Em primeiro lugar é preciso relembrar que a colaboração premiada, anteriormente conhecida como “delação premiada”, já é prevista em vários diplomas legais nacionais, tais como as leis 8.072/90, 9.269/96, 7.492/86, 8.137/90, 9.613/98, 11.343/06, 9.807/99 e agora também na Lei 12.850/13. Nesse passo, entende-se que o advento da normatização da Lei 12.850/90, além de não revogar os dispositivos anteriores, pode servir de complemento a eles em suas respectivas áreas de aplicação, uma vez que o atual diploma legal normatiza de forma bem mais detalhada os procedimentos para a colaboração. Isso, aliás, era uma lacuna por demais prejudicial à devida aplicação do dito instituto por meio dos diplomas legais que antecederam à atual Lei do Crime Organizado. [1]
O artigo 4º., da Lei 12.850/13 estabelece quem concede e quem propõe a colaboração, os efeitos benéficos ao réu ou investigado colaborador e os resultados investigatórios ou instrutórios que devem advir da efetiva colaboração para que esta surta seus devidos efeitos.
Quem concede as benesses da colaboração é o Juiz e o faz em dois momentos distintos: um primeiro momento em que homologa a proposta e um segundo momento, já na sentença, quando concede ou não os benefícios de acordo com a efetivação ou não dos resultados esperados mediante o acordo de colaboração. Ao Juiz, porém, não é dado, corretamente, o poder de propor de ofício a colaboração. Na verdade ele sequer pode participar das negociações, nos termos do artigo 4º., §6º., da Lei do Crime Organizado. Isso, longe de ser uma limitação imposta ao magistrado, é uma verdadeira proteção que lhe garante o exercício adequado e principalmente imparcial de suas funções jurisdicionais.
Aqueles que podem propor a colaboração premiada são o Promotor e o Delegado de Polícia, segundo a lei. Não é o caso de se pensar na possibilidade de o advogado do querelante ou do próprio querelante ofertar a colaboração, seja porque a lei não os menciona em nenhum momento, seja porque dificilmente, senão jamais, haverá uma investigação sobre crimes de ação penal privada perpetrados de forma organizada. Então, embora o legislador fale em “partes” no “caput” do artigo 4º., da lei de regência, obviamente não está abrangendo o querelante e seu advogado, tanto é que em nenhum momento ulterior o menciona, mas tão somente ao Delegado de Polícia e ao Promotor. Também não há menção ao Assistente da Acusação, o qual inclusive irá atuar somente em Juízo e não na fase investigatória quando, normalmente, a colaboração será mais utilizada. Portanto, também é imune a dúvidas que o Assistente da Acusação não tem poder para propor a colaboração.
Quando o artigo 4º., “caput”, menciona a palavra “partes” surge uma estranheza quanto à possibilidade de manejo da colaboração premiada pelo Delegado de Polícia, o qual, claramente, não é “parte” no Processo Penal. Também causa desconforto a palavra “requerimento”, já que a Autoridade Policial não “requer” e sim “representa”. No entanto, no seguimento da regulamentação do instituto a legislação é bem clara ao conceder ao Delegado de Polícia atuação nessa fase, inclusive de forma autônoma. Deixando de lado as preciosidades terminológicas, entende-se que, sob o ponto de vista pragmático, agiu muito bem o legislador, pois que normalmente é o Delegado de Polícia aquele que se acha mais próximo e ciente das necessidades de informações para a investigação criminal que conduz. O empoderamento do Delegado de Polícia na colaboração premiada desburocratiza o instituto e o torna mais ágil e eficaz, sem qualquer perda para o Estado de Direito Democrático, pois que, seja para a colaboração acertada com o Promotor, seja com o Delegado, a lei estabelece uma série de garantias ao investigado ou réu.
Pacelli discorda desse entendimento, elencando uma série de empecilhos que levariam inclusive à inconstitucionalidade das normas que deferem ao Delegado de Polícia o poder de encetar a colaboração premiada diretamente com o investigado.
Muito embora o digno autor tenha em seus pioneiros comentários à Lei 12.850/13 colaborado para a boa interpretação da legislação em alguns aspectos, é preciso dele discordar nesta questão, apontando as razões dessa discordância pontualmente.
