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A hodierna apresentação espontânea em face da prisão em flagrante

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A apresentação espontânea, consistente no comparecimento voluntário de uma pessoa após praticar conduta potencialmente criminosa, noticiando os fatos para a autoridade policial, impede a sua prisão em flagrante delito.

O presente ensaio trata da atual concepção do instituto conhecido como “apresentação espontânea”, consistente no comparecimento voluntário de uma pessoa após praticar conduta potencialmente criminosa, noticiando os fatos para a autoridade policial, atitude que repele a sua prisão em flagrante delito, consoante escólios doutrinários e fundamentos legais a seguir delineados.

Antes da Lei Federal nº 12.403/2011, o capítulo IV do título IX, do Código de Processo Penal – CPP (Decreto-lei nº 3.689/1941), composto pelos artigos 317 e 318, tratava explicitamente da “apresentação espontânea˜. Previa o referido artigo 317 que a“apresentação espontânea” do acusado à autoridade não impediria a decretação de sua prisão preventiva[1].

O dispositivo teve a redação revogada pela citada lei, e hoje cuida da prisão domiciliar[2]. O texto anterior recebia interpretação doutrinária no sentido de que, aquele que “espontaneamente”, ou seja, de modo voluntário e deliberado, se apresentasse à autoridade policial, não seria preso em flagrante, sendo admissível, contudo, a sua prisão preventiva (AVENA, 2009, p. 795; CAPEZ, 2006, p.262; LIMA, 2012, p.1288).

De igual sorte, os estudiosos propunham a elaboração de um “auto de apresentação espontânea” em casos dessa ordem, expediente no qual tal circunstância era consignada e pormenorizada, reduzindo-se a termo as oitivas dos envolvidos, com adoção das demais providências legais de polícia judiciária cabíveis, servindo o documento como peça inaugural do respectivo inquérito policial para cabal apuração do evento (BARROS FILHO, 2010; SÃO PAULO, 2007, p.39).

Além da antiga redação do artigo 317, do CPP, argumentava-se que a prisão em flagrante só se justificava quando imprescindível para sustar a fuga do investigado, ou ainda para resguardar a sociedade bem como para coligir e acautelar provas para a aplicação da lei, motivos estes que não se vislumbravam na “autoapresentação” do investigado, quando o agente comparecia por conta própria na polícia tencionando colaborar com a elucidação dos fatos (BRANCO, 2001, p.76; SILVA, 2002, p.215).

Com efeito, atualmente não há mais menção direta à expressão “apresentação espontânea” no diploma processual. No entanto, o que efetivamente impede a prisão em flagrante delito daquele que se apresenta espontaneamente é, sobretudo, a literalidade do artigo 304, caput, do CPP[3], ao empregar o termo “apresentado”, indicando que o agente deve ser capturado e conduzido à presença da autoridade policial, e não “apresentando-se”, que corresponderia ao comportamento voluntário do sujeito, por vontade e meios próprios, e que inviabiliza a prisão em flagrante do agente que comparece de maneira espontânea perante o delegado de polícia noticiando a conduta por ele perpetrada. É claro que não basta mera alegação do investigado, exigindo-se a análise de todos os elementos amealhados para se extrair a conclusão acerca da espontaneidade.

Importa assinalar que não se trata de mero jogo de palavras, na medida em queconsubstancia hipótese de segregação provisória e restrição da liberdade de locomoção, devendo receber interpretação restritiva, em respeito à legalidade estrita, norteadora de toda a atuação repressiva em matéria criminal.

Nesse sentido, no âmbito da Polícia Civil do Estado de São Paulo, oportuno ressaltar a existência de diretriz institucional consubstanciada na Recomendação DGP nº 1, de 13 de junho de 2005, a qual veicula medidas para uniformização dos atos de polícia judiciária relativos à autuação em flagrante delito, editada quando da modificação do artigo 304, do CPP, pela Lei Federal nº 11.113/2005, e assim preconiza em seu item XV:

“O emprego da palavra “apresentado”, no artigo 304, do CPP, não equivalente a “apresentando-se”, afasta a possibilidade de prisão em flagrante daquele que, comparecendo espontaneamente perante a Autoridade Policial, comunique a prática de uma infração penal até então ignorada desta”.

Nota-se que a prisão em flagrante decorre da conjugação do caput do artigo 304 com alguma das situações previstas nos incisos do artigo 302[4], todos do CPP. Destarte, o sujeito, para ser preso em flagrante delito, deve ser “apresentado” na delegacia e se encontrar numa das espécies de flagrante estipuladas no citado artigo 302, assim batizadas doutrinariamente: flagrante próprio, verdadeiro ou real (incisos I e II), flagrante impróprio, irreal ou quase-flagrante (inciso III) e, por fim, flagrante ficto, presumido ou assimilado (inciso IV).

