“Longe de ser “estática”, a vida do direito revela um contínuo “vir a ser”. Forças em conflito, que lutam por interesses opostos, dão origem a normas e situações jurídicas, que podem representar a dominação de alguns ou a conquista de muitos”
André Franco Montoro
Estudos de Filosofia do Direito
A emenda 56 determina a inclusão de um livro destinado ao Direito Marítimo no novo Código Comercial, objeto do PL 1.572/2011, de autoria do Deputado Federal Vicente Candido.
O projeto de lei, como originalmente proposto, é bom e merece especial atenção. O problema reside nas suas emendas, especialmente a 56, porquanto casuística e inconstitucional.
Ao conteúdo da emenda 56 cabe como luva à mão o ditado popular que diz: “a emenda saiu pior do que o soneto”.
Isso porque, além de desnecessária, a emenda 56 é ruim, cheia de vícios de constitucionalidade e prejudicial aos interesses econômicos dos exportadores e importadores brasileiros.
Falar-se, hoje, num livro de Direito Marítimo dentro do Código Comercial é um absurdo jurídico, um retrocesso enorme e uma agressão ao sistema legal brasileiro, absolutamente hábil para disciplinar todas as questões maritimistas, à luz de interesses poliédricos e benéficos ao Brasil como um todo.
A emenda 56, repito, é casuísta, repleta de graves vícios jurídicos, é manifestamente nociva ao Brasil.
Referida emenda foi articulada por advogados ligados aos armadores e transportadores marítimos brasileiros e por tal razão externa apenas os interesses desses grupos, mesmo que em detrimento de toda a sociedade brasileira.
Esse mesmo grupo é composto por profissionais ilustres, renomados e inegavelmente qualificados, homens e mulheres honrados, mas o respeito que tenho ao grupo, aos seus componentes, não me inibe à dura crítica, absolutamente necessária e pertinente, ao trabalho desenvolvido quando da elaboração da emenda 56, razão pela qual desde logo me desculpo pelo tom cáustico e combativo deste trabalho.
Não se trata de uma emenda verdadeiramente voltada ao equilíbrio de interesses de todos os atores do Direito Marítimo, mas de algo que traduz apenas os interesses dos armadores, fretadores e afretadores, transportadores marítimos e seus respectivos clubes de proteções e indenizações.
Em verdade, ao invés de um livro de Direito Marítimo, os elaboradores da emenda deveriam chamá-lo de livro de defesa e proteção dos transportadores marítimos de cargas.
Não à toa, a emenda é um grande “topói” jurídico, um lugar-comum, com erros graves de técnica legislativa e conteúdo manifestamente inconstitucional.
Algumas das regras contidas na emenda tangenciam a fronteira da ordem moral, tamanho o despautério nelas presente.
Diante disso, digo com absoluta segurança: a emenda 56 contém regras que tradicionalmente são consideradas ilegais, abusivas e, com todo e máximo respeito, até mesmo imorais, segundo a doutrina especializada e a jurisprudência brasileiras.
A emenda, se aprovada como se encontra, causará o caos jurídico e danos irreparáveis ao equilíbrio da economia brasileira, na medida em que foi criada apenas para atender aos interesses dos grupos de armadores e transportadores marítimos estrangeiros (não se pode deslembrar disso jamais).
Repito com necessária insistência que o grupo elaborador da norma transmitiu para a lei em gestação o rol de cláusulas abusivas presentes nos contratos marítimos e que nunca foi aceito, nem mesmo parcialmente, pelo Direito brasileiro, sejam por suas fontes imediatas, as leis, sejam por suas fontes mediatas, a doutrina e a jurisprudência.
Nunca é demais lembrar que o Brasil, infelizmente, é um país sem grandes empresas no setor maritimista, razão pela qual o que vale num país estrangeiro, com grandes armadores, não pode valer para o Brasil, um país que no micro-universo do transporte marítimo internacional de cargas tem seus interesses praticamente confinados ao setor “cargo”, ou seja, aos importadores e exportadores de cargas.
Daí a certeza de que a emenda 56 será, convolada em lei, muito prejudicial à balança comercial brasileira, atingindo tanto o setor privado como o público.
Se o Congresso Nacional aprovar o PL 1.572/2001 com a emenda 56, patrocinará o maior golpe contra os empresários e trabalhadores brasileiros, até mesmo contra o erário, além de instituir um conjunto de regras legais incongruentes ao sistema jurídico, o que importará batalhas intermináveis, inclusive no âmbito constitucional.
Este modesto trabalho destina-se a apontar alguns, apenas alguns, dos absurdos dispositivos da emenda 56, fazendo-o com verticalidade e com o objetivo de gritar ao país todo o que se pretende fazer em seu vergonhoso prejuízo.
Primeiramente, entendo que não há a necessidade de mais um diploma legal para disciplinar aquilo que o próprio Código Comercial, a parte ainda em vigor, disciplina. Ora, longe de ser vetusto, como seus inimigos o classificam, o Código Comercial em vigor é um ótimo diploma legal, sobremodo atualizado pela rica jurisprudência e que mostra o valor de uma norma antiga e sedimentada no seio social.
Além disso, as questões mais importantes tratadas pela emenda 56 ao PL 1.572/2011 já se encontram contempladas pelo Código Civil de 2002 e por leis especiais e extravagantes, donde se infere sua absoluta desnecessidade, senão à do PL integralmente, ao menos da emenda 56.
O problema do Brasil, com o perdão do lugar-comum, não é de leis, mas de aplicação das leis existentes.
O país, aliás, tem excesso de leis e esse mesmo excesso gera muitas confusões e faz o Poder Judiciário gastar muita tinta à toa.
Por mais que a sistematização seja positiva, a verdade é que ela não pode ser exercida a qualquer preço e sem a devida atenção ao ordenamento jurídico enquanto um sistema macro e mais importante.
Desprezar o pragmatismo é um costume lamentável da sociedade brasileira e, em especial, daqueles que trabalham com o Direito, sempre sequiosos de glamourizar com ares científicos uma atividade que é puramente técnica.
Mas, mesmo entendendo que não há a necessidade de um novo Código Comercial, posso aceitar sua existência nos moldes estabelecidos pelo PL original, do deputado Vicente Cândido, sem a presença de algumas emendas absolutamente direcionadas à defesa de interesses muito específicos e contrários ao bem geral de toda a sociedade brasileira. Destaco entre elas, evidentemente, a infeliz e lamentável emenda 56, manifestamente inconstitucional e eivada de elementos que ferem não só a ordem legal, mas também a moral.
Cedo, portanto, aos defensores da necessidade de um novo Código Comercial e aceito o PL original sem maiores constrangimentos; todavia, o que não posso aceitar é o golpe à Constituição Federal, ao Direito Civil e, insisto, à ordem moral que será perpetrado pela emenda 56. E esse golpe produzirá reflexos desastrosos na economia brasileira, prejudicando empresários e trabalhadores de uma forma como nunca antes uma lei de natureza comercial prejudicou.
A emenda foi criada, como afirmei antes e ora repito, para atender interesses específicos, para não dizer nebulosos, dos armadores, transportadores marítimos e clubes de proteção e indenização, em detrimento dos empresários e trabalhadores brasileiros. O desenho casuístico da lei é tamanho que além de passar por cima do sistema legal como um todo, começando pela Constituição, ela esvazia parcialmente a soberania do Poder Judiciário, resumindo-o a mero despachante da vontade pretensamente soberana dos armadores e seus parceiros empresariais estrangeiros.
De antemão vale repetir que no cenário do Direito Marítimo o Brasil é um país “cargo”, ou seja, um país com interesses imediatos apenas nas cargas transportadas, exportadas e importadas, não um país de armadores.
Diante disso, toda e qualquer norma que tenha por escopo defender indevida e abusivamente os interesses dos armadores, sem o equilíbrio no jogo dos legítimos interesses, é uma norma condenável por razões lógicas, na medida em que francamente prejudicial ao país.
Com efeito, os artífices da emenda fizeram uso de estratégias eivadas de certa malícia para enganar a sociedade brasileira e obter sua aprovação sem a devida atenção para os pontos verdadeiramente importantes, porque estrategicamente escamoteados em meio a outros.
A emenda é uma espécie de rei Herodes vestido com o manto de são João Batista.
O que pretendo dizer com isso? Simples, a emenda possui, de fato, algumas regras inovadoras e interessantes, ao tempo em que faz ressalvas importantes a questões fundamentais como as que tratam da proteção ao meio-ambiente, mas tudo isso com segundas intenções, ou seja: fazer-se passar como uma emenda arejada ao Direito contemporâneo, defensora de temas importantes, quando, em verdade, encobre outros temas ainda mais relevantes e com impactos mais violentos na vida cotidiana dos brasileiros.
Certa vez rotulei as Regras de Roterdã, a mais nova Convenção internacional maritimista, da qual o Brasil felizmente não é um dos signatários, como sendo o lobo em pele de cordeiro. Agora, uso a mesma expressão e com mais razão para a emenda 56.
Vejamos os motivos pelos quais exponho isso:
O art. 4º, por exemplo, diz que o transporte de passageiros será regulado pela Lei Civil e pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor na relação entre passageiros e transportador.
Absolutamente nada justifica o art. 4º, porque o CDC não precisa de autorização para viger ou não em relação a uma dada situação fática a reclamar agasalho jurídico.
Assim, o referido artigo é desnecessário relativamente às relações entre passageiros e transportadores marítimos, pois estas sempre serão tratadas pelo CDC, a despeito de regra permissiva em qualquer fonte legal.
Por outro lado, não pode uma lei ordinária inibir a validade, a eficácia e a incidência do CDC, um diploma legal intimamente ligado à CF.
Tendo-se isso em conta, as relações entre embarcadores, consignatários de cargas, seguradores sub-rogados e os transportadores marítimos serão ou não disciplinadas pelo CDC conforme a inteligência do Poder Judiciário à luz do caso concreto, não por vedação indevida de uma simples lei ordinária.
Ora, a emenda pretende ser maior que a CF e o CDC, um código principiológico, ao acutilar sua amplitude e eficácia.
Não pode a lei geral ferir a lei especial.
E o CDC é especial em relação ao PL e sua assustadora emenda 56.
Se o PL aceita que o CDC seja aplicado na relação entre passageiros e transportador, significa dizer que ele reconhece que o transportador exerce modalidade de fornecimento de serviço ao transportar pessoas.
E, em sendo assim, qual a diferença no transporte de coisas (cargas)?
Acaso não é o transporte de coisas um serviço também?
No que tange ao sítio do ser, existe alguma diferença entre transportar pessoas e transportar coisas, cargas?
Peço perdão pelo uso repetido e exaustivo do termo, mas outro melhor não há do que casuísmo para adjetivar o espírito da emenda 56, começando pelo artigo em destaque.
O transporte de carga é modalidade de serviço e o é por excelência, razão pela qual pode e deve ser albergado pelo CDC, sempre prejuízo à aplicação de outras fontes legais.
Um serviço que começa no momento em que o transportador recebe a coisa para o transporte e termina no instante em que a entrega, no mesmo estado recebido, a quem de direito e no lugar de destino.
A razão ôntica é exatamente a do transporte de pessoas, de tal forma que se um é regulado pelo CDC, o outro também o é, como, aliás, grande parte da jurisprudência expressamente admite.
Nesse sentido, o magistério do professor Carlos Roberto Gonçalves (Responsabilidade civil. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 299/300):
“O Código de Defesa do Consumidor, em vigor desde 11 de março de 1991, trouxe profundas modificações à ordem jurídica nacional, estabelecendo um conjunto sistemático de normas e naturezas diversificadas, mas ligadas entre si por terem como suporte uma relação jurídica básica, caracterizada como uma relação de consumo.
Com efeito, a nova legislação repercutiu profundamente nas diversas áreas do Direito, inovando em aspectos de direito penal, administrativo, comercial, processual civil e civil em especial.
(...)
(...) O Código de Defesa do Consumidor retira da legislação civil (bem como de outras áreas do direito) a regulamentação das atividades humanas relacionadas com o consumo, criando uma série de princípios e regras em que se sobressai não a igualdade formal, mas a vulnerabilidade do consumidor, que deve ser protegido.
É fora de dúvida que o fornecimento de transportes em geral é atividade abrangida pelo Código de Defesa do Consumidor, por constituir modalidade de prestação de serviço. Aplica-se aos contratos de transporte em geral, desde que não contrarie as regras que disciplinam essa espécie de Contrato no Código Civil (CC, art. 732).
No tocante à responsabilidade civil do transportador, dois aspectos merecem destaque: 1ª) a criação de uma responsabilidade objetiva semelhante à do Decreto n. 2.681, de 1912; 2ª) a inexistência de limitação para a indenização, não havendo mais lugar para a chamada indenização tarifada, prevista para os casos de acidentes com aeronaves.”
Inegável, pois, a aplicação das regras consumeristas para tratar todas as questões envolvendo transportes marítimos de cargas.
Não interessa, pois, o destino final da coisa transportada, se ela será ou não inserida na cadeia de produção do seu consignatário ou efetivamente usufruída; o que interessa é o transporte em si, o serviço, que tem como destinatário final e consumidor o consignatário da carga.
Esse mesmo e seguro entendimento eu defendi no meu livro Prática de Direito Marítimo e tem sido sistematicamente agasalhado pelo Poder Judiciário. Mais de uma vez, o livro foi citado em Acórdãos, sendo o último, para invulgar alegria, num caso sob a relatoria da Ilustre Desembargadora paulista Maria Lúcia Pizzotti, no AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 0122507-12.2013.8.26.0000 - VOTO 6855:
Quanto à legislação aplicável, inexorável que se trata de legislação de consumo.
