2 DIREITOS SOCIAIS SOB A ÓTICA DO DIREITO BRASILEIRO
2.1 O ESTADO SOCIAL BRASILEIRO E A TEORIA DA EFETIVIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS QUE CONSAGRAM DIREITOS FUNDAMENTAIS
De início, malgrado a Constituição Brasileira ter expressamente consagrado um Estado Democrático de Direito, propõe-se a tese adepta de que o Brasil deveras seria um Estado Social e Democrático de Direito. Entre os adeptos da aludida teoria, tem-se: Ingo Sarlet, Paulo Bonavides e José Afonso da Silva, entre outros.23 É que a Constituição de 1988 estabelece, principalmente entre o art. 1º e o 3º, princípios (valorização do trabalho, dignidade da pessoa humana, cidadania, garantir o desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza e da marginalização, não discriminação etc) que devem ser levados a efeito para a efetiva concretização dos direitos fundamentais. Ademais, entre os elementos do Estado (povo, território, poder e finalidade) encontra-se o bem comum, que corresponde à finalidade e, nas palavras de Dalmo Dallari (1998, p. 41), compreende-se como “o conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana”.24 Um exemplo do que está a falar-se é o próprio direito à propriedade que sofre mitigação para atender ao aspecto social (art. 5º, XXIII, da CRFB). Assim, a fim de avançar no presente estudo, deve-se ter em mente o caráter brasileiro de Estado Social e Democrático de Direito, que é irradiado pela Constituição Cidadã.
De fato, em se tratando de direitos sociais e sua eficácia, é de ver-se que o direito brasileiro se baseou no direito comparado, principalmente no direito alemão, tendo como influência as teorias desenvolvidas por Robert Alexy, Martin Borowski e Ronald Dworkin, que se difundiram aqui ao final da década de 80 e ao longo dos anos 90 do século passado. Em consequência, no direito brasileiro, como bem verificado por Luiz Roberto Barroso, houve um processo de reconhecimento da força normativa das normas constitucionais, que verdadeiramente consistiu numa importante conquista para o constitucionalismo brasileiro e ficou conhecido como a doutrina brasileira da efetividade.25 Explica o renomado doutrinador que esse movimento teve como objetivo a efetividade das normas constitucionais, superando disfunções crônicas substancializadas na interpretação insincera da Constituição, na percepção como se ela fosse uma fantasia ou uma utopia e na falta de determinação política em dar-lhe cumprimento (aliado a isso havia aqueles que acreditavam existir tão somente um conceito de dirigência da norma, sem o aspecto capaz de vincular o Poder Público).26 E, com maestria que lhe é peculiar, prossegue o renomado doutrinador, vale a pena conferir, in verbis:
A essência da doutrina da efetividade é tornar as normas constitucionais aplicáveis direta e imediatamente, na extensão máxima de sua densidade normativa. Nessa linha, as normas constitucionais, como as normas jurídicas em geral, são dotadas do atributo da imperatividade. Não é próprio de uma norma jurídica sugerir, recomendar, alvitrar. Normas constitucionais, portanto, contêm comandos. Descumpre-se a imperatividade de uma norma tanto por ação quanto por omissão. Ocorrida a violação, o sistema constitucional e infraconstitucional deve prover meios para a tutela do direito ou bem jurídico afetados e restauração da ordem jurídica. Estes meios são a ação e a jurisdição: ocorrendo uma lesão, o titular do direito ou alguém com legitimação ativa para protegê-lo pode ir a juízo postular reparação. Existem mecanismos de tutela individual e de tutela coletiva de direitos. (…)A doutrina da efetividade serviu-se, como se deduz explicitamente da exposição até aqui desenvolvida, de uma metodologia positivista: direito constitucional é norma; e de um critério formal para estabelecer a exigibilidade de determinados direitos: se está na Constituição é para ser cumprido. Nos dias que correm, tornou-se necessária a sua convivência com novas formulações doutrinárias, de base pós-positivista, que levam em conta fenômenos apreendidos mais recentemente, como a colisão entre normas – especialmente as que abrigam princípios e direitos fundamentais -, a necessidade da ponderação para resolver tais situações, bem como conceitos como mínimo existencial e fundamentalidade material dos direitos.