No caso de apresentação espontânea, com ou sem a redação original do artigo 317, do CPP, não há subsunção a nenhuma das hipóteses em que a pessoa é legalmente considerada em estado de flagrância e que autorizariam sua prisão, descritas nos mencionados incisos I a IV, do artigo 302, do diploma processual. Logo, apresentando-se espontaneamente o sujeito, não se cogita sua prisão em flagrante tanto pela lógica quanto pelo bom senso, e também por ausência de amparo legal (CABETTE, 2011).

Esse já era o entendimento sedimentado também na jurisprudência, como se observa na decisão do Egrégio Supremo Tribunal Federal, abaixo reproduzida:

“Prisão em flagrante. Não tem cabimento prender em flagrante o agente que, horas depois do delito, entrega-se à polícia, que não o perseguia, e confessa o crime. Ressalvada a hipótese de decretação da custódia preventiva, se presentes os seus pressupostos, concede-se a ordem de habeas corpus, para invalidar o flagrante” [5].

No mesmo diapasão,importante lembrar o comando do artigo 301, do Código de Trânsito Brasileiro (Lei Federal nº 9.503/1997)[6], que veda a prisão em flagrante nos acidentes de trânsito nos quais o motorista preste pronto e integral socorro à vítima, no propósito de estimular a cidadania e a solidariedade em episódios dessa natureza (ANDREUCCI, 2007, p.189).

Impende ainda anotar que, no atual estágio de desenvolvimento das grandes cidades, dos recursos tecnológicos e dos meios de comunicação, a apresentação espontânea não pode ser considerada apenas o comparecimento do indivíduo sozinho e por meios próprios na delegacia, mas sim toda a sua postura após praticar a conduta potencialmente criminosa, assim entendida, por exemplo, ele próprio acionar, via ligação telefônica, a policia militar, guarda municipal ou qualquer outroórgão público similar, noticiando de modo convincente e coeso o que ocorrera, aguardando no local e se prontificando no ato a comparecer para prestar os esclarecimentos e informações devidas ao delegado de polícia.

Ademais, a apresentação espontânea deve ser autêntica e efetiva, e jamais servir como subterfúgio para o sujeito tentar artificiosamente evitar a sua prisão em flagrante. Caso contrário, poderíamos imaginar situações esdrúxulas, como, por exemplo, a de um roubador que, logo após a subtração de um bem mediante violência, foge em direção a uma delegacia de polícia para “se apresentar”, enquanto está sob perseguição pelas vítimas ou por policiais. Em casos tais, por evidente, não há apresentação espontânea.

Convém ainda destacar que a apresentação espontânea, quando genuína, deve abranger todo o contexto fático em que o sujeito se encontra, alcançando todas as circunstâncias atreladas criminalmente relevantes.

A título de exemplo, mencionamos caso concreto ocorrido na Central de Flagrantes da 1ª Delegacia Seccional do Município de São Paulo. Na ocasião,o proprietário de um estabelecimento comercial, subjugado junto com outras vítimas durante um roubo com emprego de arma de fogo perpetrado por dois criminosos, conseguiu reagir e, utilizando-se de uma pistola de sua propriedade, disparou um projétil que veio a alvejar um dos roubadores, enquanto o comparsa conseguiu fugir. O próprio comerciante ofendido acionou a polícia e o resgate para socorro do delinquente ferido, porém este não resistiu aos ferimentos e veio a óbito. A vítima apresentou-se na delegacia, prestando os esclarecimentos devidos e exibiu a sua arma de fogo bem como a respectiva documentação, porém com data de validade expirada, o que poderia ensejar a posse irregular de arma de fogo, delito previsto no artigo 12, da Lei Federal nº 10.826/2003, caso evidenciado dolo e não mera negligência (CP, art. 18, p.u.). Alegou o comerciante que já havia protocolado renovação do documento, que estaria pendente de expedição pelo órgão público responsável (Departamento da Polícia Federal). Nota-se que, nessa situação verídica, além da descriminante da legítima defesa, o que já evitaria a configuração de crime de homicídio no tocante à morte do roubador (o fato poderia ser típico mas não era ilícito), a apresentação espontânea evidentemente também englobou o eventual delito de posse irregular da arma, não havendo que se falar em prisão flagrancial. A parte apresentou-se na delegacia, não foi “apresentada” por ninguém.

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Repise-se que, o que se obsta com a apresentação espontânea é tão-somente a prisão em flagrante pelo crime, mas jamais a regular apuração da conduta via inquérito policial e a persecução e responsabilização criminal caso a infração penal reste devidamente configurada. Não se pode confundir a existência de hipótese legal para a autuação e prisão em flagrante delito com a efetiva caracterização do delito perscrutado.O delito pode ter ocorrido e o fato criminoso será sempre investigado e reprimido, independentemente do agente infrator ter sido ou não preso em flagrante, sem qualquer prejuízo para a Justiça Criminal.