Já inicia mal Pacelli ao afirmar que o artigo 4º., §§ 2º. e 6º., da Lei 12.850/13 conferem indevidamente ao Delegado de Polícia “capacidade postulatória”, mediante “legitimação ativa para firmar acordos de colaboração, a serem homologados pelo Juiz”. [2]
Há aqui uma má leitura ou então uma leitura de má vontade dos dispositivos. Note-se que se há uma má leitura, trata-se a nosso ver de um equívoco que pode ocorrer a qualquer um e inclusive caberá ao Judiciário decidir qual a melhor orientação. Agora, se há uma má vontade, então se opera uma atitude nada louvável no processo argumentativo, a qual deve ser objeto de denúncia, qual seja, a manobra de “dizer que não se sabe aquilo que se sabe”.
É mais do que cristalino que a lei em momento algum conferiu “capacidade postulatória” ao Delegado de Polícia. A colaboração premiada é feita entre o Delegado, o colaborador e seu advogado, nada havendo aí de requerimento em juízo. Nada havendo, portanto, de postulação. Também usa o autor a terminologia “legitimação” do Delegado, induzindo o leitor a um erro (seu próprio erro ou não é questão a pensar). O erro consiste em dar a aparência de que a figura do Delegado de Polícia aparece doravante como uma espécie de “parte processual anômala”, o que de modo algum se verifica em qualquer dos dispositivos. O Ministério Público é o titular da ação penal, o defensor exerce suas funções e o Delegado investiga e tem apenas os poderes necessários para este seu exclusivo mister. Não é erigido em momento algum e não poderia ser, em “parte” processual. Portanto, não é “legitimado” a nada, apenas lhe é conferido um poder – dever como todos os demais que detém na presidência do Inquérito Policial ou outros instrumentos de investigação.
Poderia se acenar com o argumento de que essa suposta “postulação” do Delegado estaria ligada ao fato de que ele submeterá ulteriormente o acordo firmado para homologação judicial. No entanto, a lei é claríssima ao dizer que o Delegado o fará mediante “representação” o que não se confunde com “requerimento”, este sim ligado à capacidade postulatória em juízo. É difícil crer que um autor como Pacelli faça confusão entre essas noções básicas, mas espera-se, na melhor das hipóteses, que sim, já que ao erro estamos todos destinados.
Além disso, em todos os dispositivos a lei é absolutamente clara ao estabelecer que todo o procedimento do Delegado somente será objeto de apreciação após “manifestação do Ministério Público”, o que demonstra cristalinamente, inexistir previsão de “capacidade postulatória” ou qualquer “legitimação processual” do Delegado em Juízo, de modo que a interpretação pretendida não se sustenta nos mais comezinhos conhecimentos terminológicos e práticos do Processo Penal e da Investigação Criminal de acordo com as normas brasileiras.
Em seguida o autor sob comento usa de um recurso retórico de ironia e confusão que somente não é detectado por aqueles que nada conhecem dessa arte. Não se sabe se o uso desses recursos é consciente pelo autor ou se decorre da simples contaminação pelo “politicamente correto” quando, ao escrever, é necessário sempre fazer reverência aos lugares – comuns dos discursos esquerdistas, ainda quando estes impliquem em generalizações e anacronismos injustos e injustificáveis e até mesmo distorções históricas evidentes.
Em suas palavras afirma Pacelli:
“Nada temos e nada poderíamos ter (quem sabe apenas em um passado longínquo e sombrio....) contra a autoridade e contra a importância do Delegado de Polícia na estrutura da investigação” (grifo nosso). [3]
A ironia com a figura do Delegado de Polícia em sua acepção histórica é evidente e não se refere somente ao passado, mas pretende trazer um passado indefinido no discurso, mas subentendido, para o presente, operando uma “confusão” ignominiosa. O elemento barroco de contradição entre opostos é também evidente. Afirma-se nada ter contra o Delegado e seus poderes, mas em seguida afirma-se o reverso. Ora, o autor tem ou não tem alguma coisa contra a figura do Delegado. Se tem, que o diga claramente e não por meio de insinuações indefinidas. A postura do autor é lamentável e decepcionante, não porque este signatário é Delegado de Polícia (aliás, como dizia um ex-ministro, “está Delegado”, não é, é apenas um ser humano), mas porque desmerece toda uma categoria, fosse esta qual fosse, de forma generalizante, injusta, irônica e desleal.
