far a court should split issues. Splitting liability from damages, punitive damages from compensatory damages, and then further dissecting these issues as they relate to individual parties may water-down the decisive perception that courts should possess. This type of issue splitting presents the picture of Russian Matryoshka dolls where inside each doll is a smaller doll. Every time a court examines an issue to determine which state’s law will apply to that issue, it then finds an issue inside of that issue.[69]

De fato, o fracionamento é ponto delicado quanto sua efetividade nos tribunais. Sem embargo, Nadia de Araujo consegue achar, ainda que parca, jurisprudência nacional sobre o tema. Cita a doutrinadora carioca uma decisão do extinto Tribunal de Alçada do Rio de Janeiro que entendeu pela aplicabilidade de lei estrangeira para fatos ocorridos no exterior em relação a determinado contrato, e, para a execução deste contrato, a lei do seu local de realização, no caso, a lei brasileira:

Tribunal de Alçada Cível do Rio de Janeiro

EXECUÇÃO DO CONTRATO E MATÉRIA DE PROVA LEI APLICÁVEL. Ação instruída com a terceira via do conhecimento original – THIRD ou THREE ORIGINAL -, preenche a exigência contida no art. 589, do Código Comercial. A Lei de Porto de destino aplica-se ao modo de descarga e às consequências da execução do contrato. A prova dos fatos ocorridos em País estrangeiro rege-se pela lei que nele vigorar, quando aos ônus e aos meios de produzir-se. Aplicação do art. 13, da Lei de Introdução ao Código Civil.[70]

Como exposto, a aplicabilidade pura do instituto do dépeçage é afã por demais complexo e sujeito a uma infinidade de interpretações pelas cortes ao analisá-lo, gerando uma visível insegurança jurídica. Por este motivo, sua expressa previsão contratual é rara e mesmo sua realização por força legal ainda é motivo de receio das cortes.

Em realidade, o fenômeno do fracionamento não é o que se dispõe diretamente neste estudo, contudo, a sua existência ou não no mundo jurídico é questão incidental fundamental ao analisar a validade das cláusulas de eleição de foro internacional.

Como já anteriormente exposto, a melhor doutrina faz clara diferença entre a cláusula de eleição de norma e a cláusula de eleição de foro, coloca-os como institutos completamente independentes, ou seja, podem as partes de um contrato convencionarem por um foro e submeterem normas que não necessariamente seriam do domínio deste, mas provenientes de um ordenamento jurídico estrangeiro.

Ora, se existe tal possibilidade, há claro fracionamento das normas que regem este contrato. Explica-se: ao se decidir pela submissão de um contrato a uma corte de um país diverso daquele que “cede” seu ordenamento jurídico para regrá-lo, há uma forçosa submissão do contrato a certas normas que regem o foro de eleição, como, verbi gratia, as regras processuais do foro.

São as regras de ordem pública. É evidente que o julgador escolhido para solucionar a querela não poderá simplesmente aplicar as normas externas sem levar em conta todas as regras que fornecem a paz geral ao seu Estado. Destarte, mesmo que este sopesamento esteja vinculado à minuciosa análise do caso concreto, todos os contratos com cláusulas de eleição de foro internacional estão sujeitas a dépeçage.

Com efeito, o fracionamento não é fenômeno comum no mundo jurídico, porém, para todos os efeitos, é perfeitamente válido. Sendo assim confirmada a independência das cláusulas de eleição de foro e de norma, considerando-se ambas perfeitamente válidas e independentes no nosso ordenamento jurídico por força do instituto do dépeçage.

3.1.2. As Limitações Legais à Cláusula de Eleição de Foro Internacional

Inicialmente, é necessário adentrar-se no aspecto deontológico da temática suscitada dentro da Ciência Jurídica. Neste domínio, pode se levantar vários questionamentos quanto à eleição de foro, em especial sobre seu possível conflito com princípios constitucionalmente previsto: como a Soberania, a Inafastabilidade do Poder Judiciário e o Princípio do Juiz Natural; haja vista que cláusula de tal natureza forçosamente se reflete em atividade precípua do Estado, que é a atividade jurisdicional.

Explica José Afonso da Silva que “[a] soberania não precisava ser mencionada [na Constituição], porque ela é fundamento do próprio conceito de Estado”. [71]Conceitua-a puramente como poder político supremo e independente. [72]Desta feita, o constitucionalista não relaciona a soberania com a atividade jurisdicional, ainda que a tradicional concepção de Estado coloque-a como uma das esferas da divisão tripartite de poder.

Doutrinariamente a Soberania é dividida em duas faces: Primeiramente, o conceito vestfaliano de igualdade formal dos Estados ao tratarem entre si pelas normas de Direito Internacional, e, em segundo, o poder de superioridade do Estado perante seus “vassalos”, isto é, seus nacionais. Não obstante, em que pese a existência até os dias atuais da dogmática da soberania vestfaliana, o poder de império do Estado sobre os seus súditos é modernamente cada vez mais questionado e relativizado.

Notadamente, o inciso XXXV do art. 5º. da Carta Magna expressa que a lei não poderá excluir a apreciação judicial de lesão ou ameaça de direito. Inexistente, destarte, qualquer referência expressa quanto à possibilidade de disposição contratual a respeito, a técnica redacional do dispositivo leva-nos a crer que não, posto que um contrato nada mais é do que uma lex inter partes. Complementando a norma supracitada, vem o inciso LIII do mesmo artigo 5º. dispor que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”, a tradução constitucional ao Princípio do Juiz Natural.