Ensina Paulo Henrique Cremoneze:
“O selo consumerista se dá porque o contrato de transporte enseja,sem dúvida, relação de consumo. Tem-se, de um lado, o fornecedor de serviços, que é o transportador, e, de outro, o consumidor, que é o destinatário do bem confiado para transporte. O destinatário (ou quem legalmente lhe fizer às vezes) não é, necessariamente, o consumidor final do bem transportado propriamente dito, mas, em verdade, do serviço de transporte.” (Prática de Direito Marítimo O Contrato de Transporte Marítimo e a Responsabilidade Civil do Transportador 2ª ed./2012 Ed. Quartier Latin pág.137).
O CDC também se revela qualificado para disciplinar as relações entre consignatários de cargas e os transportadores marítimos porque os serviços prestados são os liames fáticos que as tipificam como sendo típicas relações de consumo. Os consignatários (ou quem legalmente se lhes fizer às vezes) são consumidores dos serviços, destinatários finais dos serviços, não necessariamente dos bens operados por esses mesmos serviços consumeristas.
Vê-se, então, certa má-fé presente no artigo 4º, pois tenta impor uma vontade que não é a voz corrente na doutrina e na jurisprudência brasileiras, inibindo a possível aplicação de um sistema legal especial e principiológico.
Excluir o transporte de carga é errado e inconstitucional, na medida em que o CDC é um código de origem constitucional, nascido por meio de comando expresso do texto constitucional e considerado mais que especial por quase todos os grandes doutrinadores brasileiros.
A medida certamente se presta a artifício a fim de ser mais facilmente aprovada e emenda 56 ao PL, contaminando-o visceralmente.
Ora, se a emenda contivesse alguma regra ferindo os direitos consumeristas dos passageiros, pessoas naturais, esta saltaria aos olhos e imediatamente chamaria a atenção dos legisladores. Os deputados federais e senadores não são obrigados a conhecer as particularidades do universo dos transportes marítimos de cargas, mas certamente o são quanto aos transportes de pessoas, assunto sempre traumático num país subdesenvolvido como o Brasil.
Ao ratificar, de forma absolutamente desnecessária, que a relação entre passageiros e transportador marítimo não são tratadas pelo livro intitulado Direito Marítimo e que estas são apenas da alça de mira do CDC, o grupo elaborador da emenda 56 literalmente construiu um ardil para não atrair a atenção dos legisladores em geral, tampouco da sociedade, a fim de impor sua vontade contra os legítimos interesses e direitos de todos os brasileiros.
Os armadores sabem que os problemas com pessoas naturais, passageiros, não são frequentes, mas pontuais e pouco expressivos economicamente, logo eles podem ser regulados por instrumentos jurídicos mais rigorosos, uma vez que mínimos prejuízos sofrerão, eles, os transportadores marítimos, em termos práticos.
Mas, os problemas com as cargas são diários e envolvem milhões e milhões de euros, sendo que o sistema jurídico brasileiro também é rigoroso na apuração de suas respectivas responsabilidades. O transporte de cargas, não o de pessoas, é o foco derradeiro do grupo elaborador da emenda 56 e é sobre ele que o grupo legislou em descarado benefício.
Por isso, maliciosamente (perdoem-me a palavra, mas não encontro outra melhor para o caso), os integrantes do grupo elaborador da emenda 56 deixaram de lado o transporte de pessoas, concentrando esforços no que mesmo lhes interessava e interessa: o transporte de coisas! E o fizeram ainda que ao arrepio da boa técnica jurídica, da consolidada tradição jurisprudencial e do bom-senso.
Outro exemplo de malícia (perdoem-me, por favor, a aparente deselegância do termo) diz respeito à questão do dano e da responsabilidade ambientais. A emenda aceita a inconstitucional limitação de responsabilidade para quase tudo, menos para os danos ambientais.
Por quê? Altruísmo dos engenheiros da emenda?
Claro que não!
Eles sabem que a sociedade civil se encontra razoavelmente organizada, por grupos radicais e combativos em defesa dos temas ambientais.
Uma limitação em tal sentido eclipsaria a chance de a emenda ser aprovada e os olhos da sociedade seriam abertos ao golpe legislativo.
Por mais que os armadores temam as responsabilidades derivadas dos danos ambientais, eles sabem que eles são menos comuns que os danos materiais às cargas e, por isso mesmo, abriram mão da questão, a fim de se mostrarem pseudamente conciliadores, quando o foco na verdade é a busca da não responsabilidade pelos danos derivados de suas atividades empresariais.
Os armadores, no que tange aos riscos da atividade maritimista, deformam a verdade e a moral, buscando todos os bônus e livrando-se dos ônus.
Muitas são as questões importantes e que viciam completamente a emenda 56.
Com o devido tempo, tratarei de todas, porque resolvi abraçar a causa em defesa da sociedade brasileira.
Mas, neste trabalho, concentro-me em duas: 1) a ofensa a primazia da Justiça comum, com a inconstitucional primazia de um órgão meramente administrativo se sobrepondo ao Poder Judiciário, mediante agressões aos direitos e garantias constitucionais fundamentais e 2) a ofensa ao princípio constitucional da indenização ampla e integral com a imposição de imorais e ilegais normas de limitação da responsabilidade.
Pois bem:
Da imposição do Tribunal Marítimo sobre o Poder Judiciário e a inconstitucional supressão da atuação jurisdicional:
A emenda 56 apresenta no seu art. 5º um rol de supostos princípios que não se ajustam aos princípios legais e, principalmente, os constitucionais em vigor.
Muito pelo contrário, os princípios (em verdade, não são princípios, mas diretrizes em favor dos transportadores e em detrimento da sociedade) do art. 5º ferem os princípios gerais do Direito e, em especial, os do art. 5º da CF, que trata dos princípios e garantias fundamentais.
Ainda que os referidos princípios, os da emenda, fossem válidos e eficazes, jamais poderiam se colocar acima, como pretensamente se colocaram e colocam, dos princípios gerais de direito e, em especial, dos constitucionais e fundamentais (os ditos princípios da emenda 56 desprezam as garantias ligadas ao Poder Judiciário e ao conceito de indenização ampla e integral).
O direito alemão ensina sobre as regras do “recht übber recht”, ou seja, regras de direito que tratam do Direito. São mais do que regras de solução de conflito aparente de normas, mas regras de hermenêutica e de aplicação do direito.
Por meio de tais regras, observa-se, sem muito esforço, o casuísmo constrangedor da emenda 56 que elege o princípio da apuração formal como sendo mais importante do que o princípio e garantia constitucional do acesso à jurisdição.
Com efeito, trocando em miúdos, o art. 8º da emenda coloca o Tribunal Marítimo acima do Poder Judiciário e impede ou mitiga o amplo acesso à jurisdição.
O que a emenda tenta fazer é transformar o azul em amarelo e o quadrado em círculo, pois eleva um mero meio de prova, como é o conteúdo da decisão do tribunal marítimo à condição de ato administrativo da Administração direta, de tal forma que o Poder Judiciário só poderá exercer a revisão dos aspectos legais, não dos meritórios (o que em si é um absurdo jurídico sem precedentes).
O § 1º, por exemplo, proíbe a revisão da decisão (que no fundo não passa de um mero parecer técnico) do tribunal marítimo, órgão administrativo não vinculado à Administração direta e com competência limitada e restrita, por parte do Poder Judiciário.
Isso é um absurdo e fere, de um só rodo, muitas garantias constitucionais fundamentais, começando pela a que trata do amplo acesso à jurisdição, passando pelas ligadas ao conceito de devido processo legal, especialmente o princípio da livre convicção do magistrado, que é, em primeira e última análise, um mecanismo de calibragem do conceito de Estado Democrático de Direito.
O casuísmo em favor dos armadores é tão visceral e notório, tão vexatório, que a emenda cria uma causa suspensiva do processo judicial a fim de obrigar o jurisdicionado e o Poder Judiciário a aguardarem o fim de um processo em trâmite do Tribunal Marítimo.
A coisa é tão despudoradamente escancarada que no § 5º da emenda consta ainda uma causa ofensiva ao princípio da igualdade, ligada à questão dos juros moratórios.
Isso porque a emenda dispõe que os juros moratórios de um processo judicial que for obrigado a aguardar a decisão do tal tribunal marítimo serão na razão de metade dos juros moratórios para todo e qualquer outro processo, durante o período de sobrestamento.
Em outras palavras: todo o mundo que litigar em qualquer tipo de disputa judicial suportará juros integrais, de um por cento ao mês de litígio, desde a citação, mas os armadores, normalmente réus nas disputas judiciais, só responderão pela metade dos juros enquanto o caso estiver pendente da decisão do tribunal marítimo.
Casuísmo maior impossível.
Os juros moratórios de 1% ao mês de litígio constituem um avanço na história do Direito brasileiro e é uma forma hábil de motivar o litigante idôneo e consciente a buscar a composição. Não obstante, a emenda 56 os desprestigia, criando uma situação de privilégio incompatível com a ordem jurídica vigente.
Ora, qual a razão legal, econômica ou moral para a diferença de tratamento?
Por que os armadores serão destinatários de tal e indecoroso benefício?
Acaso são pessoas jurídicas melhores do que as outras, principalmente as que produzem riquezas e geram empregos no Brasil?
Referida norma é inconstitucional, ilegal e, perdoem-me seus entusiastas o uso de uma expressão dura, mas não posso deixar de dizer que a norma é em si mesma absolutamente imoral. Aliás, é acima de tudo imoral.
O Tribunal Marítimo não pode ter o peso que a emenda pretende lhe dar e suas decisões não podem ser equiparadas aos atos administrativos em sentido estrito, muito menos provocar qualquer mitigação da ação ampla do Poder Judiciário.
Aos que militam no Direito Marítimo, muitas dúvidas existem quanto ao verdadeiro papel do Tribunal Marítimo e sua importância em relação às ações judiciais versadas sobre a responsabilidade civil do transportador marítimo por inexecução do contrato de transporte de cargas. Aos que não militam, as dúvidas são naturalmente maiores, razão pela qual convém rapidamente tratar dele.
O Tribunal Marítimo foi criado em 1931, com dupla função administrativa e judiciária.
Logo se revelou o desastre da função judiciária, sendo-lhe retirado qualquer poder em tal sentido.
Assim, faz tempo, tem apenas função administrativa. De fato, apesar do nome Tribunal, trata-se de uma instituição puramente administrativa, desvinculada do Estado-juiz.
Importante enfatizar que apesar no nome, o Tribunal Marítimo não pertence ao Poder Judiciário, mas é apenas um órgão colegiado administrativo e meramente auxiliar do Poder Executivo Federal, enfim, órgão infinitamente menos importante do que qualquer juízo monocrático do país.
Nesse sentido, absolutamente errada a emenda 56 em querer rotular o tal Tribunal Marítimo como órgão auxiliar do Poder Judiciário. Ele é apenas auxiliar do Poder Executivo Federal, não pertencendo a Administração direta (até por isso suas decisões não são atos administrativos por excelência).
O Tribunal Marítimo é administrativamente vinculado a União e sua competência, puramente administrativa, é limitada aos atos e fatos da navegação. O Tribunal Marítimo apenas processa e julga, administrativamente, os casos concretos (sinistros) decorrentes de atos e fatos da navegação, nada mais além disso.
Na verdade, os "julgamentos" do tribunal Marítimo são pareceres técnicos. O Tribunal Marítimo, com sede na cidade de Rio de Janeiro, pode aplicar penas administrativas e pecuniárias.
A atuação do referido “Tribunal” não tem o condão de afastar eventual apreciação do Poder Judiciário. Daí, dizer-se que suas decisões, embora abalizadas e técnicas, estão sempre sujeitas à revisão jurisdicional e não vinculam o Juiz no momento de decidir. [eis aí mais um motivo para não se emprestar ao órgão, como quer a emenda 56, importância que ele não tem e nunca teve]
Sua competência territorial espalha-se por todo o Brasil, atuando inclusive nos casos concretos havidos na navegação fluvial.
Embora criado em 1931, seu fundamento legal somente foi estabelecido em 1954, com o advento da Lei Federal nº 2.180 [referida lei, aliás, contém disposição no sentido de a decisão do Tribunal Marítima ser hábil no que tange à projeção dos efeitos jurídicos na esfera judicial, mas, a verdade feliz é que os órgãos jurisdicionais brasileiros jamais aplicaram tal norma, porque sempre a viram com olhos negativos, na medida em que abusiva e inconstitucional].
Os membros são denominados juízes (equivocadamente, aliás), não por um critério legal, mas, apenas, de status social. Como já se disse, tem por função típica processar e julgar os atos e fatos da navegação, os chamados sinistros, mediante apresentação de parecer técnico.
Seus pareceres são técnicos exatamente porque conta com um corpo de juízes estritamente técnico. Referido corpo é formado por quatro juízes civis, dois militares e um presidente, oficial da armada, num total de sete integrantes.
Todos, especializados em Direito Marítimo e afetos à navegação. A nomeação dos juízes, cargos vitalícios, é feita pelo Presidente da República.
E ao se falar no Tribunal Marítimo, fala-se em suas decisões, ou melhor nos reflexos destas dentro do âmbito jurisdicional, em meio a lides forenses relativas a responsabilidade civil dos transportadores marítimos.
É comum, infelizmente, com larga margem de erro, a decisão deste Tribunal administrativo influenciar, mais por ignorância técnica do que por mérito e substância, as decisões dos Tribunais jurisdicionais, ao arrepio de princípios e postulados importantes do Direito e da própria Justiça, tendo por vítimas seguradores de cargas.
A decisão do Tribunal Marítimo não pode, salvo casos especiais, ter o fito de influenciar o convencimento do Estado-juiz sob pena de, conforme o caso concreto, ferir os princípios básicos da responsabilidade civil que regem o ordenamento jurídico.
Num caso concreto em que o Tribunal Marítimo, analisando estritamente os atos e fatos da navegação, decide por exculpar o comandante do navio por um determinado evento danoso, subsiste, de qualquer forma, a responsabilidade civil do transportador marítimo pelos danos às cargas, em face do que dispõe a responsabilidade civil contratual. Aproveitar uma decisão para fundamentar outra é ato, no mínimo, temerário, salvo em que a confusão se dá não por questões formais, mas efetivamente substanciais.
