O cerne da controvérsia consiste na análise da responsabilidade civil do Estado, em virtude de decretação de prisão preventiva, durante o processamento e julgamento de processo-crime, com posterior absolvição do acusado, por insuficiência de provas, quando da prolação da sentença penal.
Ab initio, cumpre esclarecer que a prisão preventiva se trata de um instrumento processual penal, cujo objetivo é a garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria, na forma do art. 312 do Código de Processo Penal.
O Artigo 37, §6º da Carta da República, dispõe: “As pessoas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo e culpa”.
Em outras palavras, a responsabilidade da Administração Pública pelos danos causados a terceiros é socializada, ou seja, repartida entre todos. É a justiça comutativa, que reparte igualitariamente os riscos assumidos pelo Estado, restabelecendo o equilíbrio social e econômico.
A propósito, o referido dispositivo constitucional é norma de eficácia imediata e não tem efeito retroativo, ou seja, é inaplicável a fatos ocorridos anteriormente a sua vigência.
O renomado jurista Caio Mário da Silva Pereira, assim se manifesta[1]:
“O que importa é a relação de causalidade entre o dano sofrido pelo particular e o ato do proposto ou agente estatal. Desde que se positive o dano, o princípio da igualdade dos ônus e dos encargos exige a reparação. Não deve um cidadão sofrer as conseqüências do dano. Se o funcionamento do serviço público, independemente da verificação de sua qualidade, teve como conseqüência causar prejuízo, e, pois, em face de um dano, é necessário e suficiente que se demonstre o nexo de causalidade entre o ato e o prejuízo causado. A Constituição Federal consigna, em forma sucinta, o princípio da responsabilidade civil do Estado, pelos danos que seus funcionários, nesta qualidade, causem a terceiros, ressalvado o direito de agir regressivamente contra os causadores do dano, quando tiverem procedido com culpa.
A pessoa jurídica de direito público está sempre sujeita à reparação. Apurada a sua responsabilidade, descarregará o encargo, reembolsando-se, em ação regressiva, contra o causador direto do prejuízo, se houver culpa dele (Constituição Federal de 1988, art. 37 §6º)”.
Da mesma forma ensina Pedro Lessa que “desde que um particular sofre um prejuízo, em conseqüência do funcionamento (regular ou irregular, pouco importa) de um serviço organizado no interesse de todos, a indenização é devida. Aí temos um corolário lógico do princípio da igualdade do ônus e encargo sociais”[2].
Com efeito, em nosso ordenamento jurídico criou-se um modelo dualista, ou seja: A norma de responsabilidade civil subjetiva (art. 927 do Código Civil), atribuindo-se ao direito civil a dogmática da responsabilidade aquiliana e transferindo-se ao direito público a responsabilidade objetiva, isto é, o dever de reparação independente da prova da culpa.
Na verdade o modelo dualista de responsabilidade civil atende em especial os princípios da solidariedade social e da justiça distributiva, consagrado pelo Constituinte no artigo 3º dos incisos I e III da Constituição Federal.
Isto quer dizer, que nas relações entre particulares opera-se a responsabilidade civil subjetiva, que consiste na obrigação de indenizar em razão de procedimento de natureza culposa ou dolosa.
Por sua vez, nas relações entre particulares com o Poder Público opera-se a responsabilidade objetiva, que consiste na obrigação de indenizar em razão de um procedimento lícito ou ilícito que produziu um dano ao administrado, bastando para sua caracterização o nexo causal entre o comportamento e o dano.
A respeito da evolução das Teorias da Responsabilidade Civil do Estado ensina Miguel Reale[3] que “...superado um primeiro momento de hesitação, quando se pretendeu erroneamente restringir a casos determinados a responsabilidade civil do Estado, por danos causados aos particulares, o Direito Brasileiro veio se afirmando de maneira cada vez mais genérica, desde que existentes certos pressupostos de ordem fatual ou normativa (...)”.
A teoria objetiva, baseada do risco administrativo, foi admitida por Francisco Campos, San Tiago Dantas, Hely Lopes Meirelles, Ruy Cirne Lima e Caio Tácito, sendo hoje, matéria pacificada e consolidada em nosso direito positivo, desde a Constituição de 1946, em seu art. 194, permanecendo até os dias atuais conforme artigo 37, §6º da Constituição Federal.