Sem embargo, em que pese a existência destas normas-princípio na Carta Constitucional, estes não devem ser considerados como absolutos e balanceados com os outro princípio fundamental: o da liberdade, sobre o qual já nos manifestei-me extensivamente em capítulos anteriores. Ao ponderar especificamente sobre a Cláusula de Foro, o Supremo Tribunal Federal pendeu à liberdade quando formulou a Súmula n°. 335 dizendo que “[é] válida a cláusula de eleição do foro para os processos oriundos do contrato.”[73]

Não obstante, como já mencionado anteriormente neste trabalho, estes contratos continuam submetidos às normas de ordem pública (em quais as normas sobre Soberania estão contidas) e os bons costumes. Como dispõe o artigo 17 da LINDB.[74]Dentre estas limitações, relevam-se as regras processuais, em especial os artigos 88 a 90 do CPC, que cuidam da competência internacional.

Com base nestes artigos, a doutrina costuma dividir a competência internacional em concorrente ou exclusiva, conforme os artigos 88 e 89, respectivamente.

A competência concorrente, listada no artigo 88 do CPC, dá-se quando é “possível que a demanda seja ajuizada no Brasil ou perante autoridade jurisdicional de outro país que também tenha, na hipótese, competência internacional.”[75]Em que pese a legislação não expressamente colocar a possibilidade de conhecimento da ação em outro país, faz-se uso de uma interpretação sistemática ao observar que somente no artigo 89 há menção à exclusão de qualquer outra jurisdição estrangeira, sendo, destarte, somente nos casos postos neste último exclusiva a atividade jurisdicional pátria.

As regras definidas pelos incisos I e II do artigo 88 do CPC refletem a literalidade do dispositivo pré-existente no artigo 12 da LINDB, ou seja, é competente corte brasileira quando o réu tiver o Brasil como domicílio ou se aqui se der sua obrigação. Tal disposição pode conflitar-se com o estabelecimento de foro estrangeiro, e, posteriormente neste trabalho, será analisado o tratamento dado pelos julgados nacionais neste conflito de jurisdições.

Outrossim, ressalta-se uma severa crítica ao inciso III do supracitado artigo que diz que é também competente tribunal brasileira caso “a ação se originar de fato ocorrido ou de ato praticado no Brasil”[76]. Esta regra que remonta à segunda parte do artigo 15 do Código Civil de 1916 se mostra, em meu entendimento, completamente anacrônica e geradora de grave insegurança jurídica. Senão imagine-se hipótese em que empresários firmem contrato em território nacional sobre aspecto que em nada se mostra relevante à ordem pública nacional, como, exempli gratia, a compra e venda de imóvel de bem situado no exterior, negociada por estrangeiros e não havendo algum interesse de brasileiro sobre a negociação, ainda assim, tal contrato poderia ser contestado na jurisdição brasileira.

O risco que se cria nesta situação é o do chamado forum shopping,a escolha de má-fé de um tribunal, ou seja, caso uma das partes acredite que a jurisdição estrangeira seja de qualquer forma prejudicial a seus interesses, poderá o contratante usar-se da jurisdição brasileira de má-fé. Sendo, portanto, incabível tal dispositivo em nosso ordenamento jurídico.

A competência exclusiva do artigo 89 do CPC, por sua vez, reflete as questões onde a soberania nacional se faz realmente imperante: Primeiramente, aos bens imóveis situados no Brasil, fato que pode resultar a maculação da integridade territorial nacional; e o inventário de bens situados no Brasil, visando à manutenção do patrimônio material do país.

Por fim, o artigo 90, segundo Freddie Didier Junior, “para dar ênfase à supremacia da jurisdição nacional em face da estrangeira”[77], determina que a ação intentada no exterior não induz à litispendência, levando a uma verdadeira corrida aos tribunais, como coloca Luciano Benetti Timm:

“A viabilidade de concorrência de jurisdição pode provocar, na prática, uma “corrida maluca”, pois somente a homologação da sentença estrangeira pelo órgão competente jurisdicional nacional (o STJ) pode gerar o efeito da coisa julgada, e, portanto, interromper uma ação idêntica no Brasil (TJRS, ApCiv 70.008.853.731, 8ª Cam. Civ. 01.07.2004).”[78]

Além dos dispositivos sobre a competência internacional, o Código de Processo Civil dispõe expressamente também sobre a possibilidade do foro de eleição, nacional ou extrangeiro:

“Art. 111.  A competência em razão da matéria e da hierarquia é inderrogável por convenção das partes; mas estas podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde serão propostas as ações oriundas de direitos e obrigações.”[79]

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Norma que dá aplicação ao artigo 78 do atual Código Civil[80], sua redação dá clara validade à cláusula de eleição de foro para o processo civil brasileiro. A única ressalva que o dispositivo faz é a da competência em relação à matéria e à hierarquia, que são matérias de ordem pública.

Ademais, há inúmeras regras de ordem pública, dispersas no ordenamento jurídico brasileiro, que impedem a eleição de foro, como, por exemplo, o artigo 651 da Consolidação das Leis do Trabalho[81]e o artigo 101 do Código de Defesa do Consumidor, sobre o qual tecerei comentários oportunamente.

Em relação às normas postas por tratados internacionais, a matéria é bastante escassa. Dispõe a literalidade Convenção Interamericana sobre o Direito Aplicável aos Contratos Internacionais que ela não é aplicável em casos onde haja eleição de foro.[82]A Convenção das Nações Unidas para a Venda Internacional de Mercadorias, comumente conhecida graças ao seu local de celebração como Convenção de Viena, é também de pouca utilidade posto que o Brasil não é um de seus signatários[83].

O único tratado que relevante sobre a temática é o Protocolo de Buenos Aires sobre Jurisdição Internacional em Matéria Contratual, instituído no âmbito mercosulino, que valida a cláusula de eleição de foro:

Artigo 4º. Nos conflitos que decorram dos contratos internacionais em matéria civil ou comercial serão competentes os tribunais do Estado-Parte em cuja jurisdição os contratantes tenham acordado submeter-se por escrito, sempre que tal ajuste não tenha sido obtido de forma abusiva.[84]

Sem embargo, o protocolo também adquire relevante feição hermenêutica ao determinar que o contrato deve ser interpretado pela forma mais favorável à sua validade, bem como aceita a prorrogação de jurisdição caso haja concordância expressa das partes.

