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A justiça essencial:

Diferença entre as prerrogativas do Ministério Público e da Defensoria Pública

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14/08/2013 às 09:30
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Ministério Público e Defensoria Pública são instituições indispensáveis, independentes e livres em suas atuações. Possuem atributos, poderes, encargos e contextos próprios para o importante papel que desempenham em prol da sociedade. O acesso à justiça, no Brasil, não pode ser considerado sob uma abordagem unificada.

Resumo: A Constituição Federal repartiu os poderes do Estado em quatro capítulos. O quarto está destinado às funções essenciais à justiça, desempenhadas por quatro grandes instituições: Ministério Público; Advocacia Pública; Advocacia Privada; e Defensoria Pública. Embora sejam igualmente essenciais à justiça, são feitas considerações acerca das diferentes garantias e prerrogativas entre os membros do Ministério Público e os da Defensoria Pública.

Palavras-chave: Ministério Público; Defensoria Pública; Garantias; Prerrogativas.


I-INTRODUÇÃO

No Brasil o acesso à justiça é um direito fundamental garantido na Constituição aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país[1]. Para que esse direito possa ser efetivado, quatro instituições desempenham as funções consideradas essenciais à justiça: o Ministério Público; a advocacia pública; a advocacia privada; e a Defensoria Pública[2].

A partir de 1988, o Ministério Público[3] foi dotado com novos poderes, especialmente com o dever da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.  

A advocacia pública passou a ser exclusivamente desempenhada ao nível federal pela Advocacia Geral da União – AGU[4], ligada diretamente ao Poder Executivo Federal, e ao nível estadual e municipal pelas respectivas Procuradorias-Gerais dos Estados ou dos municípios, nos termos editados pela legislação de cada um dos Estados brasileiros ou leis orgânicas municipais, e integram os Poderes Executivos Estaduais ou municipais.

A advocacia privada é exercida por profissionais liberais, bachareis em direito, previamente habilitados pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, para representar na Justiça a defesa dos direitos protegidos e os interesses particulares de terceiros[5].

A Defensoria Pública[6] é uma instituição novíssima, criada com a responsabilidade de garantir o acesso à justiça aos necessitados, grupos minoritários hipossuficientes e, as crianças e aos adolescentes, o exercício dos direitos humanos e fundamentais.

Em linhas gerais os objetivos da Defensoria Pública, são a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais; a afirmação do Estado Democrático de Direito; a prevalência e efetividade dos direitos humanos; e a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório[7].

Entre as instituições essenciais à justiça na comunidade internacional, não há no mundo ocidental ao que se saiba nada igual ao modelo da Defensoria Pública brasileira, parecido, talvez, ao serviço de apóio judiciário dos países da União Européia[8] ou do Office of the Public Defender da América do Norte[9], em regra geral, limitados às ações de natureza penal.

No Brasil, raros domínios da integração de organizações governamentais ilustram melhor o tema da proteção e promoção dos direitos humanos do que a Defensoria Pública e o Ministério Público. As duas instituições se destacam com suas distintas legitimidades para a tutela dos interesses metaindividuais: os direitos difusos, os direitos coletivos e os direitos individuais homogêneos[10].

O Ministério Público tem por dever a fiscalização das leis, é certo, mas as semelhanças com as funções da Defensoria Pública ocorrem quando o Ministério Público não está na função de fiscal da lei, mas quando em juízo é submetido às mesmas regras processuais das partes em litígio, quando é autor na Ação de destituição do poder familiar ou na Ação penal pública, por exemplo, e possuem também semelhanças, quanto a organização administrativa e funcional, a exigência da formação em direito dos seus membros e a nomeação por concurso público.

Se as duas instituições são a mesma face do Estado, porque então, a Constituição reconhece a uma delas a qualidade de instituição permanente e a outra não? Se o Estado acusador é o mesmo Estado defensor, por qual motivo são diferentes as garantias e prerrogativas entre seus membros?

Propõe-se com essas questões analisar o surgimento das duas instituições essenciais à função jurisdicional e suas importâncias defendidas durante a Assembleia Nacional Constituinte, no que se refere à desigualdade das armas entre a força do Estado Acusador e o Estado defensor com a ampliação dos poderes para a proteção efetiva dos direitos sociais.  