Assim, é errada a crença de que um determinado feito judicial deve ser sobrestado até que se tenha uma decisão pelo Tribunal Marítimo, como errado também é crer que esta, sempre, deve influenciar, de forma preponderante, aquela.
Nem poderia ser diferente, pois, como se sabe e já se mencionou acima, o Tribunal Marítimo é órgão autônomo, criado pelo Decreto n.º 20.829 de 1931, regulamentado através do Decreto nº 24.585 de 1934, que visa apreciar os acidentes/fatos da navegação marítima, fluvial e lacustre, bem como manter o registro da propriedade marítima.
Os componentes do Tribunal Marítimo, exatamente porque não seguem a regra do princípio da investidura, encontram-se despidos de jurisdição. Logo, eles não “dizem o direito ao caso concreto”, mas apenas emitem opinião técnica a respeito dos fatos que lhes são levados a conhecimento.
Nunca é demais ou ocioso repetir: os Juízes (diga-se árbitros) do Tribunal Marítimo proferem decisões que, em termos jurídicos-processuais, nada mais são do que meros pareceres técnicos, limitados à analise dos atos e fatos da navegação. Nem mais, nem menos.
Com efeito, existe uma enorme diferença entre apontar o direito e emitir opinião. Não é qualquer um, ainda que tecnicamente qualificado, que diz o direito, mas sim um profissional hiperqualificado, galgado à função através de rigoroso, idôneo e objetivo processo de seleção. Num universo multifacetado e vasto de candidatos, somente os melhores tornam-se juízes, daí o entendimento que o Juiz é o verdadeiro intérprete do Direito.
Portanto, não se pode conferir caráter absoluto e incontroverso à decisão do Tribunal Marítimo, uma vez que esta mesma nada mais é do que um mero parecer técnico, voltado apenas e exclusivamente aos atos e fatos da navegação. Jamais este parecer tratará de questões essencialmente jurídicas, porquanto, desqualificado, neste sentido, é seu “Colégio Julgador”.
E se assim não fosse, grave vício haveria na decisão, posto que, técnicos estariam sendo indevida e absurdamente equiparados a doutos magistrados, tendo-se por ofendida a ordem jurídica, na medida em que restaria violado o princípio constitucional da indelegabilidade da jurisdição.
Meio de prova, ainda que poderoso e tecnicamente qualificado, mesmo que emascarado da alcunha de decisão, é uma coisa; decisão, propriamente dita, é outra, completamente diferente. Decisões/Sentenças, somente juízes estão autorizados a proferir. Parecer, cabe aos técnicos, como os do Tribunal Marítimo, principalmente se se levar em consideração que os seus componentes ascendem ao cargo através de critérios subjetivos e nem sempre confiáveis, entenda-se, indicações políticas.
Ligado ao antigo Ministério da Marinha, hoje Ministério da Defesa, ao Tribunal Marítimo se atribui a competência de apreciar administrativamente os acidentes e os fatos da navegação, definindo-lhes a natureza, tentando determinar-lhes as causas, circunstâncias e extensões, assim como indicando os responsáveis para lhes aplicar as penas estabelecidas na Lei n.º 2180/54, não diferindo pela nacionalidade da embarcação envolvida.
Entre essas atribuições, essencialmente administrativas, as decisões desse Órgão não fazem “coisa julgada”, vez que, conforme já ressaltado, os membros do mencionado Tribunal não são investidos de jurisdição. Mister se destacar que na decisão que ora se refuta, não se mostrou passível o recurso no âmbito administrativo uma vez que as interessadas, ora Autoras, somente poderiam fazê-lo, caso aduzissem fatos novos, a alusão à Ação Rescisória, o que efetivamente era impossível. Não lhes era dado questionar simplesmente a decisão.
Com efeito, das decisões do Tribunal Marítimo, consoante o disposto no artigo 106 da Lei n.º 2.180/54, o único recurso cabível são os embargos, desde que estes versem sobre matéria nova, ou baseiem-se em prova posterior ao encerramento da fase probatória, ou ainda, quando se tratar de decisão não unânime, que não é a hipótese.
De tal sorte, não resta alternativa aos interessados, senão aguardarem sua revisão pela Justiça comum, uma vez que, a par de eventual existência de novos fatos e provas, é medida imprescindível que se dê nova interpretação a matéria discutida no âmbito administrativo.
Há de se reconhecer a necessidade de reexame pelo Poder Judiciário de decisão proferida pelo Tribunal Marítimo, vez que esta se encontra desprovida da segurança jurídica necessária para por fim ao trauma social, mesmo que somente em tese.
Ainda no âmbito das atribuições do Tribunal Marítimo, importante se destacar o posicionamento de WALDEMAR FERREIRA:
“É tribunal técnico, sustentando-se, pois, que lhe cabe definir a natureza, a amplitude e a causa determinante dos acidentes e fatos da navegação; e esse atributo evidentemente não se lhe pode negar. Cabe-lhe, ainda, fixar as responsabilidades em todos acidentes e fatos da navegação a fim de, ADMINISTRATIVAMENTE, PUNIR OS RESPONSÁVEIS. Mas não é o Tribunal Marítimo, de modo algum, órgão jurisdicional.”
(Revista de Direito Mercantil, nº 04 - Ano I, p. 798/799).
Assim, é forçoso concluir que a decisão do Tribunal Marítimo não restringe a matéria submetida à apreciação do Poder Judiciário. O julgamento do Tribunal Marítimo estabelece apenas uma presunção de certeza, mas não é absoluta e incontestável, sendo absolutamente refutável, tendo em vista, repita-se, que o Tribunal Marítimo é órgão meramente administrativo, analisando, apenas, os fatos da navegação.
Mesmo porque, não fosse assim, estava sendo indevidamente suprimida do interessado a idéia de segundo grau de jurisdição, isto é, o princípio processual de “status” constitucional, que o jurisdicionado tem à seu favor, reclamando-se do Estado-Juiz dupla análise do seu caso.
Neste sentido, destaca-se o posicionamento de THEOPHILO DE AZEREDO SANTOS:
“As decisões do Tribunal Marítimo, quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário (. . .)”
“A jurisprudência tem-se manifestado, de há muito, no sentido de que as decisões do tribunal Marítimo são de natureza adminsitrativa, podendo ser apreciadas e revistas pelo Poder Judiciário. Esta é, também, a lição de Seabra Fagundes”.
(Direito da Navegação, 2ª edição, Rio de Janeiro: Forense, p. 428)
O destacado posicionamento de SEABRA FAGUNDES é o seguinte:
“Hoje, por conseguinte, o Tribunal Marítimo é um órgão de feição exclusivamente administrativa, não interferindo com o monopólio jurisdicional do Poder Judiciário. As suas decisões, que são, em substância, atos administrativos, caem sob a apreciação judicial como quaisquer outros atos da administração pública”.
(O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, Revista Forense 70/165)
Ressaltando-se as atribuições do Tribunal Marítimo, este tem caráter sui generis, sem qualquer eficácia vinculativa aos órgãos do Poder Judiciário, embora órgão auxiliar deste. Daí explica-se porque sua jurisdição é anômala dentro da sistemática jurídica brasileira, da mesma forma que permite o emprego da expressão “processo” apenas para fins didáticos no tratamento dos procedimentos adotados por esse Tribunal.
No julgamento das causas relativas aos fatos e acidentes de navegação, o Tribunal Marítimo não pode exceder os limites de suas atribuições e competência, sob pena de incorrer no arbítrio e ilegalidade.
Por outro lado, há de se enfatizar que ao Poder Judiciário é dado conhecer toda a matéria arguida nos autos — em toda a sua extensão — servindo de mero parâmetro a decisão do Tribunal Marítimo que se encontra acostada nos autos, a fim de se interpretar o já mencionado artigo 18 da Lei nº 2.180/54 combinado com o inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal.
Neste sentido, destaca-se a parte final do voto do Juiz Carvalho Viana, proferido num Agravo de Instrumento, reportando-se à precedente do Superior Tribunal de Justiça:
“Se é verdade que o transportador responde objetivamente pelo transporte da carga, também é verdade que ele pode se exonerar da obrigação de indenizar, se provar o caso fortuito, ou a força maior, que ora se alega. Portanto, não se pode desprezar a produção de provas, no caso feita em sede própria, e que convém aguardar, ainda que o Poder Judiciário não esteja obrigado a endossar a conclusão do Tribunal. Trata-se de prova presumivelmente correta, e que só não subsistirá se for cabalmente contrariada pela prova judicial.
(Superior Tribunal de Justiça, RE nº 38.082 do Paraná, Rel. Min. Ari Pargendler)
Portanto, constituindo-se a decisão do Tribunal Marítimo mero ato administrativo, não vinculando o magistrado (como aliás, nada vincula, conforme dispõe o princípio do livre convencimento do magistrado), vez que sopesando todos os elementos de prova coligidos aos autos de um determinado processo, tem-se como certo que a decisão do Tribunal Marítimo não pode, necessariamente e em todos os casos, vincular a do Poder Judiciário.
Assim, uma decisão administrativa não pode ter maior validade que a entrega da prestação jurisdicional pretendida pelas Autoras, suprimindo o princípio da livre convicção do juiz, ignorando, por conseguinte, todos os fatos e provas carreados aos autos.
Destarte, a apreciação de uma decisão do Tribunal Marítimo deve ser feita em consonância com o artigo 131 do Código de Processo Civil, que informa o princípio do livre convencimento motivado do juiz por ocasião do seu decidir.
Por isso, entendo sem embargo, que as decisões (pareceres) do Tribunal Marítimo até podem e devem ser usadas em lides forenses de Direito Marítimo, mas não devem, a rigor, ser tidas como cabais ou diretamente influenciadoras das decisões dos Magistrados, porque o que pode ser interessante no âmbito administrativo-maritimista pode ser irrelevante no plano jurisdicional e vice-versa.
Normalmente, uma lide forense de Direito Marítimo envolve aspectos singulares do Direito das Obrigações e da Responsabilidade civil, os quais não são considerados pelos árbitros do Tribunal Marítimo e, exatamente por isso, devem ser tratados à parte, relativizando-se os conteúdos dos pareceres do citado órgão administrativo.
A teoria objetiva imprópria, com seus rigorosos ditames em termos de responsabilidade civil do transportador marítimo e uma ata de vistoria particular conjunta, por exemplo, são mais importantes do que o próprio parecer técnico do referido Tribunal numa dada disputa judicial.
Respeitar o posicionamento do Tribunal Marítimo é uma coisa, concordar coele é ofender a própria inteligência, outra.
As considerações imediatamente acima dizem respeito à correta valoração das provas produzidas por meio de processos administrativos no Tribunal Marítimo.
Em síntese, afirmo com segurança que uma decisão do referido tribunal, longe de ser irrelevante, é apenas um meio de prova a ser considerado no cenário jurisdicional, nada mais do que isso.
Ora se isso serve em sentido amplo, ainda mais sem sentido se torna a emenda ao querer tornar praticamente coisa julgada, formal e material, a mera decisão técnica do Tribunal Marítimo, passando por cima da autoridade do Poder Judiciário, das suas competências constitucionais e de um rol enorme de direitos e garantias fundamentais constitucionais.
A pretensão da emenda é tão absurda que a ofensa à Constituição Federal é flagrante! Nada, absolutamente nada pode reduzir a atuação do Poder Judiciário, pois somente a ele cabe, com exclusividade, a primazia de dizer o Direito ao caso concreto.
Só por isso, a emenda tem que ser sumariamente excluída do PL, pois vício de constitucionalidade é algo muito sério e o controle preventivo tem que ser exercido com eficácia a fim de se evitar o ingresso de uma lei inconstitucional e que gerará um exército de debates jurídicos.
Hoje, a grande questão não é a de se tentar ampliar e aumentar poderes do Tribunal Marítimo, mas de se questionar sua existência.
Quer me parecer, com base na experiência profissional, que o Tribunal Marítimo não tem mais sentido e razão de ser.
Seus custos são extremamente elevados para o Erário, considerando sua efetividade e o retorno à sociedade.
A emenda, se sincera em seus propósitos, deveria cuidar para a extinção do Tribunal Marítimo, não em colocá-lo, absurda, inconstitucional, ilegal e abusivamente acima do Poder Judiciário.
Pois bem!
E se não bastasse o absurdo da questão do Tribunal Marítimo em relação ao que a emenda chamou de princípios, ela contém um absurdo ainda maior e mais ofensivo ao Direito brasileiro, qual seja: a limitação de responsabilidade.
Pois, bem, mas a sobredita inconstitucionalidade, extremamente grave, porque fere os pilares democráticos e garantidores do Estado brasileiro, não é a única coisa ruim existente na emenda 56. Pelo contrário, existem outras, todas perigosas e danosas, como as regras que tentam instituir a limitação de responsabilidade, em favor dos transportadores, no Direito brasileiro.
As ilegais e inconstitucionais regras instituidoras da limitação de responsabilidade ou responsabilidade tarifada em favor dos transportadores marítimos, o casuísmo por excelência e em detrimento da economia nacional.
A limitação de responsabilidade é uma figura anacrônica e incompatível com o Direito do país.
Tradicionalmente rechaçada pelos tribunais brasileiros, ela fere muitas regras legais, enunciado de súmula do STF, o melhor entendimento jurisprudencial e a garantia constitucional de a reparação do dano ser ampla e integral.
A emenda 56 diz que ela há de ser implantada no país por uma necessidade de se incentivar a navegação comercial, mediante o abrandamento do dever de reparação integral no âmbito civil do empresário.
