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Para além da PEC 37

19/06/2013 às 09:58
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As discussões em torno da PEC 37 vão além dos fundamentos jurídicos, tendo em vista que envolvem questões de segurança pública e política criminal.

A discussão a respeito da PEC 37, infelizmente, tem se resumido à análise estritamente jurídica. Os operadores do Direito, compreensivelmente, têm debatido o tema contemplando apenas aspectos jusprincipiológicos que, apesar de possuírem gigantesca importância, não esgotam o assunto e não podem servir de único esteio para oferecer o mais prudente caminho.

Muito se escreveu sobre o risco de a investigação conduzida pelo Ministério Público desequilibrar a paridade de armas que deve prevalecer entre acusação e defesa. Muito se disse sobre o fato de a Constituição Federal já garantir às polícias judiciárias a responsabilidade pela investigação criminal, sendo a redação da PEC apenas evidência de algo já disposto na Carta de 1988. Diversos contendores já se manifestaram apontando a inexistência de controles e prazos nos procedimentos encabeçados pela promotoria.

Ocorre que, ao nosso sentir, o tema carece de um debate muito mais amplo e democrático, isto por que, mesmo que obliquamente, o que estamos discutindo é o modelo adotado pelo país para todo o complexo sistema de segurança pública e justiça criminal.

Há alguns anos temos assistido infinitas discussões sobre reforma política, previdenciária ou trabalhista, entretanto, muito raramente ouvimos alguma voz se levantar pela imprescindível e também inadiável reforma por que deveria passar a segurança pública brasileira.

O modelo policial adotado pelo Brasil é extremamente peculiar e entender sua evolução é fundamental para enxergamos a essência da proposta e seus efeitos na vida de cada brasileiro.

É com a chegada da família real que nascem as instituições policiais nos moldes das que conhecemos hoje, ou seja, organizações profissionalizadas e mantidas pelo poder público, já que durante o liberalismo econômico e mergulhado no regime escravocrata não havia razões para que o Estado interviesse em conflitos sociais considerados de cunho eminentemente privado apesar de, no Brasil-colônia, já existirem grupos de pessoas com atribuições ligadas à “manutenção da ordem”, como os quadrilheiros, alcaides e capitães do mato.

É importante perceber que o desenho atual da segurança pública brasileira foi traçado na França, no séc. XVIII, durante a construção de seu Estado Nacional que, por meio da constituição de um exército uno e permanente, possibilitou a consolidação do poder nas mãos do monarca.

Esse modelo de polícia centralizado e despótico era exercido pelas Maréchausée, que foram rebatizadas, por exigência da Revolução Francesa e da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, de Gendarmerie, tendo sido replicado em toda a Europa, já que coincidia com as exigências de um Estado absolutista, ávido por concentração de poder.

Inspirado no modelo francês, o governo português no final do séc. XVIII criou em Lisboa a Intendência-Geral de Polícia da Corte e do Reino e, posteriormente, a Guarda Real de Polícia. Esse mesmo formato foi replicado no Rio de Janeiro com a vinda da família real em 1808, nomeando-se o primeiro Intendente-Geral de Polícia, Paulo Fernandes Viana e, no ano seguinte, instituindo a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia, que teve como primeiro comandante o Coronel José Maria Rabelo, com funções de prover a segurança e a tranquilidade pública da corte, dando-se assim os primeiros passos do nosso sistema bipartido entre polícia ostensiva e polícia investigativa.

Para reprimir as revoltas sociais ocorridas anos mais tarde, no período regencial, como Cabanagem, Sabinada e Farrapos, esse mesmo modelo foi replicado nas províncias a partir da reforma do Código de Processo Criminal em 1841, que passou a estabelecer, por meio da Lei Imperial nº 261, que em cada província haveria um Chefe de Polícia, com seus Delegados e Sub-delegados, fazendo estrear no cenário da segurança pública nacional a figura do Delegado de Polícia.