Todavia, nos termos de seu artigo 2º, sua aplicabilidade é excluída em certos casos, e dentre eles estão os presentemente estudados contratos de consumo internacionais.

3.1.3. A Jurisprudência Nacional sobre as Cláusulas de Foro em Contratos Internacionais

Se não é o Direito nada sem a prática, ponto ainda mais relevante que as normas sobre o instituto é o tratamento dado a ele nas cortes pátrias. Coadunando com a legislação que, segundo Araujo e Jacques, “ainda tem ares do século XIX, afinada com as teorias da idade média”[85], a jurisprudência ainda segundo elas é “vacilante na utilização de conceitos mais modernos e de caráter universal do direito internacional privado.”[86]

Na prática, os tribunais, em todas as instâncias, não agem em consenso e não demonstram uma verdadeira inclinação. Por vezes aceitando a cláusula de eleição de foro, e por vezes a desconsiderando, tanto em casos de homologação de julgado internacionais sobre contratos com cláusula de foro no Brasil, como ao tratar de eleição de corte nacional.

A mais alta corte do país, o Supremo Tribunal Federal, ao homologar sentenças alienígenas (quando esta era sua prerrogativa) e analisar cartas rogatórias, depararando-se com causas que envolviam cláusulas de eleição de foro brasileiro, inicialmente inclinou-se pela validade desta, diz Araujo[87]. Sendo imperativa a atividade de cortes nacionais, impedindo-se ainda uma submissão “expressa ou tacitamente ao juízo estrangeiro”[88].

Ainda de acordo com Nadia de Araujo, mais recentemente, a posição do STF aprimorou-se ao recusar a competência estrangeira somente nos casos de competência exclusiva da justiça brasileira. Em homologação de sentença estrangeira[89], a suprema corte “julgou pela concessão do pedido, ao argumento de que a submissão ao foro estrangeiro era necessária quando resultasse de um contrato, ou de atividade desenvolvida no exterior”[90]além de não existir nenhum a determinante que leve à aplicabilidade do artigo 89 do CPC. Luciano Benetti Timm vê tal julgado de maneira similar:

O posicionamento do Supremo Tribunal Federal a respeito não é expresso, mas apontaria uma preferência pelo respeito à cláusula de foro. Diz-se isso, porque, segundo a jurisprudência do STF, caso parte domiciliada em território nacional seja citada em foro estrangeiro eleito contratualmente, dele não poderá se furtar, sob pena de revelia (STF, SE 4.415).[91]

Não obstante, atualmente o Superior Tribunal de Justiça vem tomando posições oscilantes. Em seus julgados, a corte entendeu que a cláusula de eleição de foro não poderia afastar a autoridade judiciária brasileira. Primeiramente, analiso a ementa do REsp n°. 251.438-RJ:

COMPETÊNCIA INTERNACIONAL. CONTRATO DE CONVERSÃO DE NAVIO PETROLEIRO EM UNIDADE FLUTUANTE. GARANTIA REPRESENTADA POR "PERFOMANCE BOND" EMITIDO POR EMPRESAS ESTRANGEIRAS. CARÁTER ACESSÓRIO DESTE ÚLTIMO. JURISDIÇÃO DO TRIBUNAL BRASILEIRO EM FACE DA DENOMINADA COMPETÊNCIA CONCORRENTE (ART. 88, INC. II, DO CPC).

- O "Performance bond" emitido pelas empresas garantidoras é acessório em relação ao contrato de execução de serviços para a adaptação de navio petroleiro em unidade flutuante de tratamento, armazenamento e escoamento de óleo e gás.

- Caso em que empresas as garantes se sujeitam à jurisdição brasileira, nos termos do disposto no art. 88, inc. II, do CPC, pois no Brasil é que deveria ser cumprida a obrigação principal. Competência internacional concorrente da autoridade judiciária brasileira, que não é suscetível de ser arredada pela vontade das partes.

- A justiça brasileira é indiferente que se tenha ajuizado ação em país estrangeiro, que seja idêntica a outra que aqui tramite. Incidência na espécie do art. 90 do CPC. Recurso especial não conhecido, prejudicada a medida cautelar.[92](grifo nosso)

Tal ação tinha como objeto um performance bond – um seguro-garantia típico do Direito norte-americano – em garantia de contrato de execução de serviços firmado nos EUA e com cláusula de eleição de foro na Corte Distrital de Nova Iorque. Rejeitada a demanda em suas duas primeiras instâncias, o processo seguiu até o STJ por Recurso Especial. Em seu voto, o eminente Min. Relator Barros Monteiro entende que “a cláusula eletiva de foro, em hipótese de competência internacional concorrente, não pode ter o condão de afastar a jurisdição brasileira por violar princípio constitucional”.[93]

Em demanda ainda mais recente, o Tribunal manteve seu posicionamento conflitante com o da Suprema Corte, eis a ementa dos Embargos de Declaração no REsp n°. 1159796-PE:

PROCESSO CIVIL. CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO. COMPETÊNCIA INTERNACIONAL. ART. 88 DO CPC. NOTAS TAQUIGRÁFICAS. INTIMAÇÃO. PRECLUSÃO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ACOLHIMENTO, SEM EFEITOS MODIFICATIVOS.

1. A cláusula de eleição de foro estrangeiro não afasta a competência internacional concorrente da autoridade brasileira, nas hipóteses em que a obrigação deva ser cumprida no Brasil (art. 88, II, do CPC). Precedentes.

2. A ementa, o relatório, os votos e as notas taquigráficas formaram uma única decisão sob o ponto de vista lógico e jurídico, embora sua apresentação tenha ocorrido em momentos cronologicamente distintos. Por essa razão, eventual recurso especial deve necessariamente refutar todos os argumentos nela contidos.

3. Se o acórdão recorrido tem duplo fundamento, cada um deles suficiente para a manutenção da decisão impugnada, é vedada sua revisão em sede de recurso especial (Súmula 283/STF).