Cumpre salientar que a avaliação técnico-jurídica para a decretação da custódia via lavratura ou não de um auto de prisão em flagrante delito e a respectiva classificação típica, ultimada em sede de cognição urgente e sumaríssima, consiste em prerrogativa e dever legal da autoridade policial. Cabe ao delegado de polícia examinar se há, no caso concreto, além das desta cadas hipóteses legais afeta sao estado flagrancial, a “fundada suspeita” contra o investigado apresentado (e não mera conjectura desprovida de indícios vigorosos), em estrita observância ao artigo 304, § 1º, do CPP, devendo decidir fundamentadamente, expondo os motivos fáticos e legais, seguindo a sua convicção jurídica com independência funcional (LESSA, 2012, p.8).

Por derradeiro, ainda que o indivíduo compareça espontaneamente, se o delegado de polícia reputar admissível e necessária a sua prisão temporária ou preventiva, estando preenchidos os respectivos requisitos legais, de pronto representará ao juiz de direito competente para que a medida cautelar seja decretada.


NOTAS

[1] Redação revogada do art. 317, do CPP: “A apresentaçãoespontânea do acusado à autoridadenãoimpedirá a decretação da prisãopreventivanoscasosemque a lei a autoriza”.

[2]Atual artigo 317, do CPP: “A prisãodomiciliarconsiste no recolhimento do indiciadoouacusadoemsuaresidência, sópodendodelaausentar-se comautorização judicial”.

[3] Artigo 304, caput, do CPP: “Apresentado o preso à autoridadecompetente, ouviráesta o condutor e colherá, desde logo, suaassinatura, entregando a estecópia do termo e recibo de entrega do preso. Emseguida, procederá à oitiva das testemunhasque o acompanharem e aointerrogatório do acusadosobre a imputaçãoquelhe é feita, colhendo, apóscadaoitivasuasrespectivasassinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto”.

[4] Artigo 302, do CPP: “Considera-se em flagrante delitoquem:

I - estácometendoainfração penal;       

II - acaba de cometê-la;

III - é perseguido, logo após, pelaautoridade, peloofendidoouporqualquerpessoa, emsituaçãoquefaçapresumirserautor da infração;

IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetosoupapéisquefaçampresumirsereleautor da infração”.

[5] STF – 2ª Turma. Unânime (RHC nº 61.442/MT. Recurso de Habeas Corpus. Relator: Ministro Francisco Resek. Publicação DJ: 10.02.1984, p.11016).

[6] Artigo 301, do CTB: Aocondutor de veículo, noscasos de acidentes de trânsito de queresultevítima, não se imporá a prisãoem flagrante, nem se exigiráfiança, se prestar pronto e integral socorroàquela.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDREUCCI, Ricardo Antonio.Legislação penal especial. São Paulo: Saraiva, 2007.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 10520 Informação e documentação: Citações em documentos, Apresentação. Rio de Janeiro: ABNT, 2002.

AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo penal esquematizado. São Paulo: Método, 2009.

BARROS FILHO, Mário Leite de. Inquérito policial sob a óptica do delegado de polícia. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2726, 18dez.2010. Disponívelem: <http://jus.com.br/revista/texto/18062>. Acessoem: 08abr. 2013.

BRANCO, Tales Castelo. Da prisão em flagrante. São Paulo: Saraiva, 2001.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O advento da reforma do Código de Processo Penal pela Lei nº 12.403/11 e o destino da apresentação espontânea do acusado. [S.I.]: Jus Navigandi, Teresina, mai. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/19123>. Acesso em: 07 abr. 2013.

CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2006.

HOUAISS, Antônio (1915-1999) e VILLAR, Mauro de Salles (1939-). Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva: 2001.

LESSA, Marcelo de Lima. A independência funcional do delegado de polícia paulista. São Paulo: Adpesp - Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, 2012.

LIMA. Renato Brasileiro de. Manual de processo penal – volume I. São Paulo: Impetus, 2012.

SÃO PAULO (Estado). Polícia Civil. Manual de polícia judiciária: doutrina, modelos, legislação.  (coord. Carlos Alberto Marchi de Queiroz). São Paulo: Delegacia Geral de Polícia, 2007.

SILVA, José Geraldo. O inquérito policial e a polícia judiciária. Campinas: Millenium, 2002.

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Sobre o autor
Rafael Francisco Marcondes de Moraes

Mestre e Doutorando em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Graduado pela Faculdade de Direito de Sorocaba. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo. Professor concursado da Academia de Polícia de São Paulo (Acadepol). Autor de livros pela editora JusPodivm: www.editorajuspodivm.com.br/autores/detalhe/1018

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Rafael Francisco Marcondes. A hodierna apresentação espontânea em face da prisão em flagrante. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3575, 15 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24187. Acesso em: 15 nov. 2024.

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