Apesar de algumas alterações de nomes e competências, esse modelo de polícia arrastou-se do período pré-independência até os dias de hoje, tendo como tônica a centralização do poder de investigação criminal nas mãos de uma ou poucas instituições policiais, o que acabou por impedir ou dificultar, por mais incoerente que pareça, que outras instituições que atuam especificamente no combate a determinado tipo de ilícito, como fraude em licitações, degradação ambiental, falhas no sistema econômico-financeiro, possam realizar suas próprias investigações e nutrir o Ministério Público com informações necessárias para oferecimento da denúncia.

Esse sistema é absolutamente bizarro porque tenta inviabilizar a ação de agentes especializados em determinados temas, sob o fundamento de que apenas às polícias judiciárias caberia tal atribuição. Ora, existe lógica num sistema que se esforça para coibir a investigação por parte de auditores do TCU, profissionais extremamente experimentados na fiscalização de obras públicas, quando suspeitam de fraudes? Visa-se o bem comum quando barramos ações investigativas das Receitas estaduais e federal, que diligentemente tentam agir contra empresas que surrupiam o dinheiro público? É para o bem do país uma estrutura que tenta impedir diligências, mesmo que com fito criminal, do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, que aos trancos e barrancos vem conseguindo desbaratar quadrilhas especializadas em lavar dinheiro? É para a minha segurança qualquer argumento que tente impedir que as polícias rodoviárias investiguem quadrilhas de malandros que assaltam ônibus nas madrugadas frias dos rincões do nosso país, violentando sexualmente as passageiras e torturando os motoristas?

A resposta única é um sonoro não e em razão dele, na carência de um sistema eficaz, diversos órgãos vêm realizando, há décadas, investigações dentro de suas esferas de competência em parceria com os Ministérios Públicos, mesmo que semidesamparados pela lei, mas absolutamente alicerçados na mais importante de nossas causas, que é a construção de um mundo melhor. Essas ações levaram a questionamentos junto aos tribunais superiores, que coerentemente têm decidido pela possibilidade de ação investigativa por esses órgãos em cooperação com o MP, baseados no parágrafo único do art. 4º do CPP.

Talvez, no mundo ocidental, a antípoda do nosso modelo centralizador seja o sistema policial norte-americano. Aos olhos dos nossos irmãos estadunidenses, ao menos aparentemente, impunidade é algo sério, que deve ser enfrentada de forma realista e alheia às guerras de vaidade, de briga subintestina pelo poder e, consequentemente, por maiores salários.

Os EUA adotaram um modelo descentralizado e democrático, composto em sua maioria por pequenas instituições com até cem pessoas, em níveis municipais, de condado, estaduais ou federais, que buscam a todo custo a eficiência em suas ações. Esse modelo deriva do sistema inglês de segurança pública, criado em 1829 pelo então 1º Ministro Sir Robert Peel, até hoje considerado o pai da filosofia de policiamento comunitário.

Assim, como primeira conclusão, é importante quebrar o mito de que nos EUA existiria apenas uma polícia e no Brasil, várias, sendo essa a causa da ineficiência do nosso sistema. Na verdade, o que faz do modelo norte-americano um dos mais eficientes do mundo, para além do constante treinamento dos servidores e do moderno aparato tecnológico, são três fatores de peso que passamos a explanar.

O primeiro fator é que milhares de instituições, de forma descentralizada, realizam o combate diuturno contra toda forma de ilícitos, sejam eles sancionados por leis de cunho administrativo ou criminal. Para tanto, existem nos EUA aproximadamente 1600 agências policiais federais autônomas, 12000 departamentos municipais e 3000 xerifados, totalizando mais de 16 mil organizações com poder de polícia.

Há instituições específicas para cuidar da segurança no metrô, para cada aeroporto, para as rodovias, para a questão da imigração ilegal, para a vigilância sanitária, para o combate ao tráfico de drogas, para a segurança de propriedades rurais, para combater desvios de impostos etc, não existindo, contudo, divisão entre órgãos que investigam para sancionar administrativamente e outros que investigam para sancionar criminalmente.

As agências mais famosas são conhecidas de todos, como o FBI (Federal Bureau of Investigation), os U.S. Marshalls, ou o NYPD (New York Police Departament). Todavia, existem milhares de outras organizações, como o DEA (Drug Enforcement Administration), o INS (Immigration and Naturalization Service), o ATF (Bureau of Alcohol, Tobacco, and Fire Arms), o IRS, Serviço de Rendas Internas, o "U.S. Customs Service", Serviço Aduaneiro, a IRS, Divisão de Inspeção Postal, a "U.S. Coast Guard", Guarda Costeira, dentre tantas outras.