À guisa de exemplo, pode-se citar o Mandado de Injunção nº 721/DF, do STF, que, antevendo a inércia do poder competente para a regulamentação da norma de eficácia limitada (art. 40, §4º da CRFB), além de cientificá-lo para adoção da medida cabível (a edição da norma regulamentadora), concretizou o direito à aposentadoria especial aos funcionários públicos, aplicando-lhes a norma que trata da matéria no âmbito privado (Lei nº 8.213/1991).27
Não obstante, havia anteriormente um entendimento que considerava os direitos sociais apenas como normas programáticas, sem o caráter capaz de vincular o Poder Público ao cumprimento da norma, exceto quando flagrante violação à norma constitucional. Em outras palavras, os direitos sociais consistiam em normas programáticas, eminentemente dirigentes, sem caráter vinculante, de modo que o Poder Legislativo tinha a faculdade de fazer ou não realizar esses direitos. Assim, somente o Poder Executivo e Poder Legislativo poderiam tratar dos direitos sociais, sendo que ao legislador caberia criar ou tornar possível o direito social e ao administrador competiria possibilitar ou não a concretização daquele direito social, com observância – é claro – ao princípio da legalidade (art. 37, caput, da CRFB). É certo afirmar que essa tese, mais tradicional, estaria relacionada ao princípio da separação dos poderes, teoria desenvolvida por Montesquieu em sua obra clássica “O Espírito das Leis”, de 1748, que estabelecia a independência e o equilíbrio entre o Poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Nesse caso, o impedimento à implementação do direito social seria a ilegitimidade do juiz em interferir nessa seara, já que não seria ele agente político, eleito democraticamente pelo povo e, portanto, não estaria por autorizado a incrementar Políticas Públicas. Acrescente-se a isso o fato de o juiz não deter dados técnicos necessários, que deveriam colaborar para inferir sobre qual a melhor forma de empregar Políticas Públicas.
Deve ser observado, no entanto, o fato de que a teoria do referido iluminista se baseou em um país cuja forma de governo era (e continua sendo) a Monarquia, no caso, a Inglaterra. Montesquieu considerava, inclusive, que “os juízes [são] (…) a boca que pronuncia as palavras da lei”.28 Logo, embora se verifique uma determinada semelhança com o sistema brasileiro de separação de poderes, deve ser afastada a ideia de que vige no Brasil a mesma teoria – sem alteração. Não apenas por que se tratar aqui de um país cujo sistema de governo seja o presidencialismo, mas também ao fato da sociedade estar em constante mudança e, consequentemente, também haver mudança na aplicação da lei ou até mesmo no seu conteúdo normativo, demandando certo ativismo pelo Judiciário.29
De fato, demonstra-se cada vez mais adeptos à teoria de que o Poder Judiciário pode sim efetivar direitos, ainda que haja ingerência na função legiferante do Poder Legislativo. As razões são várias, dentre as quais, destacam-se: i) o órgão cúpula do Poder Judiciário é composto por Ministros democraticamente nomeados, sendo, de fato, eleitos pelo povo (art. 1º, PÚ c/c art. 101, PÚ, ambos da CRFB), ainda que indiretamente, o que torna insustentável a tese de que o Poder Judiciário não possui membros democraticamente eleitos pelo povo; ii) a inexistência de violação ao princípio da separação dos poderes, pois se constata a evolução da teoria proposta por Montesquieu, em função da difusão da aplicação do mecanismo check and balances (freios e contrapesos), isto é, se o legislador ou administrador não possibilita o exercício do direito constitucionalmente previsto, incidindo em flagrante inconstitucionalidade, caberia ao magistrado fazer em razão da relevância jurídica dos direitos fundamentais; iii) o fato de que os políticos não levam a sério seus papéis dentro da sociedade brasileira; iv) a população brasileira ter aceitado tal prática, mormente em razão do ativismo e judicialização das Políticas Públicas.
Assim, apesar das acaloradas discussões sobre o tema, deveras a tese de uma Justiça proativa está sendo largamente aplicada em território brasileiro.30 Aliás, a critério de estabelecer quais Poderes são mais aceitos pela sociedade brasileira, tem-se a pesquisa realizada pelo Ibope Inteligente em 2012, que constatou mais confiança da população brasileira no Poder Judiciário/Justiça (com 53 pontos) do que no Congresso Nacional e nos Partidos Políticos, os quais obtiveram, respectivamente, 36 e 29 pontos. Isto é, menos da metade da população confia no órgão bicameral encarregado pela função tipicamente legiferante, o que demonstra o descrédito desse órgão perante a sociedade brasileira.31 Conclui-se, portanto, que em regra cabe ao Legislador e ao Administrador tratar das Políticas Públicas, podendo também o Judiciário decidir acerca de tal tema.