Em primeiro lugar tentar trazer aquilo que se pode inferir que seria (porque não diz claramente o autor) a atuação de alguns Delegados de Polícia durante o período ditatorial para aqueles que hoje exercem os cargos é algo absolutamente irracional. O autor tem o cuidado de tentar apresentar a frase como se fizesse essa distinção que não precisa ultrapassar o senso comum (o bom senso), mas quando faz a afirmação com os parêntesis, produz consciente ou inconscientemente, em seu discurso essa ligação espúria, falsa e inquinada de um erro que se irradia para todo o discurso e para todo aquele que o lê, de modo a influenciar a formação de ideias equivocadas sobre toda uma categoria. O autor poderia ser contra a Ditadura e seus procedimentos, contra tal ou qual agente público (Delegado ou não) que atuou de acordo com esses procedimentos, mas não contra a instituição ou o cargo em geral. A dicção de Pacelli passa a falsa impressão de que somente os Delegados de Polícia da época (hoje nenhum sequer na ativa) foram os responsáveis por desmandos. Então como ficariam as forças armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) seriam instituições condenadas para todo o sempre? Como ficariam os Juízes e Promotores da época em suas omissões e decisões, porque ambas as instituições são tão importantes quanto a Polícia? Como ficariam os advogados? É, porque se houve vários que empreenderam batalhas, houve muitos coniventes ou omissos? Como ficaria a própria sociedade civil que em sua grande maioria se conformou diante do quadro ou aderiu a ele, e uma parte inconformada que partiu para a violência, inclusive contra inocentes, com atos de terrorismo, explosões de bombas, assassinatos covardes, seqüestros, roubos etc.? Então a sociedade civil brasileira também mereceria o escracho eterno dos bem penteados e cheirosos “politicamente corretos” dos dias de hoje? E, principalmente, como ficam os Delegados de Polícia da época que em nada participaram de eventos condenáveis? A generalização é injusta e como geralmente o é, falsa e torpe. É ainda obtusa, assim como toda visão unilateral da história, seja brasileira ou universal. Portanto, pretender deslegitimar uma instituição como a Polícia Judiciária e a figura do Delegado de Polícia, mediante um discurso subterrâneo como esse é altamente condenável e não poderia passar despercebido, sem uma crítica contundente proporcional.
No seguimento o autor sob comento afirma que a atuação do Delegado na colaboração premiada seria “inconstitucional” porque violaria a titularidade da ação penal pelo Ministério Público, sustentando-se nas funções investigatórias da Polícia Judiciária (artigo 144, § 1º., IV e § 4º. c/c artigos 127 e 129, I, CF). [4]
“Data venia”, o autor faz uma conexão que não tem sustentação. Afirma que cabe ao Ministério Público formar a convicção jurídica sobre o fato em apuração devido à sua titularidade da ação penal pública. [5] Isso é verdade, mas a melhor mentira é aquela que esbarra em uma verdade. Ora, é claro que o Ministério Público é o titular da ação penal, é óbvio que cabe a ele formar sua convicção quanto à existência de infração penal e o intentar de uma ação penal (é o que se denomina de “opinio delicti”). Quem poderia, em sã consciência, negar essa obviedade?
Acontece que do porto seguro da obviedade lançam-se voos para o fantástico. É sempre sobre um substrato do real que se constroem as mais belas e as mais assustadoras fantasias.