Em outras palavras: ao invés de incentivar a navegação comercial, algo que eu concordo plenamente, com investimentos e reduções tributárias pontuais, o que os articuladores da emenda desejam é abrandar as responsabilidades dos armadores, de tal sorte que eles, ao contrário de todos os demais, podem causar prejuízos milionários, mas responderem de forma limitada por seus danos.
Poucas coisas são mais nocivas à economia e ao Direito brasileiros do que que a limitação de responsabilidade.
Os elaboradores da norma são advogados de armadores e transportadores defensores, por razões óbvias, da limitação de responsabilidades.
Diante de sucessivas e reiteradas derrotas no âmbito judicial, já que a limitação não tem guarida em lei e não é aceita pelo Poder Judiciário, resolveram atacar a questão por outro fronte de batalha e o fizeram de forma hábil: impondo sua vontade unilateral e casuística à sociedade brasileira por meio de norma legal.
A limitação prevista nos contratos marítimos de transporte, unilaterais e adesivos, manifestamente abusivos, nunca foi aceita pelo Direito brasileiro. Igualmente, a limitação da responsabilidade prevista em convenções internacionais nunca foi admitida, por conta da não adesão do Brasil.
Daí, o absurdo gigantesco objetivado na emenda 56, no Capítulo IV, intitulado “Da limitação de responsabilidade do armador”, artigos 145 e seguintes.
Para melhor se entender a gravidade da proposta da emenda, convém tratar da limitação como um todo e da sua natureza diante do sistema legal brasileiro.
A saber:
Da limitação de responsabilidade e o respeito à garantia constitucional da reparação do dano ampla e integral.
Se eu pudesse tratar um assunto tão importante de forma resumida, eu faria, como agora o faço, da seguinte forma e com letras garrafais: Limitar a responsabilidade do transportador (marítimo de carga), diante da culpa pela inexecução da obrigação de resultado, é incentivar até mesmo atos ilícitos e o enriquecimento sem causa, é aviltar a moral que influencia o direito e é, em última instância, afrontar a inteligência sistêmica do direito: limitar é rigorosamente, em termos práticos, a mesma coisa que exonerar.
Poucos assuntos causam-me tanto furor como o da limitação de responsabilidade, porque vejo nela uma ofensa ao Direito, um ato de desonestidade travestido em lei e um salvo-conduto à irresponsabilidade contratual.
Com todo respeito aos ilustres nomes que a defendem enxergando nela uma espécie de aplicação concreta de teoria dos riscos empresariais, tenho por certo que ela é exatamente o revés disso, porque não respeita a divisão equilibrada de riscos, mas concede benefícios indevidos a quem não quer assumir risco algum, embora seja titular de muitos bônus.
Quando escrevi meu livro Prática de Direito Marítimo (Quartier Latin: São Paulo, 2009), não gastei muitas linhas para tratar da cláusula limitativa de responsabilidade, porque eu a tinha e a tenho como nula de pleno Direito.
Sempre entendi que a referida cláusula é em tudo equiparada à cláusula de não indenizar e, portanto, inoperante, segundo o Enunciado de Súmula 161 do Supremo Tribunal Federal. Por cláusulas, aliás, entendo não somente as disposições contratuais unilaterais e abusivas, mas também as normas convencionais e as regras legais, enfim, qualquer fonte que tenha por escopo limitar a responsabilidade de quem causa um dano.
Ora, “não indenizar” é, em termos práticos, a mesma coisa que indenizar valor vil, sobremodo reduzido por causa da limitação.
Além da comparação direta com a cláusula de não indenizar, também sempre me posicionei (e ainda me posiciono) contra a cláusula limitativa de responsabilidade porque o contrato de transporte de carga, qualquer que seja o modal, é um contrato de adesão, com cláusulas impressas e unilateralmente impostas pelo transportador, razão pela qual injusta e, até mesmo, imoral sua aplicação em desfavor de quem foi obrigado a aderir aos termos contratuais.
Nem mesmo as convenções internacionais podem e devem ser aplicadas nos transportes internacionais, aéreos ou marítimos, pois nos marítimos tem-se que o Brasil nunca assinou qualquer convenção, salvo a de Hamburgo, nos anos setenta do século passado, mas que até hoje não foi ratificada pelo Congresso Nacional, e, nos transportes aéreos, tanto a Convenção de Varsóvia, como a de Montreal, das quais o Brasil é signatário, dispõem sobre a possibilidade de limitação tarifada, mas somente nos casos dos grandes sinistros aéreos, os acidentes de aviação, não os casos simples de faltas ou avarias de cargas, muito menos aqueles seriamente culposos.
Ora, considerando tudo isso, considerando, ainda, a tradição jurídica brasileira, sempre refratária ao reconhecimento e à aplicação de qualquer tipo de cláusula ou regras limitativa de responsabilidade, especialmente no transporte marítimo internacional de carga, não senti, como não sentia até então, necessidade alguma de alongar o tema, tanto na primeira, como na segunda edições do livro.
Basicamente, o que discorri sobre o assunto foi o que segue, com enfoque na limitação tarifada disposta por contratos maritimistas, redigidos unilateralmente:
“A limitação de responsabilidade é tema que periodicamente ganha destaque na literatura do Direito Marítimo. Isso porque os transportadores costumam invocá-la nas disputas judiciais relativas aos contratos de transportes de cargas inadimplidos.
Apesar do destaque, a jurisprudência é, preponderantemente, contrária a validade e a eficácia de toda e qualquer cláusula que limita a responsabilidade do transportador marítimo.
Pesa muito em favor desse entendimento o fato de a cláusula limitativa de responsabilidade encontrar-se inserida em um contrato de adesão, como é o de transporte marítimo, implicando dirigismo contratual e abusividade explícitos.
O contrato de adesão deve ser interpretado, em caso de divergência, sempre em favor de quem aderiu. Além disso, o instrumento contratual de adesão não pode ofender o sistema legal, submetendo-se em tudo ao Direito como um todo.
O Brasil, em especial, é um país que tradicionalmente se mostra contundente em relação ao dirigismo contratual e as cláusulas abusivas.
Por isso, toda e qualquer cláusula limitativa de responsabilidade estampada unilateralmente pelo transportador no conhecimento marítimo é inválida e ineficaz, senão nula de pleno Direito.
Tendo-se em consideração que limitar a responsabilidade é o mesmo que não indenizar, afirma-se que a cláusula limitativa de responsabilidade ajusta-se perfeitamente ao disposto no Enunciado de Súmula nº 161, do Supremo Tribunal Federal: “Em contrato de transporte, é inoperante a cláusula de não indenizar”.
Antes da Constituição Federal de 1988 e da criação do Superior Tribunal de Justiça, era o Supremo Tribunal Federal o órgão jurisdicional que dava a última palavra sobre o assunto, fincando posicionamento que até hoje e acertadamente é abraçado pelos órgãos monocráticos e colegiados do Estado-juiz.
No mesmo sentido, o Direito positivo, por meio de regra legal específica, o Decreto nº 19.473/30, liquidou a eficácia de cláusulas contratuais dessa natureza, ao impor: “(...) Reputa-se não escrita qualquer cláusula restritiva ou modificativa dessa prova ou obrigação”.
Mas, com a introdução da lei consumerista no sistema legal brasileiro, o tema ganhou novo colorido, praticamente definitivo, no sentido de se premiar a proibição às cláusulas limitativas ou restritivas de responsabilidade, comuns nos contratos de transporte marítimo.
E a legislação consumerista é perfeitamente aplicável aos casos envolvendo obrigações de transportes de cargas, sem se falar em inteligência maximalista, porque a obrigação de transporte é modalidade de fornecimento de serviço e o transportador é um prestador de serviços em todos os sentidos. Para a incidência da lei consumerista é preciso ter em foco não o bem transportado, mas o serviço propriamente dito, o qual tem no contratante, no consignatário ou no segurador legalmente sub-rogado consumidores perfeitos, porque destinatários finais dos serviços fornecidos pelos transportadores, pouco importando os destinos finais dos bens confiados para os transportes.
Com a nova lei especial, o que antes era solucionado por meio da jusfilosofia, mediante cansativo processo de esgrima das normas vigentes no sistema legal e o uso de sofisticada hermenêutica jurídica, passou a ter tratamento melhor, normativo e expresso, fulminando qualquer dúvida a respeito. Com a promulgação do Código Civil em vigor, de 2002, o dirigismo contratual foi definitivamente vedado e ao sabor dele, ainda mais forte se tornou o repúdio às cláusulas de limitação de responsabilidade, compaginada no rol das cláusulas abusivas.
Toda cláusula que limita a responsabilidade é abusiva porque constitui ofensa ao equilíbrio contratual, mormente quando o contrato que a contém, como é o caso do contrato maritimista de transporte, é um típico contrato de adesão.
Sendo um contrato de adesão, suas cláusulas são impressas, não cabendo ao consumidor e/ou beneficiário do serviço contratado, diretamente ou por estipulação em favor de terceiro, qualquer deliberação a respeito. Sua vontade não é livre, mas orientada pela imposição do transportador, sempre unilateralmente.
O consumidor (credor da obrigação de transporte de carga) simplesmente adere às condições impostas pelo transportador marítimo, não se lhe conferida a oportunidade de efetivamente manifestar sua vontade, emprestando caráter verdadeiramente unilateral ao contrato.
E nem se diga em eventual liberdade de não contratar, pois se levando em conta que cerca de 90% do transporte global de cargas é feito por mar, pouco liberdade têm os consumidores de tais serviços, uma vez que eles precisam contratar os transportes, submetendo-se, forçosamente, às disposições contidas nos instrumentos contratuais.
Assim colocada a questão, nada mais há para ser dito em sede de limitação de responsabilidade, tratando-se de mais um ponto superado, donde se estranha a insistência de os transportadores marítimos, em litígios judiciais, insistirem na tese da validade e da eficácia dessas cláusulas “hardship”, notadamente as de limitação de responsabilidade, na medida em que manifestamente contrárias ao Direito, repudiadas pela jurisprudência e eivadas de elementos negativos que atingem até mesmo o campo da moral.
Além de regras legais específicas contrárias ao dirigismo contratual, existem princípios fundamentais do Direito, uns de índole geral, outros de natureza constitucional, os quais devem ser sobremodo considerados quando da análise do tema, fulminando toda e qualquer tentativa de convalidar a abusividade intrínseca às cláusulas limitativas de responsabilidade.
Tais cláusulas ofendem fundamentos principiológicos como a eqüidade, a razoabilidade, a proporcionalidade e o bom-senso, compaginando essa ofensa mais um argumento a favor daqueles que as repudiam e as têm por nulas de pleno Direito.
A imposição de tais cláusulas, ao exclusivo alvedrio dos transportadores marítimo, faz letra morta qualquer alusão ao “pacta sunt servanda”, sendo curial notar que outro aforismo cabe na hipótese em questão: “pacta non possunt facere licita quae alias illicita sunt”.
Relevante observar que mesmo sem se remeter às regras do Código de Defesa do Consumidor, os princípios jurídicos que regem os contratos coíbem o abuso, principalmente ao se observar o dirigismo contratual decorrente da forma adesiva de contratação. E esses princípios foram definitivamente positivados e marmorizados nas letras do Código Civil de 2002, cujo conteúdo, considerando-se a melhor hermenêutica e a interpretação sistêmica de suas regras, veda a validade das referidas cláusulas, como de toda e qualquer cláusula “hardship”, combatendo o dirigismo contratual e fortalecendo a inteligência do comentado Enunciado de Súmula 161 do Supremo Tribunal Federal.
Afinal, o Direito não se presta ao torto; e, em termos contratuais, poucas coisas são mais tortas e erradas do que as combatidas e abusivas cláusulas limitativas e/ou exonerativas de responsabilidade. Qualquer que seja a fonte legal aplicável num dado caso concreto, ou seja, Código Civil, Código de Defesa do Consumidor ou princípios gerais e fundamentais do Direito, tais cláusulas são ilegais e, mesmo, imorais, porque abusivas, cabendo ao Poder Judiciário, quando provocado, manifestar-se no sentido de se manter o entendimento vigente de tempos de antanho, hoje vitaminado por importantes ferramentas jurídicas, repudiando-se a validade e a eficácia de tais cláusulas ou, ainda mais importante, rotulando-as como nulas de pleno Direito.”.
Diante disso e antes mesmo de prosseguir, esclareço que o que serve, em termos de fundamentação jurídica, para repudiar a validade e a eficácia das chamadas cláusulas contratuais limitativas e/ou exonerativas de responsabilidade, serve, igualmente e ainda com mais razão, para rechaçar a tentativa de imposição do conceito de limitação por meio de lei, como disposto na emenda 56.
Como disse, continuo entendendo a mesma e rigorosa coisa. Aliás, com o passar do tempo e as reiteradas vitórias judiciais no exercício da advocacia, tal convicção só fez aumentar.
Vejo, contudo, agora, com algumas interpretações equivocadas do sistema legal vigente e, em especial, com a tentativa de inserir no Direito brasileiro a chamada limitação tarifada, necessidade de tratar do tema um pouco mais detalhadamente.
Embora a jurisprudência continue pacífica no sentido de não se prestigiar a cláusula limitativa de responsabilidade, há em curso um movimento forte, patrocinado pelos transportadores marítimos em dizer que o que é errado é certo e, o que é certo, errado.
Por mais que se vistam de argumentos sedutores e aparentemente hábeis, a verdade que salta aos olhos é que a cláusula que limita a responsabilidade é, sim, uma cláusula de não indenizar. E se enquanto cláusula ela é algo abominável ao Direito, quiçá transformada em norma legal, contaminada por inafastável vício de constitucionalidade.
E isso é que costumo sempre expor, seja num artigo, seja numa peça forense, ou num parecer, ainda que sumário, enxuto e objetivo, com colorido jurisprudencial, como abaixo destacado, observando que o texto é centrada na idéia de cláusula contratual, mas perfeitamente cabível também à limitação determinada por fontes convencionais ou legais:
A limitação de responsabilidade é tema há muito não controvertido no Direito brasileiro. Sua vedação é medida de rigor, amparada pelo Direito e pela Moral. A melhor doutrina e os Tribunais já pacificaram a questão, negando vigência a toda e qualquer cláusula que limite responsabilidade.