Para ilustrar, é como se o IBAMA fosse uma polícia que cuidasse das florestas, a FUNAI uma agência policial que tratasse das questões indígenas, a Receita Federal uma polícia alfandegária e aduaneira, as secretarias de trânsito fossem polícias de trânsito, os agentes prisionais pudessem investigar os crimes que ali dentro ocorrem, o Ministério do Trabalho pudesse investigar os casos de trabalho escravo e todos legitimamente encaminhassem suas conclusões ao Ministério Público, fundamentando a ação penal.

O segundo fator que impulsiona a eficiência nas polícias norte-americanas é o que os estudiosos da segurança pública costumam denominar “ciclo completo de polícia”, ou seja, uma mesma corporação atua na prevenção de determinado ilícito, em sua repressão e na investigação quando de sua ocorrência. Esse sistema é diametralmente oposto àquele realizado no Brasil, onde as polícias ostensivas e todos os órgãos públicos são obrigados a encaminhar às policias judiciárias os desvios detectados, para que somente essas instituições procedam à investigação criminal.

O sistema é tão estúpido que faz com que o Estado vá até a residência do cidadão e depois peça para que o cidadão procure novamente o Estado. Explico: quando uma mãe de família tem sua residência furtada, o Estado encaminha até sua casa uma equipe oficial para registrar o fato e diligenciar na busca do agressor e, em seguida, pede para a amedrontada senhora procurar novamente o Estado para registrar o fato, para que se iniciem as investigações.

O sistema é tão burro que, quando um cidadão é flagrado embriagado numa rodovia a 300 quilômetros de qualquer centro urbano, ele tem que ser conduzido por esse longo trecho, desguarnecendo o policiamento local e expondo a pessoa a um desgaste excessivo, fazendo com que uma ocorrência que poderia terminar em uma ou duas horas se arraste por um dia todo.

Essa situação vem sendo razoavelmente modificada a partir do momento em que algumas instituições policiais, amparadas na Lei dos Juizados Especiais Criminais, em outra parceria dadivosa com o MP, tem confeccionado seus próprios Termos Circunstanciados de Ocorrência nos casos de crimes de pequeno potencial ofensivo, encaminhando o caso diretamente à promotoria, dando maior agilidade e eficiência ao sistema.

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O terceiro fator que impede o eficaz funcionamento das polícias judiciárias brasileiras é o fato de os servidores que compõe a base dessas organizações serem impedidos de alcançar o topo. Ora, como motivar agentes, escrivães e papiloscopistas se, por mais compromissados que sejam, nunca ocuparão as funções gerenciais da organização a que servem? O que racionalmente explica o fato de um agente, com 20 anos de profissão, tendo realizado cursos em vários países, tendo sido bem sucedido em centenas de investigações não poder ascender à chefia do órgão? Querer que esse servidor se motive é como dizer para o vendedor da loja de sapatos que ele tem de transpirar motivação, mas, ao mesmo tempo, informar-lhe que jamais pode sonhar em ser gerente ou supervisor.

Alguns, ofuscados pelo costume, alegam que tais servidores não têm condições de assumir essas responsabilidades por não possuírem formação jurídica, sendo o Delegado de Polícia o único profissional preparado para lidar com essas questões. Ledo engando. A figura do delegado, como vimos, surgiu no século XIX, mas a exigência de formação jurídica é construção tupiniquim da segunda metade do século passado.

Dizer que delegados, pelo simples fato de serem formados em Direito e terem memorizado uma porção de teorias e leis são mais preparados que agentes e escrivães, auditores fiscais, auditores do TCU ou da CGU, policiais florestais ou rodoviários, agentes do IBAMA etc, é acreditar que algumas pessoas têm superpoderes e que outras são subnutridas intelectualmente, sem condições de entender o mundo e a legislação com que trabalham.