Uma primeira distinção que deve ser lembrada é a de que o Ministério Público é o titular da ação penal e não do direito de punir. A colaboração premiada levada a efeito pelo Delegado de Polícia não versa em um só momento sobre a ação penal, mas somente sobre questões referentes à pena e sua execução. O Direito de Ação segue intacto nas mãos do Ministério Público, conforme determina a ordem constitucional. O mesmo ocorre quando o Delegado instaura o Inquérito ou indicia alguém ou mesmo quando não indicia. Em qualquer caso, o Ministério Público não está atrelado à convicção jurídica da Autoridade Policial, pode pedir o arquivamento de um inquérito com indiciamento; pode denunciar alguém que não foi indiciado; pode requisitar a instauração de um inquérito que não foi instaurado pelo Delegado. Não há nada a impedir seu livre e legítimo exercício de titular da ação penal. Também nada impede o promotor de discordar de eventual acordo do Delegado em termos de colaboração premiada, mesmo porque a lei obriga sempre a manifestação do Ministério Público. E se esse acordo for homologado à sua revelia pelo Juiz, o que se pensa que dificilmente ocorrerá, poderá valer-se dos instrumentos processuais disponíveis para garantir seu direito, inclusive do Mandado de Segurança e da Correição Parcial. Talvez nem disso precise, apenas necessitará agir normalmente, intentando a ação penal e desconsiderando o acordo com o qual não tem nenhum liame. Negada sua pretensão pelo não recebimento da denúncia, terá a seu dispor o recurso em sentido estrito (artigo 581, I, CPP). Recebida a denúncia, mas concedidos os benefícios do acordo com o qual não concorda à sua revelia pelo Juiz, poderá apelar (artigo 593, I, CPP). Onde há prejuízo à titularidade da ação penal para o Ministério Público quando o Delegado de Polícia, não no processo, mas na única fase em que atua, que é a fase investigatória da persecução penal, propõe um acordo de colaboração premiada? Sinceramente, tendo em vista o início argumentativo lamentavelmente preconceituoso do autor, somente se pode chegar à conclusão de que, como não quer a prática da colaboração premiada pelo Delegado (trata-se de um ato de pura vontade), saí à cata de argumentos, ainda que indevidos, para satisfazer seu desejo. É aquilo que Cordero chama de “primado das hipóteses sobre os fatos”. [6]
Pacelli ainda critica a lei porque ela “elevaria” (grifamos) o Delegado de Polícia à condição de “parte”. Isso porque no artigo 4º., § 10º., dispõe que “as partes podem retratar-se da proposta”. [7]
O tema do uso da palavra “parte” no corpo do artigo 4º., inclusive no seu “caput” e sua impropriedade, já foi comentado acima neste trabalho, inclusive tratando com imparcialidade a questão pela lembrança do querelante e do assistente da acusação, sem focar somente numa única figura eleita para ser deliberadamente deslegitimada. Foi então apontada a irregularidade do uso da expressão “partes” e também genericamente “requerimento”, exatamente porque é verdade que o Delegado de Polícia nem é “parte” no processo e nem faz “requerimentos”, mas “representações”. Trata-se tão somente de uma impropriedade terminológica, nada mais que isso, a qual Pacelli pretende erigir em sustentação para uma suposta, e tão desejada pelo autor, “inconstitucionalidade”.
Se toda impropriedade técnica em termos terminológicos encontrável na legislação brasileira conduzisse a uma inconstitucionalidade, então uma enorme parcela de nossa legislação deveria ser jogada fora, incluindo a própria Constituição, a qual não é imune a isso. [8]
Mas, a análise tendenciosa de Pacelli é logo perceptível pelo vocabulário que utiliza. Ele afirma que a lei “parece elevar” (sic), como se destacou acima, o Delegado de Polícia “à condição de parte”. Note-se o preconceito desbragado: como poderia o Delegado ser “elevado à condição de parte”? Ora, para ser “elevado”, então precisaria a figura do Delegado de Polícia ser considerada algo de subalterno, inferior ou coisa pior numa cabeça preconceituosa no bojo da persecução penal. Mas, isso não passa pela peneira da discriminação injusta e da perversão da realidade. Na verdade, o Delegado de Polícia, o Advogado, o Juiz e o Promotor não são figuras que se sobrepõem em importância ou autoridade na persecução penal. São todos essenciais à consecução da Justiça Criminal, cada um no exercício legítimo de suas funções e sem qualquer espécie de subordinação, inclusive de natureza hierárquico – administrativa, mesmo porque pertencentes a quadros diversos (Executivo, Judiciário, OAB). O Delegado de Polícia não carece ser “elevado” a coisa alguma no processo e isso é afirmado inclusive com base na legislação pertinente que erige suas funções como “de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado” (grifo nosso) (artigo2o., “caput”, da Lei 12.830/13 e artigo 140 da Constituição do Estado de São Paulo).
É de frisar a obsessão de Pacelli com a palavra “partes”, a qual nem sequer tem um significado bem definido no Processo Penal, havendo quem afirme inclusive inexistir essa figura na área criminal, a qual seria típica somente do Processo Civil. É praticamente impossível pensar que o autor desconheça essa celeuma. Por que dar tanta evidência então a uma palavra mal posta e altamente polissêmica ou mesmo totalmente inadequada na seara Processual Penal para muitos? Parece emergir claramente mais uma vez a ereção de uma hipótese e a busca incontida de argumentos para sua sustentação e não o processo reverso, que seria o encontro de argumentos ou provas para a formulação de uma hipótese sólida.