4. A ocorrência da preclusão consumativa impede o aditamento do recurso especial, porque "é defeso à parte, praticado o ato, com a interposição do recurso, ainda que lhe reste prazo, adicionar elementos ao inconformismo" (AgRg nos EREsp 710.599/SP, Corte Especial, Rel. Ministro Aldir Passarinho Júnior, DJe de 10/11/08). EMBARGOS DE DECLARAÇÃO ACOLHIDOS.[94](grifo nosso)

Sem embargo, surpreende a corte ao utilizar-se de sua outra competência constitucional: a homologação das sentenças estrangeiras. No caso da Sentença Estrangeira n°. 3.932-GB, o STJ seguiu posição diametralmente oposta da que vinha adotando, aceitando plenamente a validade das cláusulas de foro:

SENTENÇAS ESTRANGEIRAS CONTESTADAS. CONTRATOS DE COMPRA, CONVERSÃO, ADAPTAÇÃO E SEGURO DA PLATAFORMA DE PETRÓLEO P-36. TRAMITAÇÃO DE PROCESSO NO BRASIL. ATO HOMOLOGATÓRIO. AUSÊNCIA DE ÓBICE. HOMOLOGAÇÃO REQUERIDA PELOS RÉUS NO PROCESSO ORIGINAL. CITAÇÃO VÁLIDA. COMPROVAÇÃO DISPENSADA. PRINCÍPIO SOLVE ET REPETE. NATUREZA DE ORDEM PÚBLICA. AUSÊNCIA. APRECIAÇÃO DO MÉRITO. IMPOSSIBILIDADE. HOMOLOGAÇÃO. DEFERIMENTO.

I - O ajuizamento de ação perante a Justiça Brasileira, após o trânsito em julgado das rr. sentenças proferidas pela Justiça estrangeira, não constitui óbice à homologação pretendida. Precedentes desta e. Corte e do e. STF: SEC 646/US, Corte Especial, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 11/12/2008; e SEC 7209, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, Rel. para o acórdão Min. Marco Aurélio, DJ de 29/9/2006.

II - "O Art. 88 do CPC, mitigando o princípio da aderência, cuida das hipóteses de jurisdição concorrente (cumulativa), sendo que a jurisdição do Poder Judiciário Brasileiro não exclui a de outro Estado" (REsp 1.168.547/RJ, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 7/2/2011).

III - In casu, as partes optaram livremente em propor as demandas perante a Justiça Britânica, diante da eleição do foro inglês nos contratos firmados.

IV - Dispensa-se a comprovação da citação válida quando é o próprio réu no processo original que requer a homologação da sentença estrangeira. Ademais, ambas as partes se manifestaram no processo, por meio de advogado, e foram ouvidas em juízo. Nesse sentido: SEC 2259/CA, Corte Especial, Rel. Min. José Delgado, DJe de 30/06/2008, e SEC 3535/IT, Corte Especial, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 16/2/2011.

V - Ausência de ofensa à soberania nacional, à ordem pública ou aos bons costumes, uma vez que o princípio solve et repete - assim como a regra da exceção do contrato não cumprido - não possui natureza de ordem pública, razão pela qual foge à apreciação por esta via. Precedente: SEC 507/GB, Corte Especial, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 13/11/2006.

VI - Incabível a análise do mérito da sentença que se pretende homologar, uma vez que o ato homologatório está adstrito ao exame dos seus requisitos formais. Precedentes: SEC 269/RU, Corte Especial, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJe de 10/06/2010 e SEC 1.043/AR, Corte Especial, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe de 25/06/2009.

Homologação deferida.[95]

De fato, a questão é tratada de forma temerária pelo STJ. Esta última decisão, todavia, leva a crer em uma mudança paradigmática nos julgados do órgão, posto que, de acordo com Nadia de Araujo, o tradicional posicionamento é o de “que não se pode afastar, pela inclusão de cláusula de foro estrangeiro, a competência internacional da autoridade judiciária brasileira.”[96]

Outrossim, alinhados com o STF e com a compreensão mais moderna do instituto, estão os tribunais estaduais. Nadia de Araujo cita com primor em suas inúmeras publicações julgados realizados pelo TJRJ em consonância: Primeiramente, o reconhecimento de incompetência do foro instado, haja vista cláusula de eleição de foro em Londres[97]; já em caso de contrato de importação e utilização de marca firmado em Bolonha, na Itália, e com cláusula de foro a favor daquele país, decidiu igualmente o TJRJ pela validade da cláusula e a conseguinte extinção do feito[98]. Todavia, esta tendência nos tribunais estaduais não exclui diferentes interpretações, continuando em Araujo e Jacques, “ainda não se pode afirmar com segurança que a jurisprudência acima citada confere às partes a segurança devida quando eleito o foro estrangeiro.”[99]

Portanto, vê-se que o tratamento dado pelas cortes brasileiras como um todo à cláusula de eleição de foro internacional ainda é vacilante e não confere às partes a previsibilidade necessária à atividade comercial. Sendo este motivo, em nosso entendimento, a causa da preferência crescente pela cláusula arbitral em favor da cláusula eletiva de foro na prática jurídica corrente. 

3.2. As Cláusulas de Eleição de Foro nos Contratos Consumeristas

Haja vista a limitada autonomia nos contratos de consumo, como já exposto anteriormente, existente graças a flagrante falta de igualdade entre as partes em todas as fases contratuais, foi confeccionado o Código de Defesa do Consumidor, codex este que limitou várias cláusulas consideradas abusivas. Destarte, tal lei não será nada mais do que nosso baluarte ao tratar da possível abusividade da cláusula de eleição de foro nos contratos consumeristas.

3.2.1. A Cláusula de Eleição de Foro como Cláusula Abusiva

O Código de Defesa do Consumidor coloca, além de forte base ideológica para a devida hermenêutica contratual, limitações expressas a certas disposições negociais possíveis em outras formas contratuais, estas estão traduzidas no texto legislativo pela denominação cláusula abusiva.