Com efeito, os Direitos Sociais estão previstos, exemplificativamente,32 no Capítulo II da Constituição Federal de 1988, dentro do Título “Direitos e Garantias Fundamentais”.33 Disso, decorrem três consequências, a saber: a) tais direitos estão subordinados à regra da aplicabilidade imediata (art. 5º, §1º da Constituição Federal de 1988); b) a possibilidade de impetração de mandado de injunção a fim de sanar a omissão do Poder Público em regulamentar determinado direito social que se encontra inviabilizado de ser exercido (quando se tratar de norma de eficácia limitada);34 c) consistirem os direitos sociais, ao menos quanto ao seu núcleo essencial, em cláusulas pétreas (art. 60, §4º, IV).35
Desse modo, a norma constitucional que preveja um direito social possui característica mista, a saber, é dotada de eficácia em favor do indivíduo, consistindo em verdadeiros direitos subjetivos, podendo por ele ser exigida, e constitui norma programa, a qual permite ao Legislador e Administrador determinar a Política Pública adequada e necessária à realidade brasileira. De igual modo, justifica-se a hodierna atuação do Poder Judiciário em matéria de concretização de direitos sociais e tal dinâmica (de recorrer ao Judiciário para efetivar direito social) recebe o nome de judicialização. No entanto, ainda há dúvidas em que medida poderia ser exigido. Assim, no próximo item deste capítulo, verificar-se-á a controvérsia tida relativamente à possibilidade de exigir o direito social e, em seguida, analisar-se-á a proporção que configura ou não direitos subjetivo.
2.2 A QUESTÃO DO MÍNIMO EXISTENCIAL, DO NÚCLEO ESSENCIAL E DOS DIREITOS SOCIAIS COMO DIREITOS SUBJETIVOS “PRIMA FACIE”
De fato, em se tratando de direitos fundamentais, é assegurado ao indivíduo a prestação obrigatória de um mínimo existencial, da qual não pode o Estado negar, nem mesmo sob o fundamento de inexistência de recursos. Caso contrário, o direito fundamental restaria esvaziado e, dessa forma, seria ofendido o núcleo essencial do direito. É que o mínimo existencial significa o próprio conteúdo do núcleo essencial. O núcleo essencial e o mínimo existencial são, portanto, expressões sinônimas que encontram amparo legal no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CRFB). A respeito do mínimo existência, veja-se a excelente lição da Professora Ana Paula de Barcellos, in verbis:
É bem de ver que a noção de mínimo existencial foi em boa parte desenvolvida para minimizar, e quiça neutralizar, essa primeira dificuldade observada no âmbito do controle subjetivo individual. A ideia é a de que o argumento da reserva do possível não pode ser suscitado contra a exigibilidade do mínimo existencial pois seu conteúdo descreve o conjunto de prioridades constitucionalmente definidas para a ação estatal. Isto é: prioritariamente a qualquer outra atividade, cabe ao Estado empregar recursos para o atendimento daquilo que se entenda, em determinado momento histórico de uma sociedade, o mínimo existencial. Assim, se algum indivíduo demonstra encontrar-se desprovido dos bens ou serviços inerentes a esse mínimo, é porque o Estado, em um momento anterior, terá agido de forma inconstitucional, destinando recursos a outros fins sem haver atendido, antes, a prioridade constitucional. Nesse contexto, ao empregar o conceitos do mínimo existencial o juiz está dispensado de examinar o argumento da reserva do possível, uma vez que essa questão já terá sido avaliada quando da construção do próprio conceito.36
Para exemplificar o mínimo existencial, cita-se um caso real. Em tempos de ações afirmativas, o MPF está requerendo o cumprimento da Lei nº 12.089/2009 que proíbe que um mesmo estudante ocupe duas vagas, simultaneamente, em Instituições Públicas de Ensino Superior em todo o território nacional.37 Isto quer dizer que o indivíduo só teria direito a uma vaga em Universidade Pública, medida mais que razoável e justa, uma vez que ainda não há vagas para todos no ensino superior.