Apenas para não deixar sem a devida abordagem, transcreve-se a lição de Giorgis sobre o tema da suposta “lide” no Processo Penal:
“Dentro do tema enfocado, em que se busca analisar a pertinência da lide na esfera penal, é de se relevar que o vigente CPP, na visão de seus elaboradores, é infenso a tal conceito. Sobreleva notar que o termo ‘lide’ não se faz presente em seu texto processual”. [9]
Para Manzini é somente no Processo Civil que debatem duas “verdadeiras partes”. No processo penal o conceito de parte não se encaixa, apresentando uma “significação imprópria e especial” porque o interesse em jogo é sempre público e indisponível, especialmente nas ações penais públicas. [10] Ademais, esse interesse não é plenamente definido especialmente no lado estatal, pois que o que se pretende é estabelecer a Justiça, seja pela condenação dos culpados, seja pela absolvição dos inocentes (por isso o Promotor pode pedir absolvição, impetrar “Habeas Corpus” etc.). No mesmo diapasão manifestam-se Florian, Figueiredo Dias[11] e Bettiol, argumentando este que “a natureza publicística do processo penal não consente que se possa utilizar um conceito de parte de fundo privatístico”. [12] Doutro ângulo, com fundamento nas lições de Liebman, Grinover sustenta que o processo penal “é um processo de partes” com uma “lide” (“conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida”), por meio da qual atua a jurisdição. [13] Nota-se que a questão é controversa, embora no Brasil, por influência da chamada “Teoria Geral do Processo”, [14] tenda a predominar a aplicabilidade dos conceitos de lide e partes também no Processo Penal. [15] Não obstante, essa não é uma posição fechada, de modo que, como se disse, fazer um “carnaval” em torno da palavra “parte” num texto legal é altamente desproporcional e despropositado. [16] Daí se conclui que essa atuação por parte de alguém só pode revelar ignorância ou tendenciosidade. E tratando-se do autor em destaque, praticamente se pode afastar a primeira hipótese.
No seguimento Pacelli passa a formular uma série de indagações também despropositadas e de respostas óbvias, dando a aparência do intento de criar dúvidas inexistentes para sustentar a tese escolhida.
Pergunta, por exemplo: “o que significaria a manifestação do Ministério Público nos casos em que o acordo de colaboração venha a ser firmado pelo delegado de polícia?? E se o parquet discordar?? Ainda assim poderia o delegado fechar o acordo”? [17]
A obviedade das respostas a estas indagações demonstra a abordagem tendenciosa de quem pretende criar uma “tempestade num copo d’água”.
Quanto ao significado da manifestação do Ministério Público, somente pode ser o mesmo significado que há em todos os demais inúmeros casos em que esta ocorre no andamento das investigações como, por exemplo, em representações por dilação de prazo, por prisão temporária, por buscas e apreensões, por interceptações telefônicas etc. (Se fossem enumerados todos os casos em que a “manifestação do Ministério Público” ocorre no Processo Penal, seja por força de lei, seja por praxe judicial, seriam preenchidas páginas e mais páginas a um grau de exaustão insuportável para o escritor e o leitor mais paciente!). É incompreensível o “susto” de Pacelli! O Ministério Público, como titular da ação penal e na qualidade de fiscal da lei, bem como na atividade de controle externo da atividade policial, se manifesta constantemente na fase de investigação e sua manifestação significa a emissão de sua opinião ou parecer sobre dada questão. Essa opinião ou parecer obviamente não vincula o Juiz, pois é este quem decide no Processo Penal, seja na fase investigatória ou processual. Não obstante, se entender que a decisão judicial não foi correta, sendo, como sempre é, intimado ou cientificado, pode perfeitamente recorrer ou utilizar de ações de impugnação tais como o Mandado de Segurança ou o “Habeas Corpus”. Qual é o grande mistério?
A coisa é tão simples e óbvia, que ao responder à primeira pergunta primária formulada pelo autor, a segunda já foi de roldão esclarecida. E se o Promotor discordar? Ora, ele adota a medida pertinente para que a decisão judicial seja invalidada. É tudo tão claro e evidente que a escrita desse texto começa a causar certo desconforto por passar a sensação de estar repetindo o óbvio à exaustão.