II – BREVE HISTÓRICO DO SURGIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DEFENSORIA PÚBLICA: DUAS INSTITUIÇÕES DA REPÚBLICA.

Entre as duas instituições, o Ministério Público é a mais antiga, possui registro do seu surgimento no Brasil sob essa designação no Código de Processo Criminal do Império, de 29 de novembro de 1832.

Logo após a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, o Ministério Público foi estruturado pelo então governo provisório através do Decreto n.º 848 de 11 de outubro de 1890, que organiza a justiça federal. Nele seus membros passaram a ser designados, desde então, por “promotores de justiça”, uma versão atual do extinto cargo de “procurador de feitos da Coroa e Fazenda” do período monárquico.

O Ministério Público somente foi positivado na Constituição da República em 1934, como um órgão de cooperação judicial do Estado, conhecidentemente, na mesma Carta política que prometia à população hipossuficiente o direito à assistência judiciária gratuita com a criação de um órgão especial para essa finalidade.

A história da criação da Defensoria Pública é muito mais recente. Antes de ser criada a instituição com essa denominação, surgiram primeiramente os cargos de provimento efetivo de Defensor Público no quadro da organização do Ministério Público, na época em que a cidade do Rio de Janeiro sediava a capital do Brasil.

 A Lei nº 3.434, de 20 de julho de 1958, que dispõe sobre o Código de organização do Ministério Público do Distrito Federal, no âmbito da Procuradoria Geral de Justiça do Distrito Federal, determinara que a prestação dos serviços de “assistência judiciária” às pessoas carenciadas de recursos econômicos fosse prestada por defensores públicos integrantes da classe inicial do Ministério Público.

Com essa lei, o ingresso na carreira inicial do Ministério Público far-se-ia no cargo de defensor público cujo provimento dependia de concurso de provas e títulos.

Conforme o artigo 44º, da Lei 3.434/58 a carreira dos membros do Ministério Público compreendia os cargos de Defensor Público, Promotor Substituto, Promotor Público, Curador e Procurador da Justiça.  Assim, não será errado dizer que o primeiro estatuto do defensor público com inclusas prerrogativas, direitos e deveres, tem origem no núcleo da Lei de organização do Ministério Público.

Na referida Lei 3.434/58, eram asseguradas as hispóteses de impendimento quando o defensor deixar de propor ação, requerer providências e diligências ou recorrer quando estes atos forem manifestamente incabíveis ou inconvenientes aos interesses da parte sob o seu patrocínio, desde que comunicado por ofício ao Procurador Geral; Naquela época, era por designação do Procurador Geral que os Defensores Públicos atuavam junto as Varas Criminais e os Tribunais do Júri, junto as Varas de Família, de Menores, de Órgãos e Sucessões e nas Varas Cíveis em geral, de acordo com as necessidades reclamadas pelos serviços judiciários de natureza assistencial.

Em 1958, nos juízos criminais, por força dessa lei cabia ao Defensor Público, então membro do Ministério Público, exercer as funções de Curador e, na qualidade de advogado da parte oferecer alegações preliminares e finais; produzir a defesa oral em audiência; usar de todos os recursos para quaisquer instâncias ou tribunais, desde que encontrem fundamento em lei e amparo na prova dos autos; assistir, obrigatoriamente, a instrução criminal, requerer diligências, exames periciais, e tudo mais que for útil ou necessário à defesa dos acusados; impetrar “habeas-corpus”, concessão de liberdade provisória, prestação de fiança e expedição de alvarás de soltura; requerer a suspensão condicional da pena; requerer a conversão de penas e a transferência do preso para local adequado ao cumprimento da pena, atendido o seu estado de saúde; promover a unificação de penas impostas aos condenados; requerer livramento condicional; requerer revisão criminal; impetrar pedido de graça e extinção da pena nos casos de concessão de indulto ou anistia; requerer a reabilitação; visitar, nos presídios, os presos que estiverem sob o seu patrocínio.