Cláudia Lima Marques propõe dois caminhos para definir a Cláusula Abusiva[100]: ou interpreta-se as atitudes das partes de forma subjetiva, ao conectar a abusividade ao intento malicioso (dolo) do agente; ou utiliza-se do da figura da boa-fé objetiva para encontrar, ou não, o abuso. Esta última, ainda segundo a autora, coaduna com os paradigmas contratuais modernos, privilegiando-se o resultado e não a ação em si[101].

O legislador nacional portanto deu preferência a uma noção objetiva de abusividade, de tal forma, maculou como nulas de pleno direito todas as cláusulas tidas como abusivas, listadas no artigo 51 do CDC. De tal forma, parte da doutrina entende pela nulidade das cláusulas de eleição de foro comumente com base nos incisos IV e XV do referido artigo:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

[...]

IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;

[...]

XV - estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor;[102]

O inciso IV se trata de verdadeiro blanket term, isto é, expressão genérica para aplicação da equidade na relação contratual de consumo; e, para tanto, deve julgador adentrar-se no conteúdo do negócio firmado, fato que para Cláudia Lima Marques seria conflitante com a noção moderna de boa-fé objetiva:

Esta norma geral positivada no CDC, conduz a jurisprudência brasileira a examinar, a partir da entrada em vigor da nova lei, o conteúdo de todos os contratos de consumo a ela apresentados, para decretar a nulidade absoluta das cláusulas, conflitantes com os novos critérios de boa-fé e equilíbrio nos contratos entre fornecedores e consumidores.[103](grifo da autora)

Quedando-se então a análise da validade da cláusula de eleição de foro, baseada em tal inciso, em julgamento de mérito do caso concreto, e não uma rejeição de tal cláusula in abstracto.

O outro inciso, por sua vez, entendo também se mostrar inconsistente à vedação da prática ora discutida. Subentendendo-se a cláusula eletiva de foro como leal, justa, mutuamente consentida e não geradora de disparidade de direitos entre as partes, não há nenhum dispositivo no CDC que a vede. O que há é a possibilidade – frise-se esta palavra – de o consumidor propor ação de responsabilidade civil contra o fornecedor de produtos e serviços no foro de seu domicilio nos termos do artigo 101, I, do CDC, o que, por si só, também não invalida a cláusula de foro, posto que é mera possibilidade do consumidor; podendo ele propor ação alhures se assim lhe for mais vantajoso.

Portanto, ao se atacar a cláusula de eleição de foro em juízo, ainda segundo Lima Marques, não se utiliza o CDC pelo “fato da lista do art. 51 não conter norma expressa a respeito.”[104]Para o mesmo fim, preferível é evocar dispositivo de redação sucinta e imperativa, que é o recente parágrafo único do artigo 112 do CPC:

Art. 112. [...] Parágrafo único. A nulidade da cláusula de eleição de foro, em contrato de adesão, pode ser declarada de ofício pelo juiz, que declinará de competência para o juízo de domicílio do réu.[105]

Como já visto anteriormente, os contratos consumeristas são, em sua larga maioria, traduzidos em contratos de adesão, sendo este dispositivo, na prática forense, mais utilizado que aqueles provenientes da legislação consumerista[106].

De pronto, vê-se que tal norma, acrescida por recente reforma[107]em nosso ordenamento, destoa daquelas sistematicamente postas no CPC, ao fazer face às lições de Direito Processual Civil, habitualmente é exposto que somente a incompetência absoluta pode ser reconhecida ex officio, enquanto a incompetência relativa (a questionada em casos de eleição de foro) seria arguida via exceção – tal qual dispõe o caput da norma supracitada[108]. Sendo o caso do contrato de adesão, situação sui generis, que o legislador achou por bem regular de forma diferenciada.

Outrossim, o artigo 114 do CPC – também modificado pela reforma citada – dispõe atualmente que “Prorrogar-se-á a competência se dela o juiz não declinar na forma do parágrafo único do art. 112 desta Lei ou o réu não opuser exceção declinatória nos casos e prazos legais.”[109]Cabendo, então, à análise fática proferida pelo julgador a valoração das cláusulas eletivas de foro, Didier Júnior explana:

“A incompetência decorrente da invalidade da cláusula de foro contratual pode ser reconhecida ex officio (traço do regime de conhecimento da incompetência absoluta), mas é suscetível de preclusão (traço do regime de incompetência relativa) – uma preclusão para o juiz.”[110](grifo do autor)

Compreendidas as normas que regulam a aplicabilidade das cláusulas eletivas de foro nos contratos de consumo, resta-nos debruçar sobre o entendimento das cortes pátrias sobre o tema.

3.2.2. A Jurisprudência Nacional e Inovações Legislativas sobre as Cláusulas de Foro em Contratos de Consumo

Para se compreender as cortes, faz-se mister entender que a finalidade precípua da defesa ao consumidor no Direito é nada mais do que balanceamento de um contrato que pende naturalmente para o lado do fornecedor. Para corrigir esta distorção, materializou-se a norma-princípio posta no artigo 47 do CDC: “As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.”[111]Isto é, enquanto o contrato regido somente pelo Código Civil tem como base hermenêutica somente a vontade dos contratantes[112], o contrato de consumo deve ser interpretado visando a proteção e o benefício do consumidor, que é a parte hipossuficiente na relação.