Indaga ainda Pacelli se o Delegado de Polícia poderia fechar o acordo, mesmo ante a discordância do Ministério Público. Novamente a resposta evidente: se o Juiz homologar o acordo sim. Mas, aqui se impõe uma advertência. Aí sim cabe uma pergunta pertinente: Deve o Juiz homologar um acordo do Delegado não corroborado pelo parecer Ministerial? A resposta é não. Mas, viria o autor e indagaria: E se isso acontecer? Já foi respondido: medidas pertinentes, recurso ou ações de impugnação. Fato é que o acordo de colaboração premiada não deve ser homologado pelo Juiz sem a concordância do Ministério Público. Por uma razão simples. Ele, como titular da ação penal, futuramente, não irá considerar o acordo feito, o que o torna, no mínimo, inútil. Inclusive, o próprio colaborador, juntamente com seu advogado, certamente desistiria de um acordo sabendo que o Ministério Público o refuta. Isso é a coisa mais evidente do mundo!
Diversamente do que parece pensar Pacelli, nenhuma lei é capaz de afastar a importância de órgãos como o Ministério Público, a Polícia Judiciária (e nela a figura do Delegado) e o Judiciário. Esses órgãos existem porque são realmente essenciais, assim como a Advocacia. A lei apenas reconhece um fato. O autor não precisa “temer” uma diminuição da relevância do “Parquet” na persecução criminal porque ele é grande por si mesmo, por suas funções e não porque esta ou aquela lei o diga. Toda lei terá de reconhecer isso porque se trata de um fato. O mesmo se pode dizer quanto à pretensão frustrada do autor sob comento de diminuir a figura do Delegado de Polícia e da Polícia Judiciária. Estes são importantes porque o são, no Brasil e no mundo em forma de instituições similares, não porque uma lei o faça de forma artificial, muito menos porque qualquer teórico o pretenda.
Apresenta ainda Pacelli suposta dificuldade de compreensão do dispositivo legal que menciona a aplicação “no que couber”, do artigo 28, CPP (artigo 4º., § 2º., da Lei 12.850/13), que trata do chamado “Princípio da Devolução”, quando o Juiz discorda do pedido de arquivamento feito pelo Ministério Público e remete o caso à apreciação do Procurador Geral, no exercício de “função anômala” de garantia da obrigatoriedade da ação penal pública. [18] O autor começa a criar em torno desse dispositivo uma série de dúvidas descabidas quando a interpretação é absolutamente tranquila.
Chega a formular os seguintes questionamentos no mínimo inusitados:
“O que afinal quereria dizer tal remissão? (referindo-se à remissão ao artigo 28, CPP no artigo 4º., § 2º., da Lei 12.850/13). Acaso seria que, na hipótese de discordância do Ministério Público com o acordo proposto pelo delegado de polícia, os autos deveriam ser submetidos ao controle de revisão pela própria instituição ministerial? Se essa foi a intenção legislativa, seria ainda mais bizarra a solução, a estabelecer um conflito de atribuições entre o parquet e a autoridade policial” (interpolação nossa). [19]
As perguntas são novamente um “carnaval” em torno de nonada. Logo de início a hipótese levantada por Pacelli de que poderia essa remissão ao artigo 28, CPP referir-se à discordância entre Polícia e Ministério Público quanto ao acordo é de ser liminarmente descartada. Isso porque basta ler o dispositivo para perceber com cristalinidade que nada tem a ver com isso. Para melhor visualização o transcrevo:
“Artigo 4º., § 2º. – Considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos de inquérito policial, com manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do Decreto – Lei n. 3689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal)”.
O dispositivo supra não trata da questão da oferta de proposta pelo Delegado e discordância do Ministério Público. Claro que tem razão o autor ao dizer que se fosse esse o caso, de se remeter os autos à Procuradoria para solucionar uma discordância entre o Delegado e o Promotor, se trataria de uma verdadeira teratologia processual. Mas isso é tão óbvio que não mereceria sequer ser aventado. Já se mencionou a solução para esses casos: a)O ideal: o Juiz, em caso de discordância do Ministério Público deve indeferir a colaboração premiada pleiteada pela Autoridade Policial, a qual não tem recurso, mesmo porque não tem “jus postulandi” e “representa” não “requer”. O máximo que o Delegado pode fazer é alinhar-se com o Ministério Público e tentar refazer alguma negociação. b)Se o Juiz não atuar com esse bom senso, então caberá ao Ministério Público usar do Mandado de Segurança ou da Correição Parcial ou ainda simplesmente desprezar o acordo e seguir em suas funções com os instrumentos do Recurso em Sentido Estrito em caso de rejeição de sua denúncia e da apelação em casos em que o Juiz dê concreção ao acordo firmado em sua sentença. Recorrer ao artigo 28, CPP seria um absurdo mesmo.