Nos juizos cíveis com muito menor intensidade incumbia ao Defensor Público, conforme o código de organização do Ministério Público, exercer as funções de advogado a que se refere o Código de Processo Civil e a Lei nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, mediante nomeação do Juiz, atender às partes, diariamente, em horário preestabelecido, de acordo com a distribuição do pedido de gratuidade de justiça; aconselhar as partes sobre seus interesses e solicitar a documentação própria; dirigir-se, por ofício a repartições públicas ou autárquicas, bem como a particulares, pedindo esclarecimento, informações e documentos para instruir e acompanhar processos judiciais e a comparecer às diligências e às audiências, sendo sua intimação feita sempre pessoalmente; dar conhecimento, ao Juiz, dos eventuais atrasos no processamento dos feitos, beneficiados com a gratuidade de justiça, representando, se necessário, às autoridades judiciárias superiores, por intermédio do Procurador Geral.

No juízo de menores (atualmente designado por juizado da infância e Juventude), não era diferente, cabia ao Defensor Público do Ministério Público, exercer as atribuições que lhe são delegadas pela legislação especial sobre menores (crianças e adolescentes), particularmente: requerer termos de guarda e responsabilidade; requerer tutela para os menores abandonados; requerer busca e apreensão, nos casos de competência do juízo; requerer nos processos de alimentos já existentes o aumento de pensões, ofício a novo empregador e o mais que fôr de direito; assistir e aconselhar as partes; representar, perante as autoridades competentes nos crimes praticados contra menores abandonados.

Verifica-se nesse quadro que no âmbito dos Estados Federados o antigo Estado da Guanabara, atual Estado do Rio de Janeiro, na época em que sediava a capital da República, foi pioneiro e serviu de modelo, primeiro na criação dos cargos de Defensor Público na estrutura administrativa do Ministério Público e, depois, na criação da Defensoria Pública em decorrência da divisão dos serviços (acusação e defesa), da transferência dos bens e servidores do Ministério Público do antigo Distrito Federal na cidade do Rio de Janeiro para o Ministério Público do Estado da Guanabara.

A cidade de Brasília foi inaugurada em 21 de abril de 1960, e passou a sediar a capital do País. Naquela ocasião teve início a transferência dos princípais órgãos da administração do antigo Distrito Federal, situado na cidade do Rio de Janeiro (ex-Estado da Guanabara), para a nova capital recém-construída na cidade de Brasília. [11]

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O serviço de assistência judiciária, que até então era prestado pelo Ministério Público do antigo Distrito Federal (órgão da União), não se transferiu para a nova sede da República. Através da Lei nº 3.752 de 14 de abril de 1960, conhecida por Lei Santiago Dantas, o serviço de assistência judiciária foi legado ao Ministério Público Estadual do antigo Estado da Guanabara, atual Estado do Rio de janeiro.

Por meio da referida Lei, foram transferidos ao Estado da Guanabara, na data de sua Constituição, sem direito a qualquer indenização, os serviços públicos de natureza local prestados ou mantidos pela União, os servidores neles lotados e todos os bens e direitos aplicados e compreendidos.

Os serviços transferidos e o pessoal civil e militar, passaram do antido Distrito Federal à circunscrição e jurisdição do recém criado Estado da Guanabara, e ficaram sujeitos à autoridade Estadual, tanto no que se refere à organização desses serviços, como no que respeita às leis que regulam as relações entre o Estado e seus servidores. Incluem-se nesses serviços a Justiça Estadual, o Ministério Público, a Polícia Militar, o Corpo de Bombeiros, os estabelecimentos penais e os órgãos e serviços do Departamento Federal de Segurança Pública.

Todavia, em 1974 ocorreu a fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro, transformando-se em um novo território do Estado do Rio de Janeiro.  Em 1976, no pacote das mudanças políticas ocorridas, o cargo de Defensor Público foi extinto no quadro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, tendo em vista que já estava em andamento o projeto de criação da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro[12].

Por meio da Lei Complementar, nº 5, de 06 de outubro de 1976 do novo Estado do Rio de Janeiro, para efeito de enquadramento na carreira, os cargos dos membros do Ministério Público do antigo Estado da Guanabara e os do Rio de Janeiro, tanto os promotores de primeira entrância quanto os defensores públicos foram transformados e reunidos.