Por seu turno, o direito social prima facie expressa duas ideias: a primeira de restrição à efetivação do direito ao mínimo existencial; a segunda de residualidade, isto é, não se tratando de direito minimamente assegurado, impõe-se que seja submetido à análise sob o prisma do direito subjetivo prima facie. O Direito Social prima facie, (somente) à primeira vista, é o que pode ser perceptível de imediato como plausível, mas, para a análise, é obrigatório o intérprete proceder à técnica de ponderação, uma vez que não lhe é permitido decidir sob a lógica do tudo ou nada, como diz J.J. Canotilho.38 Notadamente, o direito social subjetivo prima facie tem natureza principiológica e, portanto, está sujeito a um processo ponderativo, mediante o exame do caso concreto, sempre se fazendo uso do princípio da razoabilidade.
Ponderação é modelo de raciocínio para a aplicação do direito. Conforme afirma Luís Roberto Barroso, é certo sustentar que a ponderação é mais complexa e dinâmica do que a subsunção. Tal afirmativa deve-se ao fato de que, além de verificar as normas aplicáveis ao caso concreto (e daí proceder à técnica de subsunção), sob a análise da ponderação, deve-se prevalecer o princípio ou regra aplicável à luz da razoabilidade. Na ponderação, portanto, a análise será voltada não somente para as normas aplicáveis à espécie, mas também para o conjunto de princípios, sendo utilizados todos os princípios interpretativos constitucionais empregáveis, tais como o princípio da máxima efetividade, do efeito integrador, da unidade, da força normativa, da concordância prática, da interpretação conforme a constituição, da razoabilidade etc, para assim extrair como solução para o caso problema, a interpretação mais apropriada e proporcional ao direito vindicado, observando-se, por óbvio, o núcleo essencial do direito e a universalidade da decisão judicial (suas consequências jurídicas práticas a tornar o efeito de precedente).39
Aplicando a técnica de ponderação dentro do objeto em estudo (direito social prima facie): o direito social em jogo poderia estar de um lado e, de outro, princípios como os da democracia e da separação de poderes, além de eventuais direitos de terceiros que poderiam ser afetados, devendo o intérprete privilegiar a solução mais adequado para o caso concreto.40 Assim, o direito social não seria um direito definitivo – absoluto, intangível ou inafastável – que pudesse ser exigido incondicionalmente, já que a ponderação deveria ser levada a efeito para se respeitar outros direitos e princípios em questão.
Apesar disso, na prática forense, prevalece o núcleo essencial e o mínimo existencial como motivos suficientes à efetivação dos direitos sociais. A contrário senso, quando não se cuidar de núcleo essencial de direito, tem-se um direito subjetivo prima facie.
Por fim, nada impede que os direitos fundamentais sejam invocados conjuntamente para reforçar a plausibilidade dos direitos sociais, tal como tem ocorrido normalmente na prática forense, mormente no que se refere às prestações de saúde (direito à vida e direito à saúde).41
2.3 OS OBSTÁCULOS À CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS
Inicialmente, impõe-se registrar que dois relevantes obstáculos já foram expostos nesta obra, os quais não serão novamente tratados neste tópico pois eles não são mais verdadeiros obstáculos à concretização dos direitos sociais, sendo atualmente argumentos ultrapassados e desprovidos de caráter interpretativo com relação à efetivação de direitos fundamentais. Refere-se à teoria das norma programáticas e à teoria da separação dos poderes. Para análise deles, remete-se o leitor ao item 2.1 do presente capítulo.
Frisa-se que apenas a alegação de fundamentos contrários à concretização dos direitos sociais não os torna automaticamente inaplicáveis, porquanto se deve provar a existência fática do obstáculo. É óbvio que tais obstáculos serão objetos de defesa do Estado. Portanto, e se baseando na máxima “a prova cabe a quem a alega”, incumbe-lhe a produção de provas suficiente para a não efetivação do direito social.42
O primeiro obstáculo diz respeito à reserva do possível fática e jurídica.43 De fato, os direitos sociais têm custos financeiros e econômicos, de modo que a efetivação dos direitos sociais depende também de dinheiro, investimento, o qual deverá ser previsto em lei orçamentária. É exatamente essa dinâmica que constitui o sentido da reserva do possível. A reserva do possível foi adotada pela primeira vez no Brasil em 2004, a partir do excelente despacho do Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello na ADPF 45. Apesar de mencionada ação de controle ter perdido seu objeto, estabeleceu-se, ainda que por um obter dictum, o instituto da reserva do possível no direito pátrio.