Entretanto, não se compreende o que faz com que um jurista do nível do autor em destaque cheque a formular uma dúvida como essa! A única explicação é uma sanha que cega no intento de deslegitimar a atuação do Delegado de Polícia na colaboração premiada a qualquer custo, ainda que seja ao custo de passar-se por néscio (passar-se porque obviamente não o é).
Afinal o dispositivo trata de caso diverso claramente. Fala da questão do requerimento (pelo MP) ou representação (pelo Del.Pol.) por perdão judicial do colaborador que houver atuado com grande relevância para o deslinde de dado caso, inclusive não havendo o acordo prévio de colaboração. Então é evidente que não se trata do momento de oferta da proposta e homologação pelo Juiz! Ora, se esse requerimento ou representação pode se dar mesmo sem o acordo anterior....!!!!
Novamente é preciso dizer o óbvio (e está ficando cada vez mais cansativo para este autor e, certamente para o leitor, mas é inevitável). A lei é clara ao dizer que o Delegado de Polícia poderá fazer essa “representação” somente na fase do Inquérito Policial e com a necessária “manifestação do Ministério Público”. É evidente que há dois casos no dispositivo, primeiro este do Delegado: ele representa, o Promotor concorda e Juiz defere, tudo bem. Ele representa, o Promotor discorda, o Juiz não defere e o Delegado nada pode fazer, tudo bem também. E o artigo 28, CPP? Obviamente é incabível! Finalmente: o Delegado representa, o Promotor discorda e Juiz, mesmo assim, defere. Vamos aplicar o “Princípio da Devolução”? É claro que não!!! Caberá ao Promotor usar dos meios cabíveis para se contrapor à decisão judicial com seu poder postulatório, o qual o Delegado não tem. Então poderá impetrar Mandado de Segurança, Correição Parcial, desprezar a decisão judicial e denunciar o implicado e então, havendo rejeição da denúncia, ingressar com Recurso em Sentido Estrito ou, ao final apelar, inclusive alegando nulidade do processo desde o seu início por causa da atuação judicial indevida.
Ah! Mas, não foi realmente respondida à questão formulada por Pacelli até o momento. Para que serve então a remissão ao artigo 28, CPP? É verdade. É que a resposta é tão evidente que dá preguiça responder. Vamos lá: o artigo 28, CPP é apontado para aplicação naquilo que “couber”, ou seja, “mutatis mutandis”, para o caso de a proposta de perdão ser feita pelo Ministério Público diretamente. É claro que é para esse único caso! Esse é o segundo caso de que trata o dispositivo. Esse é o único que tem alguma semelhança com a situação que se opera no arquivamento do Inquérito Policial. O “Parquet” requer o arquivamento e o Juiz não concorda, então aplica o Princípio da Devolução previsto no artigo 28, CPP. Agora, o Promotor pugna pelo Perdão Judicial de um réu ou indiciado, se o Juiz concorda, tudo bem. Se discorda não poderia simplesmente indeferir o pedido do Promotor, já que esse órgão é o titular da ação penal pública e não o Judiciário. Então, discordando e equivalendo esse pedido de perdão judicial por parte do Ministério Público a um pedido de arquivamento, deverá o Juiz remeter os autos à Procuradoria. Concordando o Procurador com o Promotor, devolverá os autos com sua manifestação fundamentada e o Juiz será obrigado a conceder o perdão requerido. Discordando o Procurador do Promotor, deverá então substituí-lo nesse processo, inclusive denunciando o suposto colaborador ou então designar novo integrante do Ministério Público para atuar em seu nome, visando sempre não violar a convicção jurídica do primeiro promotor. Daí tudo segue normalmente. Qual é o mistério???? Só pode haver mistério artificialmente criado para fazer parecer a existência de um caos jurídico inexistente com o único intuito de deslegitimar a atuação do Delegado de Polícia na colaboração premiada. Se a explicação não é essa, então houve realmente uma terrível deficiência interpretativa por parte do autor, o que é muito incomum.