A jurisprudência sobre o tema reflete bem este propósito. Ou seja, não se mitiga a validade das cláusulas que se mostrem, no caso concreto, não abusivas. Destarte, não restando evidente a abusividade, e sendo a cláusula acordada livremente entre as partes contratuais, deve-se aceitar a derrogação do foro instado. Senão a ementa do REsp n°. 1.089.993-SP que explicita bem a posição dominante das cortes:

RECURSO ESPECIAL - CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO, INSERIDO EM CONTRATO DE ADESÃO, SUBJACENTE À RELAÇÃO DE CONSUMO - COMPETÊNCIA ABSOLUTA DO FORO DO DOMICÍLIO DO CONSUMIDOR, NA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE DA CLÁUSULA - PRECEDENTES - AFERIÇÃO, NO CASO CONCRETO, QUE O FORO ELEITO ENCERRE ESPECIAL DIFICULDADE AO ACESSO AO PODER JUDICIÁRIO DA PARTE HIPOSSUFICIENTE - NECESSIDADE - RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO.

I - O legislador pátrio conferiu ao magistrado o poder-dever de anular, de ofício, a cláusula contratual de eleição de foro, inserida em contrato de adesão, quando esta revelar-se abusiva, vale dizer, dificulte a parte aderente em empreender sua defesa em juízo, seja a relação jurídica subjacente de consumo, ou não;

II - Levando-se em conta o caráter impositivo das leis de ordem pública, preponderante, inclusive, no âmbito das relações privadas, tem-se que, na hipótese de relação jurídica regida pela Lei consumerista, o magistrado, ao se deparar com a abusividade da cláusula contratual de eleição de foro, esta subentendida como aquela que efetivamente inviabilize ou dificulte a defesa judicial da parte hipossuficiente, deve necessariamente declará-la nula, por se tratar, nessa hipótese, de competência absoluta do Juízo em que reside o consumidor;

III - "A contrario sensu", não restando patente a abusividade da cláusula contratual que prevê o foro para as futuras e eventuais demandas entre as partes, é certo que a competência territorial (no caso, do foro do domicílio do consumidor) poderá, sim, ser derrogada pela vontade das partes, ainda que expressada em contrato de adesão (ut artigo 114, do CPC). Hipótese, em que a competência territorial assumirá, inequivocamente, a natureza relativa (regra, aliás, deste critério de competência);

IV - Tem-se, assim, que os artigos 112, parágrafo único, e 114 do CPC, na verdade, encerram critério de competência de natureza híbrida (ora absoluta, quando detectada a abusividade da cláusula de eleição de foro, ora relativa, quando ausente a abusividade e, portanto, derrogável pela vontade das partes);

V - O fato isoladamente considerado de que a relação entabulada entre as partes é de consumo não conduz à imediata conclusão de que a cláusula de eleição de foro inserida em contrato de adesão é abusiva, sendo necessário para tanto, nos termos propostos, perscrutar, no caso concreto, se o foro eleito pelas partes inviabiliza ou mesmo dificulta, de alguma forma, o acesso ao Poder Judiciário;

VI- Recurso Especial parcialmente provido.[113](grifo nosso)

Trata-se de ação de cobrança do fornecedor contra o consumidor, mas proposta em foro diferente do domicílio deste. Invalidada a cláusula eletiva de foro nas duas primeiras instâncias, o caso atingiu o STJ. Em suas razões, o relator não entendeu pela abusividade no caso concreto considerando a ação foi proposta por fornecedor no foro de sua única sede, e, sendo legalmente firmada pelas partes a cláusula, não se configuraria a hipótese clássica onde uma empresa com várias filiais elege foro de forma a cercear o acesso à justiça do consumidor.

De forma similar decidiu o STJ ao julgar o REsp n°. 698.499-SP, condicionando a nulidade da cláusula de eleição de foro à prova de hipossuficiência:

CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE UNIDADES IMOBILIÁRIAS. FORO DE ELEIÇÃO. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.

1. Prevalece a cláusula de eleição de foro quando o acórdão, expressamente, afirma que a recorrente não é hipossuficiente, trata-se de investimento patrimonial, deixando de identificar qualquer dificuldade que possa servir de apoio para afastar o foro eleito livremente pelas partes.

2. Recurso especial não conhecido.[114]

Deste modo, a jurisprudência leva a crer na invalidade da cláusula eletiva de foro somente quando da profunda análise do caso em concreto; devendo, assim, esta ser encarada in abstracto como válida para todos os seus efeitos jurídicos se legalmente estabelecida.

3.3. O Devido Tratamento dado Pelo Direito Comunitário Europeu

Em contraste com a limitada e, sobretudo, escassa legislação brasileira sobre o comércio internacional – incluído aí os contratos internacionais de consumo –, regiões do globo mais habituadas com o constante fluxo de mercadorias e pessoas atualmente tratam com certa segurança jurídica as cláusulas de foro e os contratos de consumo em âmbito internacional.

Se há uma região onde se pode visualizar uma maior maturidade na regularização das relações de Direito Internacional Privado está é claramente a Europa: a grande movimentação de pessoas e mercadorias em países geograficamente pequenos juntamente com um longo e árduo processo de aproximação e união das nações do continente facilmente explica a proeminência europeia na confecção de regras internacionais para as mais variadas situações privadas.

Inicialmente, vale mencionar a Convenção de Roma de 19 de junho de 1980 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, adotado no âmbito da União Europeia como Regulamento (CE) n°. 593 (Roma I), que tem seção específica para lidar com o contrato de consumo[115]. Não obstante a importância do diploma, este trata somente sobre a norma aplicável, e não ao foro aplicável, o assunto foco do presente estudo.

Especificamente sobre o foro aplicável há, em âmbito europeu, uma gama diversa de normas supranacionais. Inicialmente, em 27 de setembro de 1968, os Estados-membros da então chamada Comunidade Econômica Europeia, um dos embriões da União Europeia, assinaram em Bruxelas a Convenção concernente à Competência Judiciária e às Execuções de Decisões em Matéria Civil e Comercial, que já regulava o foro para ações de consumo.

Posteriormente, em 16 de setembro de 1988, a convenção foi suplementada por uma nova realizada em Lugano, na Suíça, visando precipuamente extensão da anterior aos Estados-membros do AELC – Associação Europeia de Livre Comércio, ou seja, Islândia, Noruega, Liechtenstein e Suíça.