A pretexto de dizer o significado da reserva do possível, posição doutrinária considera que, para a efetivação dos direitos sociais, seria necessário, além do uso da razoabilidade, o cumprimento de dois requisitos, um fático e outro jurídico, a saber, respectivamente: i) a disponibilidade de recursos econômicos à satisfação do direito prestacional (requisito fático); e ii) a existência de autorização orçamentária para o Estado incorrer nos respectivos custos (requisito jurídico).44 Em que pese tal posição, é perfeitamente cabível, em caráter excepcional, afastar a aplicação da reserva do possível, pois, além de presenciar-se uma época de neoconstitucionalismo, poderá haver circunstâncias permissivas, a depender do caso concreto. Nesse sentido: SARLET, 2006, passim.
Nesse diapasão, o STF e a doutrina já firmaram entendimento segundo qual o Estado não pode invocar a reserva do possível a pretexto de fraudar, de frustrar ou de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas pela própria Constituição, nem sendo, portanto, capaz de superar a garantia constitucional do mínimo existencial que representa característica essencial para uma vida digna. Confira-se a ementa a seguir, in verbis:
[…] A cláusula da reserva do possível - que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição - encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana. Doutrina. Precedentes. - A noção de “mínimo existencial”, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança. Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, de 1948 (Artigo XXV). [...]45
Como exposto no tópico anterior, o direito minimamente necessário a uma vida digna para o indivíduo não sofre mitigação, ainda que comprovada a inexistência de recursos públicos. É que o Estado Social deve garantir a todos condições básicas, observando-se, assim, o interesso público primário e não o secundário. Não se nega, entrementes, importância ao interesse secundário, faz-se necessário devido e rigoroso controle administrativo econômico-financeiro do Estado Brasileira, o que não tem acontecido até então, conforme demonstrado ao decorrer desta obra.
O princípio da igualdade, o outro obstáculo a ser tratado, é muito utilizado pela Advogacia Geral da República – AGU – em sua defesa perante demandas individuais em que se objetiva tratamento de saúde46. De fato, é uma situação específica que não se verifica em toda controvérsia a respeito de direitos sociais. Tal argumento diz respeito à violação do princípio da igualdade quando existente fila de espera, em hospitais públicos federais, para o tratamento emergencial de saúde, organizada segundo a doença ou o procedimento necessário, sempre levando em conta a gravidade do caso e a necessidade de realização do procedimento de internação e/ou cirurgia.
Nesses casos, sustenta a AGU que, se o magistrado determinar o tratamento de saúde emergencial de determinado indivíduo que buscou o Poder Judiciário para tutelar seu direito à saúde, o autor da demanda estaria sendo privilegiado em detrimento dos outros indivíduos que integram a fila de espera mas não recorreram ao judiciário para pleitear o direito. Parece ser, portanto, mais uma justificativa para a Administração Pública se furtar do cumprimento das obrigações prestacionais, caraterizando um absurdo e demonstrando ser um verdadeiro retrocesso social, uma vez que privilegiaria o interesse público secundário (finanças públicas) do Estado – lato senso – em detrimento do direito à saúde e à vida da pessoa humana, que seriam desconsiderados.
De fato, por se tratar de urgência, significando que o indivíduo não pode esperar 30 (trinta) dias, pois sua vida estaria em risco, o Poder Público precisa estar aparelhado suficientemente para atender às demandas sociais urgentes (e aí se tem a ideia do mínimo existencial), fornecendo o tratamento adequado para o indivíduo necessitado. De outro modo, a prestação do direito social não se coadunaria com o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1, III da CRFB). Aliás, caso haja frustração – dano – em efetivar o adequado direito social, há a possibilidade de responsabilização objetiva e solidária dos entes estatais (art. 37, § 6º c/c art. 196, da CRFB), a depender do caso concreto, ressalvando-se o caso fortuito e a força maior. O mesmo raciocínio vale para os demais direitos prestacionais.