Assim, os cargos de defensores públicos e de promotores de justiça de primeira entrância ficaram todos juntos, sob uma única designação na Promotoria de Justiça de terceira categoria. A partir de então, o Ministério Público Estadual construiu seu novo perfil jurídico às suas tradicionais funções com predominância nas funções do Estado acusador e fiscalizador das leis.

Na sequência das mudanças e dos atos legislativos do novo Estado, foi aprovada a Lei Complementar nº 6, de 12 de maio de 1977, que dispõe sobre a organização da “assistência judiciária” e estabelece as atribuições, o funcionamento de seus órgãos e sobre o regime jurídico dos membros da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, e dá outras providências, surge, assim, no Brasil, a primeira instituição denominada Defensoria Pública nos moldes como hoje está proclamado na Constituição Federal, com autonomia e independência funcional.      


III-DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA

No Brasil, a assistência judiciária gratuita destinada à parte da população necessitada ganhou pela primeira vez sede constitucional em 1934, dentre os direitos e as garantias individuais.

Conforme o artigo 113º da Constituição de 1934 era assegurado aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade e, nos termos da alínea 32, a União e os Estados concederá aos necessitados assistência judiciária, criando, para esse efeito órgãos especiais, assegurado a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos. 

Todavia, as garantias individuais da Constituição de 1934, não passaram de meras promessas. O órgão especial que iria garantir o acesso da população necessitada à justiça gratuita não se concretizou, tendo em vista que no ano de 1935, teve início o período da ditadura do governo do Presidente Getúlio Vargas, cujas diretrizes ideológicas apontavam para a supressão dos direitos civis e políticos e, por ter encomendado uma nova Constituição que espelhasse o seu modo de governar, surgiu o Estado Novo.

Com a entrada em vigor da Constituição de 1937, suprimiu-se do texto a garantia constitucional da assistência judiciária gratuita aos necessitados, deixando assim de ser matéria constitucional e, com isso, o direito passa a constar no Código de Processo Civil de 1939, sem, contudo, a obrigatoriedade do Estado prestar os serviços por qualquer de seus órgãos.

Com o fim da era Vargas, após 15 anos de ditadura, a referida garantia de assistência judiciária gratuita retorna ao texto constitucional em 1946, pela segunda vez, entre os direitos e as garantias individuais.

Assim, nos termos do artigo 141º, a Constituição de 1946 assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade e, nos moldes do parágrafo 35º, o Poder Público, na forma que a lei estabelecer, concederá assistência judiciária aos necessitados”. 

Seguindo a tradição das constituições brasileiras democráticas de 1891, 1934 e 1946 a assistência judiciária gratuita à população carenciada de recursos passa a constar no texto da mais recente Constituição da República de 1988, no Art. 5º, inciso LXXIV, segundo a qual: o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.

Salienta Bobbio[13] que os direitos sociais exigem, para sua realização prática, ou seja, para a passagem da declaração puramente verbal à sua proteção efetiva, precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado com nova organização dos serviços públicos de onde nasce a nova forma de Estado, o Estado Social.

Aquela antiga promessa que constou na Constituição de 1934, da criação de um órgão especial com o objetivo de prestar os serviços de assistência judiciária, jurídica e extrajudicial gratuita às pessoas necessitadas concretiza-se no Brasil com a Constituição de 1988, a partir do modelo emprestado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, como uma afirmação da prestação positiva do Estado, marcando lugar entre os direitos e garantias individuais, ponto de convergência do constitucionalismo liberal com o constitucionalismo social, conforme constata o Ministro Marco Aurélio da Suprema Corte brasileira[14].

A partir da Constituição de 1988, a mais nova instituição da República ganha vida nacional, para dar efetiva forma à garantia de acesso à justiça, inclusive aos necessitados, revelando-se um País muito avançado em termos legais, entretanto, a Defensoria Pública vive à margem das conquistas obtidas no plano da sua vigência.  A razão disso é a precariedade organizacional em todo o País e as reduzidas garantias conferidas aos seus membros com relação aos membros do Ministério Público, com quem devide a concepção cênica da sala de audiências[15].  