Nos EUA também não existe essa relação exclusiva que vincula a chefia das carreiras de investigação a uma necessária formação jurídica. Na verdade, a especificidade do serviço policial, devido a uma infinidade de questões sociais, exige que o currículo do candidato combine conhecimento jurídico com uma boa dose de psicologia, sociologia, política, computação e educação física, por exemplo.

Talvez, a soma dos três pontos apontados seja um referencial para explicar os índices pueris de descoberta de autoria da maioria dos crimes cometidos em nossas terras. No caso dos homicídios, por exemplo, o país ocupa, segundo o Mapa da Violência 2013 do Centro Brasileiro de Estudos Latino-americanos, a 8ª colocação dentre os mais violentos do mundo, em números proporcionais, e a 1ª colocação em números absolutos. Por mais espantoso que pareça, o índice de resolução desses casos por aqui varia de 5 a 8%, enquanto nos EUA esse índice chega a 70% e no Reino Unido, a 90%. Isso significa, que das aproximadamente 40 mil pessoas que foram assassinadas no país no último ano, 3200 casos foram solucionados e as outras 36800 famílias não puderam acompanhar a punição do responsável.

A escancarada impunidade faz com que nos acostumemos a ser violentados e a não buscarmos nossos direitos. Qual pessoa em sã consciência se desloca à delegacia para registrar o fato de ter um aparelho celular, ou outro bem furtado, acreditando numa resposta estatal eficiente? Poder-se-ia alegar que para solucionar o problema uma maior estrutura deveria ser oferecida às polícias investigativas. Ocorre que, mesmo nos padrões atuais, em que dezenas de órgãos de certa forma colaboram na investigação, ainda assim não conseguimos alcançar o grosso da bandidagem. Seria razoável acreditar que algum dia existirá essa estrutura? Claro que não. É por isso que cremos que centralizar ainda mais um sistema já absolutamente concentrado não é um retorno a 1808, é pior que isso, já que nessa época existiam poucas instituições. É fazer um big-bang às avessas que, sinceramente, não sei para onde vai nos levar.

Dizer, por exemplo, que nossa nobre Polícia Federal, a querida caçula de todas as instituições policiais brasileiras, criada em 1944, é capaz de cuidar da segurança dos incríveis 8511 quilômetros de costa brasileira, dos 16,8 mil quilômetros de fronteira seca, dos 34 aeroportos internacionais, das centenas de aeroportos regionais, dos 33 portos, da fiscalização de todas as empresas de segurança do país, e ainda investigar a regularidade das milhares de licitações federais e combater às drogas, é acreditar em super-heróis, ainda que ela possuísse uma enorme estrutura.

Senhores parlamentares, juristas, autoridades e formadores de opinião: não estamos tratando apenas do poder de investigação do Ministério Público. Estamos falando do poder da própria sociedade, por meio de seus órgãos constituídos, responder minimamente à impunidade que nos assola, à violência que nos consterna, à corrupção que nos paralisa, por meio de investigação e encaminhamento ao MP dos ainda poucos casos que conseguimos enfrentar. O Ministério Público, na verdade, é apenas o delta de uma série de dutos que nele deságuam, pois nenhum promotor desse país é vidente ou tira as informações de sua própria cabeça. É a sociedade, junto aos órgãos citados, que leva as informações para que o MP se movimente e atua em cooperação com ele. Desta forma, é preciso que todos os órgãos envolvidos tenham assento nas discussões, não apenas delegados e promotores. É preciso que todos os órgãos envolvidos sejam ouvidos e tenham o direito de se manifestar!

Para finalizar, quero esclarecer que este não é um manifesto contra delegados de polícia. Não acredito que apenas as polícias judiciárias sejam ineficientes. Na verdade, a ineficiência corre em nossas veias justamente pelo fato de não admitirmos a realidade, de não aceitarmos políticas públicas que estabeleçam metas e sanções para quem não as cumpre e de, acima de tudo, lutarmos com toda nossa força para manter o status quo a que nos acostumamos, mesmo que prejudicial aos outros e, indiretamente, a nós mesmos.

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Sobre o autor
Fabrício Rosa

Polícial Rodoviário Federal em Goiânia (GO).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSA, Fabrício. Para além da PEC 37. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3640, 19 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24725. Acesso em: 21 nov. 2024.

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