Nem poderia ser diferente o posicionamento pretoriano, uma vez que a cláusula limitativa de responsabilidade equipara-se, em todos os seus efeitos, a cláusula de não indenizar.
Principalmente quando a cláusula limitativa de responsabilidade encontra-se inserida em um contrato de adesão, como é o instrumento firmado entre o consignatário da carga (segurado das Autoras) e o transportador marítimo, ora denunciante.
O contrato de adesão deve ser interpretado, em caso de divergência, sempre em favor de quem aderiu. Tal idéia sedimentou-se, ao longo dos tempos, no Direito brasileiro, assumindo ares de postulado.
Hoje, é fortificado pelo Código de proteção e Defesa do Consumidor e pelo Código Civil de 2002l que expressamente defendem o postulado, com o peso da normatividade.
O Código Civil, aliás, ao tratar da função social do contrato, abraçou definitivamente os princípios informadores dos direitos de terceira geração, aplicando-os mesmo no âmbito do Direito privado. Assim, impossível emprestar validade, eficácia e vigência à cláusula que, imposta unilateralmente pelo denunciado, visa limitar a responsabilidade pelo evento danoso, trocando um pote de moedas de ouro, por alguns poucos centavos de prata.
Tendo-se em consideração que limitar a responsabilidade é o mesmo que não indenizar, sentimo-nos seguros e confortáveis em invocar o quanto disposto no Enunciado de Súmula nº 161, do Supremo Tribunal Federal, que dispõe: “Em contrato de transporte, é inoperante a cláusula de não indenizar”.
No mesmo diapasão, reproduzimos parte de uma regra legal específica, o Decreto nº 19.473/30, que liquidou a eficácia de cláusulas contratuais dessa natureza, ao impor: “(...) Reputa-se não escrita qualquer cláusula restritiva ou modificativa dessa prova ou obrigação.
Referido Decreto, ainda em vigor, recepcionado pela Constituição Federal de 1988 e compatível com a inteligência sistêmica do ordenamento jurídico brasileiro taxativamente veda qualquer limitação, ainda que mínima, ao dever jurídico de reparar o dano por parte do transportador inadimplente.
E, nunca é demais enfatizar: a introdução da lei consumerista no sistema legal brasileiro fortaleceu, sobremodo, a vedação as cláusulas limitativas ou restritivas de responsabilidade, comuns nos contratos de transporte, qualquer que seja o modal, especialmente marítimo e aéreo. Concomitantemente, temos o Código Civil dispondo em sentido idêntico e tornando defesa a limitação de responsabilidade em contratos de adesão.
Com o novo sistema legal, o que antes era solucionado através da jusfilosofia, mediante cansativo processo de esgrima das normas vigentes no sistema legal como um todo, passou a ter tratamento melhor, normativo e expresso, fulminando qualquer dúvida a respeito.
Lista o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 6º, os direitos básicos atribuídos ao consumidor figurando, dentre eles, os dos incisos IV e X, que o protege de práticas e cláusulas contratuais abusivas e lhe garante o direito a um eficaz serviço público[1], respectivamente, transcritos abaixo:
"Art. 6.º - São direitos do consumidor:
IV – a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas impostas no fornecimento de produtos e serviços;
X – a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral".
Toda cláusula que limita a responsabilidade é abusiva porque constitui em ofensa ao equilíbrio contratual, mormente quando o contrato que a contém, como é o caso dos contratos maritimistas de transporte, é um típico contrato de adesão.
Antes da lei, existiam, como dissemos, outros argumentos utilizados para combater as ditas cláusulas.
Considerando que este manual tem enfoque nitidamente prático, convém tecer comentários a respeito.
Sendo o contrato de transporte marítimo (conhecimento marítimo) um contrato de adesão, as cláusulas são impressas, não cabendo ao consumidor do serviço contratado, diretamente ou por estipulação em favor de terceiro, qualquer deliberação a respeito.
O consumidor simplesmente adere às condições impostas, inicialmente, pelo fornecedor, diga-se, transportador marítimo.
E nem se diga em eventual liberdade de não contratar, pois tendo-se em conta que cerca de 90% do transporte global de cargas é feito por mar, pouco liberdade têm os consumidores de tais serviços, uma vez que eles precisam contratar os transportes, submetendo-se, forçosamente, as disposições contidas nos instrumentos contratuais.
Falar em limitação de responsabilidade é falar, também, em reconhecimento da incidência das normas morais nas obrigações civis e/ou consumeritas, uma vez que limitar a responsabilidade, não raro a valores ou percentuais aviltantes, é ato afrontoso à moral que, em nosso entendimento, não pode ser de forma alguma admitido, principalmente em sede judicial.
A limitação de responsabilidade é imoral e prejudicial à economia e a decência do Direito, uma vez que permite que o ato ilícito permaneça sem punição, quebrando a regra de que aquele que causa dano à outrem deve reparar os prejuízos decorrentes com seu próprio patrimônio.
Por tal e tanto é que doutrinadores de grosso calibre, muito antes do advento do Código do Consumidor, manifestavam repúdio às ditas cláusulas, como exposto na seleção abaixo:
Hugo Simas[2]: “Por modo tal os transportadores têm abusado das cláusulas de não responsabilidade, que não há excesso na afirmativa de Pipia de que os fretadores e armadores não têm responsabilidade nenhuma e os capitães muito pouca, pelo o que os carregadores podem dar graças a Deus e à nímia bondade daqueles, se chegar ao destino alguma cousa do que é remetido.”
José Aguiar Dias[3]: “Sem embargo de sua utilidade, pois estimula os negócios, mediante afastamento da incerteza sobre o quantum da reparação, a cláusula limitativa muitas vezes resulta em burla para o credor. Dificilmente se dá o caso de ser o dano real equivalente à reparação prefixada, esta última, por um simulacro de perdas e danos.” (..) “Praticamente, é a cláusula exonerativa, à qual acaba por servir de argumento. As cláusulas limitativas são de uso frequente nos transoportes. Consistem, comumente, na fixação “a forfait”, de determinada soma, para constituir a indenização, em caso de perda, extravio, avaria ou atraso. (...) não temos dúvida em sustentar a sua nulidade, quando a soma arbitrariamente fixada resulte em verdadeira lesão para o credor, principalmente quando se trate de transporte, cujo contrato geralmente é de natureza a excluir a liberdade de discussão por parte do interessado no serviço.”
E Pontes de Miranda[4], que sobre o tema “responsabilidade do transportador”, especialmente “cláusula de irresponsabilidade”, disse: “No Decreto n.º 19.473, de 10 de dezembro de 1930, art. 1.º, 1.ª alínea, que regulou os conhecimentos de transporte de mercadorias por terra, água ou ar, e deu outras providências, estatui-se: “O conhecimento de frete — leia-se conhecimento de transporte – original, emitido por empresas de transporte por água, terra ou ar, comprova o recebimento da mercadoria e a obrigação de entregá-la no lugar de destino.”. Na 2.ª alínea, acrescenta-se: “Reputa-se não escrita qualquer cláusula restritiva, ou modificativa dessa prova ou obrigação”. Tem-se querido insinuar a diferença entre restrição ou modificação da responsabilidade do transportador, o que é sem sendo. Transportar é receber o objeto e entregá-lo tal como foi recebido. A responsabilidade pelos danos que o objeto sofreu é inclusa no dever contratual de entrega.
É preciso que não se admitam cláusulas de irresponsabilidade que retirariam ao contrato de transporte sua estrutura. Por outro lado, o que importa é saber-se se, na espécie, a regra jurídica invocada é “ius cognes” ou “ius dispositium” ou “ius interpretarivem”. Se a regra jurídica é cogente, não há pensar-se em qualquer permissão de cláusula de irresponsabilidade.
De se ver que um dos maiores tratadistas do Direito, Pontes de Miranda, lastreado na interpretação sistêmica do Direito e, especificamente, no Decreto n.º 19.473/30, já manifestava, antes mesmo do advento do Código de Defesa do Consumidor, seu inconformismo quanto as cláusulas de irresponsabilidade, defendendo, com contundência e erudição, posicionamento relativo a invalidade absoluta das mesmas.[5]
Fazendo eco à doutrina selecionada no trabalho acima reproduzido, os Tribunais brasileiros, quase que majoritariamente, também fizeram consignar o repúdio a validação e eficácia das ditas cláusulas.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que ostenta orgulhosamente o título de ser um dos principais berços do pensamento jurídico brasileiro, através da sua sexta câmara, julgando o Recurso de Apelação n.º 274.840-Santos, decidiu:
“Limitar a responsabilidade da transportadora a 100 (libras esterlinas) é, sem dúvida, infringir o artigo 1.º do Decreto n.º 19.473, de 10.12.1930, que reputa não escrita qualquer cláusula restritiva ou modificativa da prova do recebimento da mercadoria e da obrigação de entregá-la no destino, prova que o conhecimento de frete original faz a obrigação que por ela as empresas de transporte assumem. O legislador, certamente, teve em mente que: “illud nulla pactione effici potest ne dolus praestatus” (Dig. Lib. II, Tit.XIV, § 3.º). Pode ocorrer que o extravio da mercadoria faça render quantia superior à que o transportador tiver de pagar a título de indenização. Para eliminar estímulo de extravios dolosos, a lei fulmina cláusulas de irresponsabilidade e de não indenizar.” (...) “É enganosa a doutrina que condiciona a validade das cláusulas de limitação de responsabilidade “a uma rebaja del frete, segun opciones que previamente los transportadores dan a los cargadores” (FRANCIS FARINA, Derecho Comercial Martitimo, T. II, Ed. 1948, Madrid, p. 290, cfn. fls. 81). Haveria frete com determinada percentagem para os transportes sem declaração de valor das mercadorias e frete com “the rate increased” para o transporte com a declaração daquele valor. Dir-se-á que a opção pode advir uma vantagem, se o transporte for levado a bom termo, pois os mesmos riscos terão sido corrigidos, com um frete mais barato. A limitação de responsabilidade, porém, continua dando oportunidades de extravio doloso por parte do capitão ou da transportadora, eventualmente em conluio com o embarcador ou exportador. E aquela álea não poderá ser uma compensação a justificar a validez da cláusula restritiva.”
Também elaborado antes do surgimento da lei do consumidor (e do novo Código Civil), o posicionamento do Tribunal de Justiça paulista foi construído com muita lucidez, dando ênfase, como não poderia deixar de ser, ao Decreto n.º 19.473/30 e aos mais importantes e elementares princípios e postulados gerais do Direito.
Não se limitando ao Direito, o colégio paulista enveredou-se por outros ramos do conhecimento humano, porquanto observou, com precisão, que a limitação de responsabilidade é, ainda que às avessas, fator de incentivo à criminalidade, diga-se, extravios dolosos de cargas (“Para eliminar estímulo de extravios dolosos, a lei fulmina cláusulas de irresponsabilidade e de não indenizar”.).
Ora, ao preocupar-se com o implemento da criminalidade e, ainda, com as divisas nacionais (ordem econômica), o Tribunal paulista emprestou ao tema, repita-se: antes do surgimento da legislação especial consumerista, ares publicistas, sinalizando com o interesse social que tem a questão da não validade das cláusulas limitativas de responsabilidade.
Ditas cláusulas, qualquer que seja sua feição, limitação, restrição, exonerativa, enfim, negativa de responsabilidade, mesmo que parcialmente, é nula de pleno direito, não havendo que se falar em “pacta sunt servanda”, primeiro porque o princípio da supremacia prefere ao da livre manifestação de vontade das partes, depois porque a presença das mesmas é imposta, mediante cláusulas impressas em contratos de adesão, principalmente agora que o sistema legal brasileiro, pelo Novo Código Civil, expressamente adotou o princípio do fim social para os contratos, além da boa-fé dos negócios jurídicos em geral.
Nesse sentido, interessante decisão do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário n.º 107.361-6, votação unânime, dispõe que:
“Dentro do mesmo raciocínio, ao reduzir-se o valor de uma indenização a parte insignificante do prejuízo efetivamente verificado, parece ser a negação do próprio princípio que assegura a obrigação do pagamento dessa indenização. O Supremo Tribunal, com base em texto legal que reputa não escrita “qualquer cláusula” restritiva ou modificativa da obrigação do transportador (art. 1.º, do Decreto n.º 19.473/30), proclamou, na Súmula n.º 161, a inoperância da cláusula de não indenizar, não vejo como conciliar, com esse enunciado, a degradação de ressarcimento de uma importância mais de uma centena de vezes menor do que o prejuízo efetivo, a ponto de não chegar a compensar a antecipação dos encargos financeiros necessários ao ajuizamento da demanda.”
Igual entendimento teve o Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n.º 644-89.0009917-5-SP:
“Direito comeracial – Transporte marítimo – Cláusula limitativa de responsabilidade do transportador – O Decreto n.º 19.473, de 10.12.30, em seu art. 1.º, reputa não escrita qualquer cláusula restritiva ou modificativa da obrigação e tanto equivale a limitação a valor irrisório do montante da indenização, precedente do STF.”
Limitar a responsabilidade, repita-se pela última vez, é o mesmo que não indenizar e, por via de conseqüência, ofender postulados e primados importantes do Direito pátrio.
Começando por princípios fundamentais do Direito, uns de índole geral, outros de natureza constitucional, todos, contudo, informadores de qualquer interpretação legal e, mais importante, aplicação do Direito.
Tais cláusulas ofendem fundamentos como a eqüidade, a razoabilidade, a proporcionalidade e o bom-senso.
A imposição de tais cláusulas, ao exclusivo alvedrio da ré faz letra morta qualquer alusão ao “pacta sunt servanda”, sendo curial notar que outro aforismo cabe na hipótese em questão: “pacta non possunt facere licita quae alias illicita sunt”.