III – A CONSTITUINTE E AS FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA

A consquista da garantia de acesso à justiça prestada através de órgão do Estado está incorporada ao catálago dos direitos fundamentais. É parte de um processo lento e pacífico de transformação da sociedade brasileira. Conforme leciona J.J. Canotilho “a radicação da ideia da necessidade de garantir o homem no plano econômico, social e cultural, de forma a alcançar um fundamento existencial-material, humanamente digno, passou a fazer parte do patrimônio da humanidade” [16].

Podem-se verificar, por exemplo, essas conquistas sociais que no Brasil marcam as mudanças, os denominados direitos de segunda dimensão, através dos registros nos Diários dos Anais da Assembléia Nacional Constituinte de 1987, nos discursos dos deputados constituintes, nos anteprojetos da Comissão de Estudos Constitucionais e da Comissão da Organização dos Poderes e Sistema de Governo, e nos projetos da Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público[17].

As acaloradas e democráticas discussões tiveram início porque a Constituinte de 1987 precisava de um ponto de partida, uma base sobre a qual os debates pudessem começar. Foram vários os projetos de Constituição, com centenas de sugestões e reivindicações populares. A saída encontrada, como ocorreu nas constituições anteriores, foi a de criar uma comissão de notáveis juristas para elaborar um amplo projeto de constituição.

Essa comissão foi instituida pelo Decreto nº 91.450 de 18/07/1985, denominada de Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, formada por um “grupo de cinquenta pessoas”, presidida pelo constituinte Afonso Arinos de Mello Franco, da relatoria do constituinte Bernardo Cabral, a quem coube fazer o primeiro esboço institucional do Brasil que emergia da ditadura.

O anteprojeto da Comissão Afonso Arinos, como ficou conhecido, na parte que propunha organizar as funções essenciais à justiça, previa a garantia fundamental de que todos os necessitados teriam direito de acesso gratuito à justiça; criava a Defensoria Pública para prestar a assistência jurídica e judiciária gratuita; e os membros defensores públicos teriam as mesmas garantias, direitos, vencimentos, prerrogativas e vedações conferidas aos membros do Ministério Público, todavia, apesar desses avanços, o anteprojeto não serviu de plataforma de lançamento como imaginava o governo que o encomendou[18].

Não por esse motivo, mas o anteprojeto recebeu várias críticas por quase todos os setores da sociedade, conforme salientou o presidente Deputado Ulisses Guimarães “a Constituinte estava de costas para o passado e fortalecida na sua legitimidade, pela vigorosa bancada de grupos sociais emergentes que não desejavam uma constituição pré-fabricada”, e acrescentou “esses meses demonstraram que o Brasil não cabe mais nos limites históricos que os exploradores de sempre querem impor. Nosso povo cresceu, assumiu o seu destino, juntou-se em multidões, reclamou a restauração democrática, a justiça e a dignidade do Estado.” [19]

A importância histórica desse anteprojeto consiste na clara demonstração que os Deputados Constituintes estavam dispostos a construir uma nova carta que espelhasse os anseios da sociedade e fosse de acordo com os direitos humanos, com a efetiva garantia dos direitos fundamentais e as liberdades públicas, posto que qualquer tentativa de fórmulas pré-definidas ou encomendadas não seriam mais aceitas, tendo em conta as amargas experiências do passado e por não expressarem a vontade popular por mudanças.

A Constituinte foi instalada em 01 de fevereiro de 1987, com parlamentares que acumulariam as funções de congressistas e de constituintes. Em 01 de abril de 1987 teve início a primeira reunião da Comissão da Organização dos Poderes e Sistema de Governo e, na sétima ocorrida em 12 de abril de 1987, já se encontrava aprovado pelos constituintes o primeiro esboço do projeto da organização dos poderes e o sistema de governo. Em 26 de abril de 1987, teve início a segunda etapa da Constituinte onde os temas seriam debatidos e votados nas Subcomissões[20].