Conclui-se, portanto, que eventuais danos causados aos particulares deverão ser indenizados pela Administração Pública. Desta forma, sistematizando o entendimento jurisprudencial, chega-se às seguintes conclusões:
a) Quando o Estado causa algum dano, por ação ou omissão, deve o mesmo ser reparado, independentemente da prova da culpa;
b) A relação de causalidade decorre do simples fato de ter ocorrido o dano ou sido ensejado ou facilitada a sua ocorrência em virtude de ação ou de inércia dos poderes públicos;
c) A pessoa jurídica de direito público só se exonera da responsabilidade comprovando a força maior, não bastando a prova de simples ausência de culpa dos seus funcionários;
d) Ao autor da ação cabe provar os fatos e não a culpa, que se presume pela simples razão de os fatos evidenciarem, no caso, o funcionamento deficiente ou a ausência de funcionamento adequado do serviço público.
Dessa feita, estando configurada a atividade administrativa e configurados o dano causado e o nexo de causalidade, consequentemente está presente o dever de indenizar Estado.
Porém, estando a atuação do Estado e seus agentes dentro do estrito cumprimento do dever legal e no exercício regular de um direito, inexiste ilegalidade ou arbitrariedade na segregação cautelar do recorrente, com fulcro no art. 312 do Código de Processo Penal, a ensejar dano moral, já que, falta-lhe o necessário nexo causal.
Por outra via, mesmo que buscando a responsabilidade do Estado com fundamento no art. 37, §6º da CF/88, que em regra é objetiva, imprescindível a comprovação do liame causal entre o comportamento do ofensor e o dano suportado, que a toda evidência inexistem.
Sobre o tema, convém destacar o escólio do Prof. Rui Stoco[4]:
“(...) a prisão cautelar, pelo só fato da prisão, seja temporária, em flagrante ou preventiva, ou, ainda, qualquer outra medida de caráter provisório, não enseja reparação apenas em razão de o indiciado ou acusado ter sido absolvido. Contudo, havendo excesso ou abuso da autoridade - seja por prepotência, descumprimento da lei ou falta de fundamentação que demonstre a total inadequação da medida - erro inescusável ou vício que contamine o ato da constrição e de restrição da liberdade, este converter-se-á em ilícito e poderá ensejar reparação.
(...)
O dia em que a prisão cautelar ou qualquer outra medida for considerada como erro judicial ou judiciário apenas em razão da absolvição do suspeito, indiciado, ou acusado, todo o arcabouço e o sistema jurídico-penal estarão abalados e irremediavelmente desacreditados.
Nenhuma prisão provisória, preventiva ou em flagrante delito, poderá ocorrer fora das hipóteses previstas na lei processual penal, sem que estejam os pressupostos ali estabelecidos, pena de se responsabilizar não só o Estado como, por via de regresso, o agente da autoridade, o magistrado, o membro do Ministério Público, o homem do povo e quem quer que seja que tenha participado do ato.
Mas, preenchidas as condições da lei e revestida a prisão de legalidade estrita, não há como vislumbrar direito de reparação pelo só fato da prisão que não se converteu em definitiva pela condenação.”
Esse é o posicionamento da jurisprudência pátria, consoante arestos a seguir colacionados:
“EMENTA: DIREITO CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA POR DANOS MORAIS. PROCESSO-CRIME. INDÍCIOS DE PARTICIPAÇÃO E MATERIALIDADE DO FATO. DECRETAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA. REQUISITOS LEGAIS PRESENTES. ABSOLVIÇÃO AO FINAL DO PROCESSO. ALEGAÇÃO DE TORTURA E MAUS-TRATOS. NÃO-COMPROVAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. INEXISTÊNCIA.
I - Uma vez satisfeitos os pressupostos da lei, a decretação de prisão preventiva, ainda que o acusado venha a ser absolvido ao final da instrução criminal, não implica a responsabilidade civil do Estado.
II - A não-comprovação das alegações de tortura e maus-tratos, quando da duração da prisão cautelar, impede a concessão de indenização por danos morais.
III - Conhecimento e improvimento do recurso.” (TJRN – AC nº 2008.002199-8 - Rel. Des. Cláudio Santos – j. em 01/07/2008).
“Apelação. Responsabilidade civil do Estado. Processo criminal. Absolvição por insuficiência de provas. Ação de indenização por perdas e danos. Inocorrência da hipótese de erro judiciário. Improcedência. Desprovimento. Se os elementos do inquérito autorizavam a propositura da ação penal, a absolvição do acusado por insuficiência de provas não cria em seu favor uma situação que o autorize a pleitear indenização por danos morais pelo fato da denúncia ou da prisão preventiva.” (TJPR - 4ª CC - AC nº 320.868-4 - Rel. Des. J. Vidal Coelho - j. em 11.04.06).
“RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – PRISÃO – POSTERIOR ABSOLVIÇÃO – ATO LEGÍTIMO E LÍCITO DENTRO DOS LIMITES DA LEGALIDADE – Não há que se falar em indenização quando ausente a ilegalidade ou excesso na prisão do suspeito de cometimento de crime.” (TJRO – AC 100.001.2001.011840-2 – C.Esp. – Rel. Des. Eurico Montenegro – J. 17.08.2005)
“RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – PRISÃO EM FLAGRANTE – Medida efetivada dentro dos limites legais. Posterior sentença absolutória por insuficiência de provas. Irrelevância. Malogro da pretensão ressarcitória. Efetiva a prisão em flagrante em conformidade com os ditames legais, tanto que homologada pela autoridade judiciária, não há falar em responsabilidade do Estado por erro na prestação jurisdicional, mesmo que sobrevenha sentença absolutória por falta de provas.” (TJSC – AC 2000.020584-2 – Itajaí – 3ª CDPúb. – Relª Juíza Sônia Maria Schmitz – J. 22.02.2005)
“RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – ERRO JUDICIAL – PRISÃO CAUTELAR REALIZADA EM PROCESSO CRIMINAL – APURAÇÃO DE PRÁTICA DE CRIME HEDIONDO – RÉU ABSOLVIDO EM SEDE RECURSAL – INSUFICIÊNCIA DE PROVAS – INEXISTÊNCIA DE ABUSO – Prisão preventiva decretada de forma regular, em consonância com os pressupostos e requisitos estabelecidos na legislação vigente – Existência de prova da materialidade e indícios da autora delitiva por ocasião do decreto preventivo – Provimento negado.” (TJSP – AC 136.899-5/7 – São Paulo – 8ª CDPúb. – Rel. Des. Caetano Lagrasta – J. 19.11.2003)
“EMBARGOS INFRINGENTES. DIREITO ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DANOS MORAIS. ATO JUDICIAL. ORDEM DE PRISÃO EM FLAGRANTE. ILICITUDE. PROVA. INEXISTÊNCIA. PEDIDO. IMPROCEDÊNCIA.
1. Reconhecida pela jurisprudência e pela doutrina a possibilidade de responsabilização civil direta do Estado por ato originado do Poder Judiciário, verificadas as hipóteses de dolo, fraude ou culpa grave, notadamente diante de erro judiciário ou caso de mau funcionamento do serviço.
2. A absolvição dos autores da presente demanda na seara criminal eleitoral em razão da ausência de provas não tem o condão de autorizar a conclusão no sentido da ilicitude da ordem de prisão em flagrante emanada do Juízo Eleitoral, determinação cujo cumprimento teria ensejado a obrigação de reparação moral.
3. À míngua de produção de prova suficiente por parte dos autores acerca do ilícito imputado, o pedido há de ser julgado improcedente (inciso I, artigo 333, CPC).” (TRF4 – EI em AC nº 2000.71.00.007252-0 – Rel. Desa. Federal Marga Inge Barth Tessler – 2ª Seção – j. 11/10/2007)
CONCLUSÃO
À guisa de conclusão, podemos afirmar, em apertada síntese, que a decretação da prisão preventiva não implica, necessariamente, a responsabilização do Estado, no caso de o acusado vir a ser absolvido, em razão de terem sido satisfeitos os seus requisitos legais.
Em que pese o art. 5º, LXXV, da Constituição da República impor o dever de o Estado indenizar aquele que sofre injusta condenação ou permanecer com sua liberdade tolhida além do prazo consignado na decisão condenatória, não há de ser aplicada tal responsabilização no caso de imposição/decretação de uma espécie de prisão cautelar/processual, qual seja, a preventiva, com posterior absolvição quando da prolação da sentença criminal. Em regras gerais, não se trata a espécie de erro do Judiciário passível de responsabilidade civil do Estado.
REFERÊNCIAS
LESSA, Pedro. Do Poder Judiciário. Rio de janeiro, Francisco Alves, 1915.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Forense: Rio de Janeiro. Vol. I, 19ª edição, pg. 426.
REALE, Miguel. Responsabilidade civil do Estado. Revista de Direito Público. 1.987, paginas 24 e seguintes.
STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, 6ª ed., pp. 1037/1038.
notas
[1] in Instituições de Direito Civil. Forense: Rio de Janeiro. Vol. I, 19ª edição, pg. 426.
[2] in Do Poder Judiciário. Rio de janeiro, Francisco Alves, 1915.
[3] in Responsabilidade civil do Estado. Revista de Direito Público. 1.987, paginas 24 e seguintes.
[4] in Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, 6ª ed., pp. 1037/1038.