Relevante consignar que, mesmo sem se remeter às regras do Código de Defesa do Consumidor, os princípios jurídicos que regem os contratos coíbem o abuso, notadamente ao se observar o dirigismo contratual decorrente da forma adesiva de contratação, como aliás é o caso vertente.
Além do mais, o princípio da força obrigatória veio a ser mitigado com teorias e teses diversas, desde a da imprevisão até a da boa-fé objetiva, passando pela função social das obrigações e, ainda, a expressa vedação ao abuso de Direito.
Afinal, o Direito não se presta ao torto; e, em termos contratuais, poucas coisas são mais tortas e obscenas do que as combatidas e odiosas cláusulas limitativas e/ou exonerativas de responsabilidade. Tudo isso diante da vertiginosa velocidade de modificação, por vezes profunda, que a sociedade contemporânea passou a experimentar em seu modus vivendi, impedindo que as avencas permaneçam estáticas e imunes a tal evolução.
Nos dias correntes, impossível eventual apego a literalidade das cláusulas contratuais, desrespeitando-se princípios maiores e regras legais abertas, como as que tratam da boa-fé objetiva (art. 422, Código Civil).
Como anota com invulgar precisão Orlando Gomes: “o direito moderno não mais admite os contratos de “direito estrito”, cuja interpretação é literal. As partes contratantes devem atuar com lealdade e inspirar recíproca confiança, subordinando-se ao interesse da sociedade quanto à segurança das relações jurídicas e do aperfeiçoamento da relação negocial.”.[6]
Ainda mais em sentido tem a inteligência jurídica acima em se tratando de um contrato de adesão, em que as disposição são, como já se disse, impostas unilateralmente pelo transportador marítimo, de forma coativa, sem qualquer disposição de vontade por parte do contratante, refém do arbítrio e do abuso da outra parte.
Rechaçar qualquer cláusula contratual que dispõe sobre limitação de responsabilidade e dar preferência à idéia de função social das obrigações e aos princípios (regras legais) da função social, probidade e boa-fé objetiva das obrigações.
Nesse sentido, especificamente sobre a função social dos contratos em geral, interessante o posicionamento de Ramon Mateo Junior[7], ao comentar o conteúdo do artigo 421 do Código Civil:
“Diante dessas disposições legais, verificamos uma mudança na mens legem do Código novo em relação ao atual. A lei opera um avanço na concepção da finalidade da relação jurídica contratual. De fato, até hoje adotamos, nos contratos em geral, o denominado modelo liberal como sendo um inabalável paradigma, estabelecendo-se um dogma entre os operadores do direito em torno dos princípios da autonomia da vontade e força obrigatória, desde que livremente formalizados e com observância da ordem pública e aos bons costumes.
(...)
Em outras palavras, não somos tão livres para contratar como pensamos. Ao contrário, estamos direcionados para assumirmos obrigações em busca de uma vida melhor, como exigência de respeito e sucesso no meio social. Tudo programado pelo ideal consumerista que desde cedo ensinamos aos nossos filhos.”.
A boa-fé objetiva é um princípio geral, aplicável ao Direito das Obrigações, especialmente em relação a sua principal fonte: os contratos, e que agora, diga-se, com o advento do Código Civil de 2002, veste o manto de regra legal em sentido estrito, ainda que aberta.
Também se dá à aplicação de metido hermenêutico-integrativo, com vistas a interpretação da declaração de vontade, ajustando a relação jurídica à função social (e econômica) determinável no caso concreto.
Em outras palavras, segundo o ótimo e elucidativo entendimento de Cibele Pinheiro Marçal Cruz e Tucci[8]: “(...) conferem-se efeitos jurídicos à justa e razoável expectativa de produção dos resultados práticos que normalmente adviriam do negócio (o fim típico), tomadas as circunstâncias especiais de cada caso concreto, ainda que o rigor formal da lei ou a interpretação literal do contrato estabeleça a produção de efeitos diversos. Cuida-se de prestigiar a confiança do contratante na lealdade sugerida pelos costumes e, por isso mesmo, tornada exigível da contraparte.”.
A teoria da boa-fé objetiva ajusta-se melhor à idéia de que o contrato, muito mais do que uma relação jurídica bipolarizada, constitui um processo através do qual as partes buscam a consecução de fins previamente estabelecidos, mediante a reunião de esforços e cooperação mútua. O fim comum do contrato é a satisfação dos interesses contrapostos das partes.
Considerando a importância do tema, que a reboque expressa a figura da probidade, convém fazer nova menção ao mesmo trabalho de Ramon Mateo Junior[9]: “A boa-fé objetiva é concebida como uma regra de conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração de que todos os membros da sociedade são juridicamente tutelados, antes mesmo de serem partes nos contratos. O contraente é pessoa e como tal deve ser respeitado. (...) Esse comportamento pode ter como paradigma o amor ao próximo pregado pelo Cristianismo. Sem dúvida, não há melhor parâmetro para se verificar a retidão de um comportamento.”
Quem, por qualquer motivo, defende a eficácia de tais cláusulas, age imantado de má-fé e contrariamente aquilo que se tem como mais arejado e avançado em termos de Direito.
Mesmo antes de todas estas figuras legais acima reportadas, suficientemente hábeis para o espancamento de qualquer discussão a respeito do assunto, os operadores do Direito, com base na jusfilosofia inclusive, já comungavam de tal posicionamento, como atesta a Sentença, abaixo parcialmente reproduzida, da lavra do Magistrado Amable Lopes Soto, nos autos do Processo nº 1.867/97, tramitado pela Douta Décima Vara Cível de Santos:
“Vejamos agora a assertiva da cláusula de máximo de indenização.
Como bem afirmou a autora, a tese de limitação é, in casu, “ilegal, antipatriótica e amoral”.
O Supremo Tribunal Federal já firmou que é nula a cláusula de não indenizar (Súmula nº 161) e, pelas mesmas razões, nula também é a cláusula que restringir a indenização.
Toda mercadoria tem um preço e sobre este, aliado a outros fatores, tais como peso e volume, extrai-se o preço do frete.
Ora, não é dado ao importador influir no contrato de transporte, via de regra não tem o direito sequer de escolher o transportador, sendo pois a limitação da responsabilidade uma violência aos interesses do importador que causa tão-somente a incerteza de receber a mercadoria transportada e pré-paga.
À luz do Código do Consumidor, há flagrante abuso econômico, viciando a livre manifestação de vontade.
Sendo assim, devemos ter a cláusula como não escrita, por consequência, responde o transportador pelo dano causado, na sua integralidade.”
Especificamente sobre o transporte aéreo, mas sendo perfeitamente aplicável aos demais modais de transporte, especialmente o marítimo, até em razão da profunda intimidade entre todos, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA já se manifestou expressamente, pondo derradeira pá de cal no tema limitação de responsabilidade:
RECURSO ESPECIAL Nº 224.554 - SP (1999/0067188-0)
RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI
Agravante: TAP AIR PORTUGAL
Agravada: BRADESCO SEGUROS S/A
EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSOESPECIAL. TRANSPORTE AÉREO. EXTRAVIO DE MERCADORIA. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. APLICAÇÃO. PRESCRIÇÃO. PRAZO.
Aplicam-se as disposições do Código de Defesa do Consumidor à reparaçãopor danos provenientes de extravio de mercadorias, ocorrido em transporteaéreo internacional, e não a responsabilidade tarifada da Convenção de Varsóvia.
A prescrição da pretensão indenizatória por danos decorrentes do extravio de mercadoria, objeto de transporte aéreo, ocorre em 20 anos, de acordo com o Código Civil, e não em 30 dias, como na reclamação por vício de serviço amparado pelo CDC.
Agravo a que se nega provimento
(publicado DJU em 25.02.02)
RESPONSABILIDADE CIVIL - EXTRAVIO DE MERCADORIA - TRANSPORTE AÉREO -APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS INSCULPIDOS PELO CDC - REPARAÇÃO INTEGRAL DOS DANOS CAUSADOS.
I - Os limites indenizatórios constantes da Convenção de Varsóvia não se aplicam à relações jurídicas de consumo, uma vez que, nas hipóteses como a dos autos, deverá haver, necessariamente, a reparação integral dos prejuízos sofridos.
II - Recurso Especial conhecido e provido.
Voto do Relator:
"Isso porque, este tipo de avença encontra-se sob o império da mencionada lei, eis que a empresa transportadora enquadra-se na definição de fornecedor do artigo 3º, bem como o serviço por ela prestado ajusta-se à noção de serviço constante do § 2º."
(STJ - Relator: Min. Waldemar Zveiter; Acórdão Unânime da 3ª Turma; julg.19.02.2001; Recurso Especial n.º 218.383-SP (1999/0050313-9)
Prosseguindo com a presente fundamentação jurídica contrária à limitação de responsabilidade em favor do transportador marítimo de carga como pretende a emenda 56:
Os adversários do presente e sólido entendimento, fazem verdadeira ginástica jurídica para emprestar a cláusula limitativa de responsabilidade a moralidade que ela não tem, até por ser cláusula abusiva e que gera o desequilíbrio nas relações contratuais.
Contrariando o posicionamento sólido cós Tribunais brasileiros, incluindo os superiores, lançam luzes numa única decisão do STJ a favor da clausula, ignorando, maliciosamente, as particularidades do caso concreto que a ensejou e a sua não aplicação aos casos simples de descumprimentos obrigacionais.
Teses acerca de aplicação, por meio de sofisticada, mas vazia, interpretação sistêmica, de uma ou outra Convenção maritimista internacional, também são constantemente lançadas, tudo com o objetivo deliberado de se conquistar, num dado caso concreto, uma vantagem supostamente legal, mas que em essência é antijurídica, ilegal e imoral.
Num recente caso concreto, no qual atuei como advogado de um proprietário de carga prejudicado pelo grave inadimplemento contratual do transportador marítimo, tive a oportunidade, no exercício da capacidade postulatória, de combater a aplicação e a incidência da limitação de responsabilidade, invocada pelo transportador marítimo, com base numa convenção internacional ligada ao Direito Marítimo.
Nenhuma Convenção Internacional de natureza maritimista pode limitar a responsabilidade do transportador marítimo porque o Brasil não foi signatário de qualquer uma delas, salvo a de Hamburgo, mas que até hoje não vige no sistema legal do país porque não foi ratificada pelo Congresso Nacional.
Daí o erro sem medida de quem defende a limitação de responsabilidade, especialmente aquela mencionada na Convenção de Haia-Visby, pois esta faz menção ao contrato de transporte marítimo e, este, até por ser de adesão e com cláusulas impressas, tem grande parte do seu conteúdo repudiado pelo Direito brasileiro.
O conteúdo da contestação, abaixo reproduzido, é interesse e merece ser lido, até para melhor orientação a respeito do tema.
A pretensão declaratória da autora não se sustenta porque a Convenção Internacional invocada não é aplicável
A autora alega que é preciso atentar e reconhecer a Vigência de uma Convenção Internacional, supostamente aplicável ao Brasil, e da limitação de responsabilidade nela prevista.
Para tanto, faz uso de uma robusta argumentação que vai desde o uso inadequado das Sagradas Escrituras até esquálido resumo jurisprudencial, sendo ainda desconexo com o verdadeiro bem da vida do caso concreto.
Pois bem, a ré já afirma o que é óbvio: o Brasil não aderiu a nenhuma das Convenções Internacionais relativas ao Direito Marítimo.
Em verdade, o Brasil é signatário de uma, a de Hamburgo, dos anos setenta do século passado, mas esta Convenção não foi incorporada ao sistema legal do país porque até o presente momento não foi ratificada pelo Congresso Nacional.
E mesmo que venha a ser ratificada, será necessário o enfrentamento dos termos da Convenção com os da Constituição e do sistema legal como um todo.
Como visto antes e exposto nesta contestação, nenhuma norma convencional pode determinar o acutilamento de direitos e impor, por exemplo, figuras abominadas pelo ordenamento jurídico pátrio, tais como o dirigismo contratual e a limitação de responsabilidade.
Assim, ferida de morte a pretensão da autora por vício insanável, a um só tempo formal e substancial.
A limitação de responsabilidade é apenas (e mesmo assim parcialmente e mediante grande discussão doutrinária-jurisprudencial) aceita no transporte aéreo internacional, por meio da Convenção de Varsóvia, bisada pela de Montreal.
O Brasil foi signatário dessas Convenções e elas estão no ordenamento jurídico pátrio, devidamente calibradas pelo mesmo ordenamento, e apenas e exclusivamente voltadas ao transporte aéreo de cargas.
Boa parte das decisões no transporte aéreo não reconhece a validade e a eficácia da Convenção no que tange à limitação e a parte que a reconhece, mesmo assim, o faz de forma parcimoniosa, vedando sua aplicação para casos de erros graves, de culpas graves e para os inadimplementos contratuais simples.
Aliás, a própria Convenção de Varsóvia tem uma norma específica dispondo que em caso de culpa grave do transportador, a limitação não pode ser aplicada.
Retornando aos mares do Direito Marítimo, vê-se ainda e com mais razão que é impossível se falar, sequer se cogitar em limitação de responsabilidade, pois a Convenção aludida pela autora não se encontra em vigência no Brasil.
Falaciosa, portanto, a afirmação de ser aplicável a limitação de responsabilidade prevista na Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras Relativas à Limitação de Responsabilidade dos Proprietários de Embarcações Marítimas.
Isso porque a referida Convenção NUNCA FEZ PARTE DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO.
A autora alega, deformando a verdade, que a Convenção foi firmada também pelo Brasil na cidade de Bruxelas no dia 25 de agosto de 1924, por ocasião da Conferência Internacional de Direito Marítimo, sendo o depósito do instrumento de ratificação e depósito feito no Brasil em 28 de abril de 1931.