Na Subcomissão do “Poder Judiciário e do Ministério Público”, apesar da designação restrita às duas instituições, nela se inclui todas as atuais funções essenciais à justiça: a advocacia pública e a privada; o Ministério Público e a Defensoria Pública.

O encaminhamento do projeto do Ministério Público contou com a participação de lobbystas da própria instituição e com o beneplácito do relator da Subcomissão Plínio de Arruda Sampaio, promotor de justiça aposentado pelo Estado de São Paulo. Muito embora tenha trabalhado no cargo de promotor público apenas por cinco anos, entre 1954 e 1959, foi o membro da instituição que mais contribuiu e de forma decisiva para a versão contemporânea do Ministério Público[21].

As associações do Ministério Público e os vários membros da instituição nos diversos lugares do Brasil, tanto do Ministério Público Federal como do Ministério Público dos Estados, criaram uma hegemonia sem precedentes na história, um lobby fortíssimo em torno da idéia da criação do 4º Poder do Estado.

A ideia foi fadada ao insucesso, entretanto, na medida em que transfomaram os seus interesses em direitos via barganhas políticas, não desejavam em hipótese alguma a criação de outra instituição com as mesmas garantias e prerrogativas, principalmente para os ocupantes do cargo de defensor público. Recorde-se que na década dos anos 60, o defensor público era cargo do início na carreira do Ministério Público e havia sido extinto por sua incompatibilidade com as funções do Estado acusador e, obviamente, os lobbiystas não gostariam de ver prosperar os antigos subalternos vocacionados na defesa dos necessitados.

Em agosto de 1987, seguiu-se na Constituinte a discussão do projeto substitutivo apresentado pelo relator da Comissão de Sistematização, que enxugou sobremaneira o texto de criação da Defensoria Pública, de modo que ficou reduzido a um breve artigo nos seguintes termos, caput: “é instituida a Defensoria Pública para a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados”, suprimindo as garantias constitucionais que constava no Anteprojeto e, no Parágrafo Único estabelece que “Lei Complementar organizará a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e estabelecerá normas gerais para a organização da Defensoria Pública dos Estados.” Em votação esse projeto substitutivo não foi aprovado[22].

Em seguida, o constituinte Plinio Martins do PMDB do Estado de Minas Gerais apresentou o seu projeto, sem as garantias idênticas àquelas concedidas aos promotores de justiça, porque o assunto já estava superado em votações anteriores, contudo, foi vencido pela maioria, por ter apelado aos colegas constituintes que mantivessem pelo menos a igualdade de salários. [23]

Merece ser sublinhado o projeto apresentado pelo Constituinte Silvio de Abreu do PMDB do Estado de Minas Gerais (Destaque à Emenda nº 4), por ter conseguido chegar ao modelo atual da Defensoria Pública, pondo fim a uma temerária discussão, pelo iminente risco de não se instituir a Defensoria por pressões dos lobbystas do Ministério Público.

Antes de iniciar a votação desse derradeiro projeto, o relator da Subcomissão manifestou aos seus pares sua preocupação com a possível aprovação do projeto que reconhecia iguais garantias e prerrogativas aos Defensores Públicos, por ter o receio de se “banalizar essas prerrogativas” e, se referindo aos promotores de justiça declarou: “(...) são pessoas que estamos reservando para terem uma alta dignidade, uma grande distância da população”  [24].

O projeto em votação consagrou em todo território nacional a criação da Defensoria Pública, com função essencial à justiça, em benefício das pessoas necessitadas, crianças e adolescentes, reafirmando a promessa ao direito fundamental contida no artigo 5º, inciso LXXIV da Constituição, segundo a qual, o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. Contudo, a única garantia que restou aprovada na Constituição, para o exercício da função consiste no princípio da inamovibilidade.

Nessa sessão de votação foi oportunizado ao deputado Maurício Correa, representante dos constituintes contrários a proposta de criação da Defensoria Pública, com as mesmas prerrogativas do MP, a se manifestar. Referindo-se ao substitutivo apresentado pelo Constituinte Silvio de Abreu defendeu a ideia de que “a Constituição deve emitir enunciados e não se estender em generalidades. A não ser a questão relativa àquelas prerrogativas fundamentais da Magistratura, que estão hoje estendidas ao Ministério Público por força de aprovação de emenda ontem aqui realizada, todas as outras inovações trazidas por S. Ex.ª são perfeitamente passíveis de apreciação por lei ordinária”.