Poucas são as diferenças entre as duas cartas, relevando-se somente as particularidades relativas ao fato de que nesta última os signatários não participam necessariamente de organismo supranacional comum, a União Europeia. Exemplifica Peter Stone: “the European court has no power to interpret the Lugano Convention 1988, and there is no body empowered to give internationally biding rulings on its interpretation” [116]

Finalmente, em 22 de dezembro de 2000, sobrepondo-se aos dois anteriores acordos, entra no ordenamento jurídico comunitário da UE uma adaptação da Convenção de Bruxelas pelo Regulamento (CE) n°. 44/2001, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, comumente denominado como Regulamento Bruxelas I (Brussels I Regulation em inglês).

O regulamento, ao tratar do contrato consumerista, celebra como regra a defesa da parte menos favorecida da relação, como explicita em suas considerações iniciais:

(1.3) No respeitante aos contratos de seguro, de consumo e de trabalho, é conveniente proteger a parte mais fraca por meio de regras de competência mais favoráveis aos seus interesses do que a regra geral.[117]

Assim, em seu artigo 16, dá o regulamento a faculdade ao consumidor de acionar seu fornecedor, em qualquer dos domicílios das partes, todavia, ainda segundo o artigo, o fornecedor só poderá intentar ação em corte localizada no Estado de domicílio do consumidor[118].

Sem embargo, o Regulamento Bruxelas I concede – ainda que pequeno – espaço à cláusula eletiva de foro. Eis o artigo 17 do diploma:

Artigo 17º. As partes só podem convencionar derrogações ao disposto na presente secção desde que tais convenções:

1. Sejam posteriores ao nascimento do litígio; ou

2. Permitam ao consumidor recorrer a tribunais que não sejam os indicados na presente secção; ou

3. Sejam concluídas entre o consumidor e o seu co-contratante, ambos com domicílio ou residência habitual, no momento da celebração do contrato, num mesmo Estado-Membro, e atribuam competência aos tribunais desse Estado-Membro, salvo se a lei desse Estado-Membro não permitir tais convenções.[119]

É feliz tal artigo por permitir a cláusula de foro nestes casos e não limitar a autonomia da vontade do consumidor inutilmente e contra sua vontade. Explica o membro da Comissão Europeia, Anne-Marie Rouchaud-Joet: “une clause d’attribution de for qui ne bénéficie qu’au seul consommateur, qui est le seul en droit de saisir d’autres tribunaux que ceux désignés par la réglementation, ne révèle aucun danger pour celui-ci.”[120]

Percebe-se, assim, o avanço da legislação comunitária europeia, visando o aspecto principiológico garantista do Direito do Consumidor sem usurpar a autonomia das partes quando isto não se mostra necessário, valendo-se sempre da ventura de estar envolta de sólidas instituições supranacionais.

3.4. A Atual Abordagem do Tema e Novas Propostas no Brasil e no Continente Americano

Já expostas ao decorrer deste estudo considerações em separado sobre a cláusula eletiva de foro para o Direito Internacional Privado e para o Direito do Consumidor, só resta evidenciar onde há um ponto de confluência nas temáticas apartadas a fim de se verificar uma regência una.

Para tanto, deve-se partir de um ponto-chave: a compatibilidade. Ou seja, tudo aquilo válido para as cláusulas de foro nos contratos internacionais deve ser compatível com o disposto para os contratos de consumo e vice-versa para desvendar o contrato internacional e consumerista.

Destarte, ao se firmar contrato de consumo com cláusula de foro estrangeiro os negociantes deve estar cientes que este não será forçosamente tratado da mesma forma que um contrato com cláusula de foro nacional, bem como as partes de um contrato de comércio internacional deverão também estar cientes das repercussões de ordem pública caso este seja configurado como um contrato de consumo.

Tendo como ponto-basilar a compatibilidade na doutrina e na jurisprudência incorre-se no risco, contudo, de fazer face a situações contrastantes. Enquanto a jurisprudência é oscilante quanto às cláusulas de foro internacionais pouco importando o caso concreto; o entendimento dominante das cortes sobre a cláusula de foro consumerista é pela sua validade quando esta não for prejudicial ao consumidor. Ora, de tal forma, poderia, hipoteticamente, existir situação em que a cláusula eletiva de foro é anulada, não por sua natureza consumerista – questão doutrinariamente mais complexa –, mas por sua natureza internacional. 

Quanto às normas, pode-se agora dizer que as convenções anteriormente citadas, sobre as cláusulas de foro em contratos internacionais mercantis, expressamente excluem de sua cobertura os contratos consumeristas internacionais. É o caso da Convenção de Viena sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de mercadorias que dispõe em seu artigo 2º que “This convention does not aply to sales: (a) of goods bought for personal, family or household use”[121]; bem como do Protocolo de Buenos Aires, em seu Artigo 2º: “O âmbito de aplicação do presente Protocolo exclui: (...) 6. os contratos de venda ao consumidor”.[122]

Não obstante, tentou o Mercosul tratar especificamente sobre o tema com o Protocolo de Santa Maria sobre Jurisdição Internacional em Matéria de Relações de Consumo, um avanço nas relações de consumo internacionais no bloco, mas ainda não posto em prática, como coloca Paula Santos de Abreu:

O Protocolo de Santa Maria sobre Jurisdição Internacional em Matéria de relações de Consumo (PSM) significa um avanço em relação à tutela do consumidor no Mercosul. Embora acordado em 22/11/1996, ainda não está vigendo, pois aguarda a aprovação do "Regulamento Comum Mercosul de Defesa do Consumidor" em sua totalidade, pelo Conselho Mercado Comum além de sua incorporação aos ordenamentos jurídicos nacionais dos Estados Partes. [123]

Outrossim, incidentalmente incide na questão das validades das cláusulas eletivas de foro em contrato de consumo internacional o tido como leading case do consumo internacional no Direito Brasileiro. É o REsp 63.981-SP, eis sua ementa:

DIREITO DO CONSUMIDOR. FILMADORA ADQUIRIDA NO EXTERIOR. DEFEITO DA MERCADORIA. RESPONSABILIDADE DA EMPRESA NACIONAL DA MESMA MARCA ("PANASONIC"). ECONOMIA GLOBALIZADA. PROPAGANDA. PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR. PECULIARIDADES DA ESPÉCIE. SITUAÇÕES A PONDERAR NOS CASOS CONCRETOS. NULIDADE DO ACÓRDÃO ESTADUAL REJEITADA, PORQUE SUFICIENTEMENTE FUNDAMENTADO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO NO MÉRITO, POR MAIORIA.