Ocorre que JAMAIS FOI RATIFICADO PELO CONGRESSO NACIONAL, donde se extrai a CERTEZA dela nunca ter vigido no Brasil, como provam as milhares de decisões judiciais de 1931 até 2013 não reconhecendo a limitação de responsabilidade.
Tanto assim que a autora, insistindo em deformar a verdade e empregando técnica jurídica surreal, alega que a ratificação foi supostamente aprovada ex-vi pelo disposto no artigo 18 dos Atos das Disposições Transitórias da Constituição Federal.
E, ainda, alega em favor da sua tese pirotécnica o Decreto Executivo 350, de 1 de outubro de 1935, cujo conteúdo supostamente internalizou a Convenção.
Ora, Excelência, basta ver o que o Poder Judiciário decidiu nos últimos SETENTA E CINCO ANOS para perceber que os JUÍZES, a quem cabe dizer o Direito ao caso concreto, NÃO ENTENDEM DA MESMA FORMA QUE A AUTORA E SOMENTE ELA ENTENDE A QUESTÃO.
Aliás, nem mesmo os advogados que defendem os interesses dos transportadores marítimos têm a mesma visão sustentada pela autora, sendo ela voz morta na matéria, expondo-se à contraposição de seus pares.
E se fosse o caso de se reconhecer a validade da absurda tese da autora, é de se sublinhar que a referida Convenção deixou de ter vigência no plano internacional por forma da CONVENÇÃO DE ROTERDÃ, cujo objetivo foi e é o de unificar todas as convenções, tornando-as sem efeito.
O Brasil ainda não assinou a referida Convenção e provavelmente não o fará, porque prejudicial aos seus interesses, enquanto país “cargo”.
Logo, duplamente sem sentido a alegação da autora, pois ainda que sua inverossímil tese fosse válida, a Convenção destacada já não mais estaria em vigor, em todo o mundo, por conta da Convenção de Roterdã, sendo certo que esta não estaria, como não está, em vigor no Brasil porque o país não a assinou.
E tudo é tão sério que a própria Comissão que a elaborou enfatizou na EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS que não se pode emprestar às Convenções passadas o mesmo valor de então, haja vista as mudanças significativas, sobretudo tecnológicas, no universo da navegação.
Assim, aos olhos dos elaboradores da Convenção, além de deixar de existir por conta da nova Unificação feita pelas REGRAS DE ROTERDÃ, a Convenção de Bruxelas não teria mais o vigor passado por conta das mudanças do mundo, esvaziando e muito o seu significado.
Para melhor compreensão de Vossa Excelência, a ré reproduz a exposição de motivos, absolutamente emblemática e em rota de colisão com os argumentos da autora:
REGRAS DE ROTERDÃ: PARTE INICIAL
Assembléia Geral
63ª sessão
Item da agenda nº 74
Resolução adotada pela Assembleia Geral
[sobre o relatório do Sexto Comitê (A/63/438)]
63/122. Convenção das Nações Unidas a respeito dos Contratos para Transporte Internacional de Cargas Integralmente ou Parcialmente por Mar
A Assembléia Geral,
Referindo-se a sua resolução 2205 (XXI) de 17 de dezembro de 1966, através da qual estabeleceu a Comissão das Nações Unidas de Comércio Internacional com um mandato para prolongar a harmonização progressiva e unificação da lei de comércio internacional, e assim ter em mente o interesse de todos os povos, especialmente aqueles dos países em desenvolvimento, no crescimento extensivo e abrangente do comércio internacional,
Preocupada que falte uniformidade ao presente regime legal, que governa o transporte de cargas por mar, e que falhe ao levar em consideração de forma adequada as técnicas modernas de transporte, incluindo o transporte em containers, contratos de transporte porta-a-porta e o uso de documentos eletrônicos de transporte,
Percebendo que o desenvolvimento do comércio internacional com base na igualdade e benefícios mútuos é um elemento importante na promoção de relações amigáveis entre os Estados,
Convicta que a adoção de regras uniformes a fim de modernizar e harmonizar as regras que regem o transporte internacional de cargas que envolvam o trajeto por mar virá aumentar a certeza legal, melhorar a eficiência e a previsibilidade comercial no transporte internacional de cargas, e reduzir obstáculos legais ao fluxo do comércio internacional entre os Estados.
Acreditando que a adoção de regras uniformes para administrar os contratos internacionais de cargas transportadas total ou parcialmente por mar promoverá certeza legal, melhorará a eficiência do transporte internacional de cargas e facilitará novas oportunidades de acesso para mercados e partes distantes, assumindo um papel fundamental na promoção do comércio e do desenvolvimento do mesmo, em âmbito doméstico e internacional,
Notando que exportadores e transportadores não possuem o benefício de um regime universal compulsório e equilibrado, que dê suporte à operação de contratos de transporte envolvendo várias modalidades de transporte,
Lembrando que em suas trigésima-quarta e trigésima-quinta sessão em 2001 e 2002, respectivamente, a Comissão decidiu preparar um documento internacional para supervisionar as operações de transporte porta-a-porta que envolva o trajeto por mar,
Reconhecendo que todos os Estados e organizações internacionais interessadas foram convidados a participar da preparação do rascunho do Contrato de Convenção para Transporte Internacional de Cargas Total ou Parcialmente Marítimo e na quadragésima - primeira sessão da Comissão tanto como membros como espectadores, com oportunidade total para falar e fazer propostas,
Observando com satisfação que o texto do rascunho da Convenção foi distribuído para ser comentado a todos os Estados membros das Nações Unidas e organizações intergovernamentais convidadas a participarem
Das reuniões da Comissão como espectadores, sendo que os comentários recebidos referem-se à Comissão na sua quadragésima – primeira sessão, (2)
Constatando com satisfação a decisão da Comissão em sua quadragésima – primeira sessão de submeter o rascunho da Convenção às considerações da Assembleia Geral, (3)
Atentando ao rascunho da Convenção aprovado pela Comissão, (4)
Expressando seu apreço pela oferta do Governo das Holanda em abrigar uma cerimônia para assinatura da Convenção em Roterdã,
1. Sugere que a Comissão das Nações Unidas sobre Lei de Comércio Internacional por preparar o rascunho do Contrato de Convenção para Transporte Internacional de Cargas Total ou Parcialmente Marítimo;
2. Adota a Convenção das Nações Unidas sobre Contratos para Transporte Internacional de Cargas Total ou Parcialmente Marítimo, contida em anexo a esta presente resolução;
3. Autoriza a cerimônia de abertura para a assinatura a ser realizada em 23 de setembro de 2009 em Roterdã, Holanda, e recomenda que as regras incorporadas na Convenção sejam conhecidas como “Regras de Roterdã”;
4. Conclama todos os Governos a considerarem-se parte desta Convenção.
67ª reunião de plenário
11 de dezembro de 2008
Reprodução do Anexo: exposição de motivos
Convenção das Nações Unidas sobre Contratos para Transporte Internacional de Cargas Total ou Parcialmente por Mar;
Os Estados Partes na presente Convenção,
Reafirmando sua crença que o comércio internacional com base na igualdade e mútuo benefício é um elemento importante para a promoção de relações amigáveis entre os Estados,
Convictos que a harmonização gradual e a unificação da lei de comércio internacional, reduzindo ou removendo obstáculos legais ao fluxo do comércio internacional, contribuem de forma significativa à cooperação econômica universal entre os Estados, com base na igualdade, justiça, interesses comuns e para o bem estar de todos os povos,
Reconhecendo a contribuição significativa da Convenção Internacional para Unificação de Certas Regras de Lei relativas aos Conhecimentos de Embarque, assinados em Bruxelas em 25 de agosto de 1924, e seus Protocolos, e da Convenção das nações Unidas sobre o Transporte de Cargas por Mar, assinado em Hamburgo em 31 de março de 1978, à harmonização da lei que regula o transporte de cargas por mar,
Atento ao desenvolvimento comercial e tecnológico que ocorreu desde a adoção de tais convenções e a necessidade de consolidá-las e modernizá-las,
Reconhecendo que exportadores e transportadores não têm o benefício de um regime universal compulsório e equilibrado, que dê suporte à operação de contratos de transporte marítimo, envolvendo várias modalidades de transporte,
Acreditando que a adoção de regras uniformes para governar contratos internacionais de transporte total ou parcialmente por mar promoverá segurança jurídica, melhorará a eficiência do transporte internacional de cargas e facilitará novas oportunidades de acesso para mercados e partes distantes, assumindo um papel fundamental na promoção do comércio e do desenvolvimento do mesmo, em âmbito doméstico e internacional,
A reproduzida exposição de motivos é um elemento a mais no cadinho da defesa e cuja alquimia mostra o quão errada e distância está a autora da verdade, atestando a idéia de litigância de má-fé da autora.
Trazendo a discussão para o plano nacional, fosse o caso de se reconhecer a vigência da Convenção, ainda assim as regras limitadoras de responsabilidade nela estampadas não teriam qualquer guarida, porque a visão tridimensional do Direito, exposta pelo renomado jurista Miguel Reale, já seria suficientemente hábil para rechaçar a aplicação, uma vez que os fatos, hoje, não são os mesmos de setenta anos atrás.
Ora, os fatos hoje não são os mesmos do passado já distante e as novas tecnologias e a presente dinâmica do transporte marítimo não autoriza a aplicação de uma Convenção que é manifestamente injusta, indevida e absolutamente contrária aos legítimos interesses dos proprietários de carga.
A tradição brasileira sempre foi a de impor ao transportador graves legais substanciais. Prova disso é que desde os tempos do Império até o presente Código Civil, a responsabilidade do transportador marítimo foi disciplinada pelo critério da teoria objetiva imprópria, implicando presunção legal de responsabilidade em caso de inadimplemento e dever de ampla reparação civil.
Assim, a figura da limitação de responsabilidade, prevista em contratos de adesão, nunca foi recepcionada pelo ordenamento jurídico brasileiro, porque injusta, indevida e até mesmo refratária aos princípios gerais do direito e à própria ordem moral.
Além do que já foi comentado em termos de doutrina e de jurisprudência, muito aproveita reproduzir mais uma fonte legal que expressamente diz que NUNCA a Convenção alegada pela autora vigorou no sistema legal brasileiro, pondo derradeira pá de cal na discussão.
A decisão evidencia que o Brasil NUNCA RATIFICOU a referida Convenção, razão pela qual toda a alegação da autora é despida de confiabilidade:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO DE TRANSPORTE MARÍTIMO INTERNACIONAL. DEMURRAGE. MAGISTRADO A QUO QUE JULGA PROCEDENTES OS PLEITOS VAZADOS NA EXORDIAL. IRRESIGNAÇÃO DA DEMANDADA. PREFACIAL DE NULIDADE DA TUTELA JURISDICIONAL GUERREADA SOB O FUNDAMENTO DE QUE O ESTADO-JUIZ DE ORIGEM ANCOROU-SE NA CONVENÇÃO DE BRUXELAS DE 1924, QUE O BRASIL, APESAR DE SIGNATÁRIO, NÃO RATIFICOU. INOCORRÊNCIA. JULGADOR QUE SEQUER UTILIZOU ESSE DIPLOMA LEGAL COMO PARÂMETRO PARA CERTIFICAR À DEMANDANTE O DIREITO RECLAMADO. PRELIMINAR NATIMORTA. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. NECESSIDADE DE CONFIGURAÇÃO DE UMA DAS PARTES COMO DESTINATÁRIO FINAL. EXEGESE DO ART. 2º DO SUSO APONTADO DIPLOMA LEGAL. ENFOQUE DA QUAESTIO CONSOANTE A TEORIA FINALISTA ATENUADA. IMPRESCINDIBILIDADE DE OBSERVÂNCIA DA INTERESSADA CONFORME SUA VULNERABILIDADE NO MERCADO. RECORRENTE QUE POSSUI COMO OBJETO SOCIAL A IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO DE MERCADORIAS. PRODUTO QUE SE INSERE NA SUA CADEIA NEGOCIAL COMO SENDO "MEIO". CASUÍSTICA QUE NÃO SE ENCONTRA SOB O MANTO DO PERGAMINHO CONSUMERISTA. CONTRATO DE ADESÃO. NEGÓCIO JURÍDICO ENTABULADO COMO SENDO FORMULÁRIO. OBSERVÂNCIA AOS ARTS. 423 E 424 AMBOS DO CÓDIGO CIVIL. INOCORRÊNCIA DE EXCESSIVIDADE DO VALOR COBRADO A TÍTULO DE SOBRE-ESTADIA. INVIABILIDADE DE APLICAÇÃO DO ART. 157 DO CÓDIGO CIVIL, QUE AÇAMBARCA A TEORIA DA LESÃO. INTERESSADA QUE NÃO SE MOSTRA INEXPERIENTE NO RAMO DE IMPORTAÇÃO, PORQUANTO ESSE É UM DE SEUS OBJETOS SOCIAIS, ALÉM DE QUE NÃO RESTOU COMPROVADA A PREMENTE NECESSIDADE. ÔNUS QUE LHE INCUMBIA. ART. 333, INCISO II, DO CÓDIGO BUZAID. DEMANDANTE QUE, ADREDAMENTE, LEVOU AO CONHECIMENTO DA RECORRENTE A FRANQUIA DE 10 (DEZ) DIAS DE ESTADIA DOS CONTAINERS NO PORTO, ALÉM DE TER APONTADO CRISTALINAMENTE O VALOR DIÁRIO DA DEMURRAGE. DEMANDADA QUE DEU CAUSA AO MONTANTE COBRADO EM RAZÃO DA NÃO DEVOLUÇÃO DOS CONTAINERS. SENTENÇA CONDENATÓRIA MANTIDA. ADITAMENTOS INCIDENTES SOBRE O VALOR PERSEGUIDO NA LIDE. ESTADO-JUIZ A QUO QUE ESTIPULOU O CÔMPUTO DE CORREÇÃO MONETÁRIA DESDE A DATA DA PETIÇÃO INICIAL E JUROS MORATÓRIOS DE 1% A CONTAR DA CITAÇÃO. MATÉRIAS JÁ DEFINIDAS NA ORIGEM E NÃO DEVOLVIDAS A ENFOQUE A ESTA CORTE. PRECLUSÃO. LACUNA QUANTO AO ÍNDICE DE RECOMPOSIÇÃO DO PODER DE COMPRA DA MOEDA E PERIODICIDADE DE COBRANÇA DOS JUROS DE MORA. PERMISSIVIDADE DE COMPLÇÃO DE OFÍCIO DA SENTENÇA NESSES ASPECTOS, PORQUANTO DECORRENTE DE LEI. CORREÇÃO MONETÁRIA QUE DEVE OBSERVAR A VARIAÇÃO DO INPC/IBGE. PROVIMENTO N. 13/95 DA CORREGEDORIA-GERAL DA JUSTIÇA DESTE AREÓPAGO. JUROS MORATÓRIOS LIMITADOS EM 1% QUE POSSUEM EXIGÊNCIA MENSAL. EXEGESE DOS ARTS. 406 DO CÓDIGO CIVIL E 161, § 1º, DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. SUCUMBÊNCIA. TUTELA JURISDICIONAL PROFLIGADA QUE SE MANTEVE INCÓLUME. RECORRENTE QUE PERMANECE LETÁRGICA EM PLEITEAR PELA MODIFICAÇÃO DESSE ÔNUS. ASSUNTO QUE SE INSERE NO ÂMBITO DE DISPOSIÇÃO DA INTERESSADA. OBSERVÂNCIA AOS PRINCÍPIOS DISPOSITIVO E INÉRCIA DA JURISDIÇÃO. VERBA QUE PERMANECE TAL QUAL VAZADA NA ORIGEM. RECURSO DESPROVIDO.CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR423424CÓDIGO CIVIL157CÓDIGO CIVIL406CÓDIGO CIVIL161§ 1º CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL
(748410 SC 2008.074841-0, Relator: José Carlos Carstens Köhler, Data de Julgamento: 21/06/2011, Quarta Câmara de Direito Comercial, Data de Publicação: Apelação Cível n. , de Itajaí)
Daí dizer que existem vários motivos pelos quais a tese da autora não pode prevalecer e é típica de aventura jurídica:
Sumariamente: 1) o Brasil nunca ratificou a Convenção de Bruxelas, razão pela qual ela nunca entrou no ordenamento jurídico brasileiro; 2) Ainda que fosse o caso de se considerar a validade e a eficácia dela, tem-se que ela foi obliterada pelas Regras de Roterdã, não assinadas pelo Brasil, mas que no plano internacional, entre os Estados signatários, unificou todas as convenções internacionais maritimistas anteriores e 3) a limitação de responsabilidade é algo que o Direito brasileiro não reconhece porque contrária ao sistema legal como um todo.