Inconformado com a radical mudança do projeto original e pelo desprezo que deram a causa dos mais pobres, o constituinte Silvio de Abreu, em resposta ao deputado Maurício Corrêa, declarou em seu discurso que “Gostaria de dizer que as minúcias e as minudências a que se referiu S. Ex.ª foram e estão inseridas, com a nossa aprovação, no capítulo que trata do Poder Judiciário e na parte alusiva ao Ministério Público. Quero dizer também que se estas disposições nunca foram incluídas na Constituição devemos fazê-lo agora, porque a Nação inteira está à espera dos dispositivos que atenderão a quase unanimidade da sua população”  [25].

Diferentemente do projeto do Ministério Público, que chegou à Subcomissão com forte aparato, o projeto da Defensoria Pública de autoria do Constituinte Sílvio de Abreu (Destaque à Emenda nº 4), foi aprovado pela maioria dos constituintes depois de acirrados debates.

Chama à atenção na defesa do projeto a carga semântica dos discursos de Silvio de Abreu e Plínio Martins, pelo uso por cada um deles do que Rawls[26] denominou de “véu da ignorância”, ou seja, é uma posição de situação imaginária em que pessoas racionais, livres e iguais criam uma sociedade regida por princípios de justiça. Para que a imparcialidade se verifique deve-se estar “coberto” por um “véu da ignorância”, por suas imparcialidades e falta de interesse particular na aprovação do projeto que institui a Defensoria Pública.

Para que realmente fosse possível a criação da Defensoria, como resultado da promoção da liberdade e da justiça social, instintivamente esses dois constituintes que mais se destacaram na defesa da criação da Defensoria, estavam cobertos pelo véu da ignorância.

A proposta de Rawls consiste no em que o desconhecimento da sua situação social e econômica, os individuos exijam uma organização da sociedade que seja dentro do possível a mais benéfica e melhor para todos, não prestigiando determinados grupos e nem inferiorizando outros. Neste sentido vão exigir que a sociedade promovesse os valores básicos que permitam a todos ter uma vida aceitável, designadamente a mesma liberdade para todos e o mínimo de desigualdades sociais e econômicas.

Salienta Rawls que a justiça como equidade equivale a uma distribuição desigual dos bens básicos que deve favorecer quem se encontra em pior situação. O conceito de justiça que Rawls adota considera que “as instituições são justas quando não há discriminações arbitrárias na atribuição de direitos e deveres básicos e quando as regras existentes estabelecem um equilíbrio adequado entre as diversas pretensões que concorrem na atribuição dos benefícios da vida em sociedade” [27].

A desigualdade que se estabeleceu entre o Ministério Público e a Defensoria Pública não traz nenhum benefício aos menos favorecidos, mas ao contrário, tanto no plano ideológico quanto nos institucionais, os superpoderes confediros ao Ministério Público causou uma inversão de tendência com relação ao fortalecimento do Estado Social.

O Estado acusador restou demasiadamente fortalecido com mega organização, garantias e prerrogativas e o Estado defensor severamente enfraquecido decorrente da desigualdade de armas, porque criada e sentida diretamente sobre a maioria da população.

O resultado disso é que se criou dentro da justiça, que deve ser imparcial, o que é mais função essencial no Estado acusador e o que é menos função essencial no Estado defensor. A justiça para ser justa, nas palavras de Ralws, precisa conjugar na sociedade características de liberdade e justiça social.

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Sobre o autor
Mario Lima Wu Filho

Defensor Público do Estado do Amazonas; Mestrando pela Escola de Direito da Universidade do Minho - Braga - Portugal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WU FILHO, Mario Lima. A justiça essencial:: Diferença entre as prerrogativas do Ministério Público e da Defensoria Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3696, 14 ago. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24322. Acesso em: 22 dez. 2024.

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