I - Se a economia globalizada não mais tem fronteiras rígidas e estimula e favorece a livre concorrência, imprescindível que as leis de proteção ao consumidor ganhem maior expressão em sua exegese, na busca do equilíbrio que deve reger as relações jurídicas, dimensionando-se, inclusive, o fator risco, inerente à competitividade do comércio e dos negócios mercantis, sobretudo quando em escala internacional, em que presentes empresas poderosas, multinacionais, com filiais em vários países, sem falar nas vendas hoje efetuadas pelo processo tecnológico da informática e no forte mercado consumidor que representa o nosso País.

II - O mercado consumidor, não há como negar, vê-se hoje "bombardeado" diuturnamente por intensa e hábil propaganda, a induzir a aquisição de produtos, notadamente os sofisticados de procedência estrangeira, levando em linha de conta diversos fatores, dentre os quais, e com relevo, a respeitabilidade da marca.

III - Se empresas nacionais se beneficiam de marcas mundialmente conhecidas, incumbe-lhes responder também pelas deficiências dos produtos que anunciam e comercializam, não sendo razoável destinar-se ao consumidor as conseqüências negativas dos negócios envolvendo objetos defeituosos.

IV - Impõe-se, no entanto, nos casos concretos, ponderar as situações existentes.

V - Rejeita-se a nulidade argüida quando sem lastro na lei ou nos autos.[124]

Trata-se de caso envolvendo compra de uma máquina filmadora defeituosa em Miami, EUA. O consumidor, um brasileiro residente no país, conhecendo deste vício aciona a empresa detentora da marca no país, mas sem algum vínculo administrativo com aquela dos EUA. Inobstante, termina o STJ por reconhecer a responsabilidade da empresa detentora da marca no país por este ser um produto globalizado e por a empresa nacional se valer da divulgação mundial de sua marca.

O posicionamento da corte foi, todavia, criticado por Nadia de Araujo:

A análise da nossa jurisprudência demonstra que os juízes brasileiros tendem a ignorar o caráter internacional da relação jurídica, para aplicar apenas o CDC, como se viu no caso Panasonic [o REsp63.981-SP].[125]

Ora, se as querelas sobre o consumo internacional podem envolver até mesmo terceiros juridicamente não vinculados ao contrato, por que não poderia o consumidor desconsiderar a cláusula eletiva de foro se esta lhe mostrar penosa? Posiciona-se Eduardo Antônio Klausner:

Pode-se assim afirmar que, tratando-se de conflito internacional de consumo, envolvendo consumidor brasileiro, será o foro de seu domicílio o competente para processar e julgar a demanda. Frise-se que, na Comunidade Européia, o foro do domicílio do consumidor também é privilegiado, assim como nos demais países do Mercosul.[126]

Pode-se perceber que na afirmação o autor não é menciona a ressalva que fiz quando dispus sobre as cláusulas de foro nos contratos de consumo, aquela que diz que a cláusula é válida quando não é danosa ao consumidor, ou mesmo benéfica. Contudo, Klausner revela posteriormente, neste mesmo artigo, que “[a] jurisprudência brasileira também entende ser inadmissível a eleição de qualquer foro contratual que dificulte ou impossibilite o acesso do consumidor à Justiça.”[127](grifo nosso) Fazendo aí a devida ressalva.

Recentemente, Cláudia Lima Marques propôs, perante a Organização dos Estados Americanos – OEA, uma convenção intercontinental sobre a lei aplicável em contratos de consumo redigida por ela. Contudo, a proposta professora dispõe especialmente somente sobre a lei aplicável, sendo incidental sua menção sobre o foro aplicável, desta forma não há nenhuma disposição no documento quanto a validade das cláusulas de foro[128].

Outra proposta à OEA, oferecida por Canadenses, modela-se na legislação europeia para as cláusulas de eleição de foro, eis o que relata Eduardo Klausner:

Aspecto importante da proposta canadense é não admitir, no número 6, cláusulas de eleição de foro nos contratos de consumo como regra, considerando inválida a cláusula sempre que o acordo de eleição de foro for aprovado antes do começo do procedimento; o acordo estipule que o tribunal de outra jurisdição que não a do domicílio do consumidor passivo é o competente para a causa; e a cláusula de eleição de foro tenha sido estipulada em contrato firmado em domicílio diverso da residência habitual do consumidor, mas o consumidor tenha sido induzido pelo fornecedor para viajar com o fim de celebrar o contrato de consumo e o vendedor tenha ajudado na viagem do consumidor. A inspiração para a redação desse artigo, sem dúvidas, foi o Regulamento n. 44/2001/CE, art. 17.[129]

Pelo exposto, vê-se que ainda não há uma abordagem clara sobre o tema no Brasil, no Mercosul, ou mesmo em todo continente americano, há somente uma grande incógnita. O que se faz mister até o momento, em realidade, é uma aguçada sensibilidade jurídica do julgador ao solucionar querelas sobre as cláusulas de foro em contratos de consumo internacionais.

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Sobre o autor
Bruno Aires de Sá

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SÁ, Bruno Aires. Análise sobre a validade das cláusulas de eleição de foro nos contratos internacionais de consumo . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3557, 28 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23968. Acesso em: 22 nov. 2024.

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