Além disso, tudo, quando a tese da autora é confrontada com o caso concreto, tem-se que a aplicação é ainda prejudicada porque o sinistro não diz respeito ao cumprimento ou não de um contrato de transporte internacional de carga, mas aos danos e prejuízos provocados, extracontratualmente, pela autora.
Um caso informado pela responsabilidade civil subjetiva e que tem o conceito de culpa grave, inescusável, equiparada ao quase-dolo, como figura central do sinistro.
E num caso como este, ainda que houvesse previsão legal pela limitação de responsabilidade, a sua aplicação não se daria, pois em se tratando de um dano fora do contrato de transporte, qualquer discussão acerca do seu clausulado é desnecessária.
Não há como se emprestar um mínimo de seriedade ao pleito da autora.
O conteúdo da defesa acima reproduzida, modéstia à parte, é praticamente um pequeno artigo sobre o assunto e mostra, com riqueza de detalhes, os argumentos jurídicos e os fundamentos pelos quais não pode a limitação de responsabilidade ser aplicada, qualquer que se a alegação em seu favor.
Se a parte que litiga contra o transportador marítimo for seguradora da carga, legalmente sub-rogada após o pagamento da indenização ao segurado, o consumidor original, o credor primitivo, da obrigação de transporte, ainda mais sem sentido se torna a alegação da limitação contratual.
Isso porque a seguradora não foi parte, nem mesmo por estipulação, do contrato de transporte (com termos impostos pelo transportador marítimo, unilateralmente) e a discussão do pagamento do suposto frete “ad valorem”, cai por terra, vê-se ferido de morte.
Não pode o direito ser acutilado de forma tão traumática por uma disposição contratual, especialmente uma da qual a seguradora não foi parte efetiva.
Ora, se a discussão em torno do chamado frete “ad valorem” já não tem sentido relativamente ao consignatário da carga – na medida em que a suposta liberdade de escolha é uma forma de coação às avessas, com oneração excessiva e inviável do custo de transporte –, ainda mais sem sentido e até mesmo abusiva e casuística, além de ilegal e inconstitucional, a imposição ao segurador sub-rogado.
Prevalecendo tal entendimento, a sub-rogação seria atingida visceralmente e, com ela, o Enunciado de Súmula 188 do STF que diz: O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro.
Ora, em termos práticos, se já fosse vigente a limitação, o segurador não conseguiria o ressarcimento do valor integral que pagou ao segurado e isso geraria a afronta do seu direito e da Súmula em destaque, ao tempo em que sangraria e muito a garantia fundamental constitucional da reparação civil ampla e integral.
O reflexo seria imediato no campo do direito securitário e, por sua vez, na economia como um todo, com desdobramentos sérios e complexos.
A limitação de responsabilidade, é preciso que se diga, facilitaria e facilitará, se reconhecida pelo Poder Judiciário, a vida dos transportares eivados de má-fé, pois cargas de elevados valores agregados seriam extraviadas e aos transportadores bastaria pagar as indenizações tarifadas, de tal maneira que, para eles, a máxima de que o crime não compensa não seria verdadeira. O crime seria e será algo compensador, ao menos aos transportadores inidôneos e que não zelam por seu bom nome empresarial.
E não é sem sentido a preocupação com a criminalidade, especialmente num meio volátil como o maritimista em que poucos são os armadores verdadeiramente sérios e absolutamente idôneos.
Tal preocupação e outras menos graves diz respeito a racionalização dos contratos de adesão e da preocupação de se coibir as cláusulas abusivas.
Nunca é demais enfatizar que a rigor, a cláusula que limita a responsabilidade, em tudo equiparada à cláusula de não indenizar, é uma cláusula abusiva por excelência.
A verdade é que a cláusula limitativa de responsabilidade, à luz do caso concreto, deve ser interpretada sempre “contra proferente”, ou seja, contra quem a proferiu, uma vez que redigida exclusivamente pelo transportador, pelo fornecedor do serviço.
Exatamente o que afirma Wanderley Fernandes: “Nos contratos de adesão, essa regra de interpretação tem sido plenamente admitida pela doutrina e pela jurisprudência. No Brasil, a regra da interpretatio contra proferentem alçou condição de regra legal de interpretação, nos termos do artigo 423 do Código Civil” (Cláusulas de exoneração e de limitação de responsabilidade, Saraiva, São Paulo: 2013).
Ora, ainda que se queira aceitar a validade e a eficácia da cláusula limitativa de responsabilidade, não se poderia deixar de ter em alça de mira tal e inafastável critério de interpretação.
Em sendo assim, aos olhos do Direito brasileiro, somente uma hipótese poderia contemplar, eventualmente, em caráter extraordinário, muito especial, a aplicação (e mesmo assim calibrada) da limitação: um grande sinistro com a perda total do navio e de todas as cargas, desde que não houvesse prova de conduta manifestamente culposa do navio e, ainda, o perdimento das cargas fosse de tal envergadura econômica, de tal impacto, que a sobrevivência da empresa restasse comprometida (tudo segundo os ditames da teoria da preservação da empresa e conforme singularidades do sinistro).
Vê-se, portanto, o caráter essencialmente excepcional de aplicação da limitação.
Nos sinistros cotidianos, caracterizados por faltas e avarias, com ou sem a presença, num caso concreto, de avaria grossa, o fato é que não se aplica a cláusula limitativa de responsabilidade, tendo-se em conta o mosaico vasto de vícios legais que ela contém.
A limitação é um benefício que, a despeito de sua abusividade, impertinência e antijuridicidade, só pode ser aplicado e restritivamente em casos extremamente pontuais e extraordinários, tendo-se por objetivo a defesa de bens maiores e, ainda assim, sem prejuízos acentuados às vítimas diretas do caso, os donos de cargas ou seu seguradores.
Tudo dentro de uma dinâmica de equilíbrio e busca da justiça, observando-se o arquétipo da função social da obrigação contratual.
Nada disso, porém, se harmoniza com o sinistro simples, grave ou não, contornado ou não por avaria grossa, muito menos a idéia de culpa em sentido estrito. A inexecução da obrigação de resultado assumida deve, a rigor, propiciar a reparação civil mais ampla possível, compensando-se a parte credora e punindo-se, a devedora.
Há componente de justiça em tal concepção do Direito e quando se defende a Justiça, defende-se a moral, experiência que a defesa da limitação de responsabilidade insiste em deixar de lado.
O transportador que não cumpre fielmente sua obrigação contratual, não pode ser contemplado com a limitação do seu dever jurídico de indenizar, especialmente por conta de disposição contratual abusiva.
Aliás, impressionante a insistência dos transportadores, em lides forenses, no sentido de buscarem, mesmo depois de reiteradas derrotas nos casos concretos, a protelação os processos respectivos com recursos especiais, supostamente ancorados eventuais divergências jurisprudenciais.
Tais recursos morrem nos juízos de delibações, pois o STJ não pode rediscutir provas e a limitação de responsabilidade, ao menos no transporte marítimo, é contratual, não convencional. Logo, impedido o STJ de analisar o contrato novamente e, portanto, a tese da limitação.
Mesmo assim, sem constrangimento algum, as alegações são feitas e os processos atrasam sobremodo, mais teimosia obstinada e nesciente dos transportadores do que por culpa de qualquer outro fator.
Daí a importância dos juros moratórios de 1% ao mês de litígio, um mecanismo de calibragem capaz de conferir justiça pela demorada na solução de uma lide. A verdade é que o transportador assume uma obrigação de resultado e tem o dever de cumpri-la fielmente.
Não pode mitigar, quando da inexecução, os seus deveres, por conta de limitações tarifadas, especialmente quando estas são inseridas num contexto de flagrante abusividade.
Defender o contrário é, a um só tempo, desprestigiar a tradição jurídica brasileira, afrontar a lei e virar às costas à moral.
Sempre pensei isso e minha convicção foi sobremodo agravada com essa tentativa indecorosa de inserir a limitação de responsabilidade no PL que trata do novo Código Comercial.
Existem figuras legais constitucionais que inibem e muito a limitação de responsabilidade.
O princípio e garantia constitucional fundamental da reparação de dano integral e ampla não pode ser mitigado ou acutilado.
Nem a tradição jurisprudencial desprestigiada com uma canetada.
O cálculo da limitação é aviltante, como se vê no artigo 149 da emenda 56.
Nem é preciso ser habilidoso em matemática para notar os prejuízos que a limitação acarretará aos empresários, seguradores e a sociedade brasileira em geral, incluindo aí o Erário.
Os valores das indenizações são tarifados em patamares ínfimos pela referida regra, mesmo vis, inferiores aos critérios da Convenção de Hamburgo.
O Congresso Nacional corajosamente disse não ao governo federal dos anos 70, período de exceção política, negando-se a ratificar a assinatura presidencial na convenção.
Agora, o mesmo Congresso é induzido a erro para patrocinar um ataque ao sistema econômico nacional, com critérios de limitação de responsabilidade mais draconianos do que os da convenção de Hamburgo.
Se a emenda for aprovada como proposta, só os armadores ganharão, ao passo que o Brasil perderá.
Nenhum benefício será dado ao Brasil, mas apenas aos armadores estrangeiros, descompromissados com as coisas de imediato interesse da sociedade brasileira.
Os patamares vis confirmam o entendimento que sempre sustentei e agora incenso que limitar, sobretudo a montante baixo, é o mesmo que não indenizar, de tal modo que a súmula 188 do STF também é desprestigiada no caso de limitação. [igualmente desprestigiados o enunciado de Súmula 161 do mesmo Tribunal Superior e o art. 5º, da CF, relativamente à garantia da reparação civil ampla e integral]
A limitação em nada será aproveitada para o bem do Brasil.
O argumento que o frete será mais baixo é falacioso, infantil, para não dizer mentiroso.
Pelo contrário!
Tudo será muito onerado, a começar pelo seguro de transporte.
Um dos motivos pelos quais as seguradoras podem cobrar alíquotas relativamente baixas dos segurados, importadores e exportadores brasileiros, é exatamente a possibilidade que a lei brasileira oferece de ressarcimento em regresso amplo dos prejuízos indenizados.
Com a limitação, tal possibilidade será negada e consequentemente os riscos majorados, incluindo aí os prêmios dos contratos de seguro.
Dentro da natural cadeia de repasse dos custos, é o consumidor brasileiro quem, no final, arcará com os prejuízos e, às avessas, o próprio erário, já que a balança comercial, a médio prazo será desequilibrada.
Nunca é demais lembrar que a reparação do dano, ampla e integral, é uma garantia constitucional fundamental encartada no artigo 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais, cláusula pétrea da Constituição Federal.
Também é importante lembrar que o sistema legal brasileiro, dentro do respeito ao quanto determinado expressamente pela regra constitucional, orienta-se pelo princípio do “neminem laedere”, ou seja, que a “ninguém é dado causar dano a outrem”. Logo, não pode existir no Direito qualquer regra talhada a limitar a responsabilidade do causador do dano.
Também por isso, insisto, a regra da limitação da emenda 56 é inconstitucional.