E prossegue Pacelli com outras alegações infundadas. Senão vejamos:
“Assim temos por absolutamente inconstitucional a instituição de capacidade postulatória e de legitimação ativa do delegado de polícia para encerrar qualquer modalidade de persecução penal, e, menos ainda, para dar ensejo à redução ou substituição de pena e à extinção da punibilidade pelo cumprimento do acordo de colaboração”. [20]
Não contente prossegue afirmando que a lei supostamente conferiria ao Delegado a capacidade de: a)Extinguir a persecução penal; b)Viabilizar a redução ou substituição de pena; c)Promover a extinção de punibilidade; d)Impedir o regular exercício da ação penal pública pelo Ministério Público. [21]
Ou a lei não foi lida ou tudo isso é inexplicável. Nem o Delegado de Polícia nem o Promotor de Justiça têm esses poderes alardeados pelo autor em destaque. Por favor, um apelo à racionalidade! A lei defere ao Delegado, assim como ao Promotor a capacidade de respectivamente “representar” ou “requerer” pela colaboração e suas consequências. Mas, jamais são eles quem determinam tanto a homologação como a execução final do acordo. Esse agente é o Juiz e somente ele. Dizer que o Delegado vai extinguir a punibilidade de alguém, vai diminuir penas, substituir penas, impossibilitar o Promotor de exercer a ação penal é de uma fantasia tão incrível à qual este signatário pensa que não chegaria nem mesmo sob o efeito de drogas alucinógenas muito potentes! No mais, já se denunciou a impropriedade e manipulação da linguagem em que consiste o uso de palavras técnicas com aplicação restrita tais como “capacidade postulatória”, “legitimação ativa” e “parte” referindo-se ao Delegado de Polícia.
Há, como se vê, uma série de objeções infundadas com respeito à atuação do Delegado de Polícia na colaboração premiada, conforme disposto pela Lei 12.850/13, inclusive pugnando-se por sua inconstitucionalidade neste aspecto. No entanto, os argumentos não convencem.
REFERÊNCIAS:
BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais? Trad. José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra: Atlântida, 1977.
BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva,2012.
CINTRA, Antonio Carlos Araujo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 8ª. ed. São Paulo: RT, 1991.
CORDERO, Franco. Guida alla Procedura Penale. Torino: UTET, 1986.
GIORGIS, José Carlos Teixeira. A lide como categoria comum do processo. Porto Alegre: Letras Jurídicas, 1991.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades Públicas e Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1976.
PACELLI, Eugenio. Atualização do Curso de Processo Penal – Comentários ao CPP – Lei 12.850/13. Disponível em www.eugeniopacelli.com.br, acesso em 16.08.2013.
Notas
[1] Pela possibilidade de complementação dos demais casos legalmente previstos de colaboração premiada pelos institutos da Lei 12.850/13, também se manifesta positivamente o autor Eugenio Pacelli. PACELLI, Eugenio. Atualização do Curso de Processo Penal – Comentários ao CPP – Lei 12.850/13. Disponível em www.eugeniopacelli.com.br, acesso em 16.08.2013.
[2] Op. Cit..
[3] Op. Cit.
[4] Op. Cit..
[5] Op. Cit.
[6] CORDERO, Franco. Guida alla Procedura Penale. Torino: UTET, 1986, p. 51.
[7] PACELLI, Eugenio. Op. Cit.
[8] É bom lembrar que há quem advogue a possibilidade de inconstitucionalidade de normas constitucionais. Cf. BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais? Trad. José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra: Atlântida, 1977, “passim”.
[9] GIORGIS, José Carlos Teixeira. A lide como categoria comum do processo. Porto Alegre: Letras Jurídicas, 1991, p. 61.
[10] Apud, Op. Cit., p. 68.
[11] Op. Cit., p. 68 – 70.
[12] Apud, Op. Cit., p. 71.
[13] GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades Públicas e Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 28.
[14] CINTRA, Antonio Carlos Araujo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 8ª. ed. São Paulo: RT, 1991, “passim”.
[15] Neste sentido: GIORGIS, José Carlos Teixeira. Op. Cit., p. 97.
[16] Observe-se que em seu profundo estudo, Giorgis, na última conclusão, aduz que entende incabível no Processo Penal a adoção do conceito de lide e partes, especialmente considerando o ideal da imparcialidade do Ministério Público. Op. Cit., p. 118.
[17] PACELLI, Eugenio. Op. Cit.
[18] Cf. BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva,2012, p.178 – 179.
[19] PACELLI, Eugenio. Op. Cit.
[20] Op. Cit.
[21] Op. Cit.