A relevância do tema proposto origina-se da mudança de orientação iniciada no Superior Tribunal Militar a respeito do fiel cumprimento da norma estabelecida no artigo 130 do Código Penal Castrense.
O precedente ora invocado surgiu no julgamento do Recurso em Sentido Estrito nº 0000138-86.20107.11.0011-DF, interposto pela Defensoria Pública da União[1] contra decisão da 1ª instância da Justiça Federal Militar que, não obstante tenha declarado extinta a punibilidade da pena principal, manteve subsistente a execução da pena acessória de exclusão das Forças Armadas aplicada a um cabo da Aeronáutica, face ao que dispõe o artigo 130 do Código Penal Militar, que prevê a imprescritibilidade dessa sanção.
Antes de qualquer discussão aprofundada sobre o caso concreto julgado, preliminarmente, pensamos ser necessário perquirir os elementos que norteiam a atuação do Estado, elencados na Constituição Federal de 1988, mais precisamente no capítulo destinado aos Direitos Fundamentais.
No artigo 5º da Carta Magna, encontramos diversos mecanismos destinados à proteção do indivíduo frente à atuação do Estado, com o fim de efetivar o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (fundamento da República brasileira).
É possível vislumbrar, neste dispositivo, a preocupação do legislador constituinte em fixar as bases do Estado Democrático de Direito, a fim de garantir o respeito às liberdades civis, consubstanciadas na salvaguarda dos Direitos e das Garantias Individuais, por intermédio do estabelecimento de uma proteção jurídica.
Entre os Direitos Fundamentais previstos no artigo 5º, encontramos disposições relativas ao Direito Penal, como o princípio da legalidade e a proibição de penas de morte (exceto no caso de guerra declarada), cruéis, de caráter forçado e as penas de caráter perpétuo.
Além desses dispositivos, houve por bem a Constituição elencar os crimes que, dada a sua nocividade frente à sociedade, seriam imprescritíveis, a saber: o racismo e a ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, conforme se verifica:
Art. 5º [...]
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. (Destaques nossos).
O rol de crimes imprescritíveis, no Brasil, contém ainda aqueles elencados pelo Estatuto de Roma, tratado internacional que foi ratificado pelo Estado brasileiro em 20 de junho de 2002, que demarcou, como fora do alcance da prescrição, os delitos indicados no seu artigo 5º: crime de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão.[2]
Portanto, no atual ordenamento jurídico, os crimes imprescritíveis são apenas aqueles contemplados na Constituição da República, bem como os delitos sujeitos à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, cujo rol taxativo somente pode ser ampliado com modificações da Carta da República ou do referido tratado internacional.
Em outro giro, as penas acessórias constituem restrições ao exercício de Direitos Civis e Políticos. Têm como pressuposto a aplicação de uma pena principal. Visam impedir que o condenado, em virtude da natureza de certas infrações penais e por demonstrar incompatibilidade para determinadas atividades, com a periculosidade de que é portador, coloque em risco bens juridicamente protegidos.
A execução da pena acessória tem como corolário a execução da pena principal. A execução da primeira desatrelada da segunda viola os princípios da razoabilidade e da segurança jurídica, pois a declaração de extinção da punibilidade significa que o Estado não pode mais exercer o seu jus puniendi, ou seja, já não mais é dado ao Estado o direito de alcançar o transgressor da norma penal e aplicar-lhe a pena.
Ora, se o Estado não pode efetivar a pena dita principal, muito menos poderia aplicar a sanção penal acessória que lhe é dependente. Portanto, mostra-se evidente que prescrevendo a pena principal, a pena acessória, necessariamente, deve seguir a mesma sorte.
Se imaginarmos que seria aceito juridicamente a prescritibilidade da pena privativa de liberdade sem que o mesmo ocorresse com a pena acessória que lhe acompanha, teríamos que aceitar uma declaração de extinção “parcial” da punibilidade do agente, ao invés de ter afastado, prima facie, o dispositivo legal que dispõe sobre a imprescritibilidade das penas acessórias por flagrante incompatibilidade, isto é, não-recepção diante da nova ordem constitucional.
No Código Penal Militar, decretado em 21 de outubro de 1969, as penas acessórias estão previstas no artigo 130, que dispõe o seguinte:
Imprescritibilidade das penas acessórias
Art. 130. É imprescritível a execução das penas acessórias.
Para se entender as razões da imprescritibilidade da pena acessória, prevista no Código Penal Castrense, necessário conhecermos sua origem, que nada mais é do que a reprodução do antigo e ultrapassado artigo 118, do Código Penal Comum, Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
Originariamente, o Código Penal Brasileiro previa a existência de penas acessórias. A redação do artigo 118, parágrafo único, em vigor até 1984, era a seguinte:
Art. 118. As penas mais leves prescrevem com as penas mais graves.
Imprescritibilidade da pena acessória
Parágrafo único. É imprescritível a pena acessória imposta na sentença ou resultante da condenação.(Destaques nossos).
Ocorre, entretanto, que o caráter dinâmico do Direito frente à evolução dos fatos na sociedade, impôs ao legislador a necessidade de atualizar o Código Penal.
Nesse sentido, em 1984, foi promovida uma grande reforma que, entre as mudanças, trouxe o Princípio da Prescritibilidade de todos os delitos. Essa regra somente foi excepcionada em 1988, com a Constituição Federal, que restringiu a regra da imprescritibilidade apenas aos crimes de racismo e de ação de grupos armados, sendo esse rol ampliado pelo Estatuto de Roma, conforme mencionado.
Desse modo, na reforma de 1984, o legislador suprimiu o parágrafo único do artigo 118, que passou a dispor que as penas mais leves prescrevem com as mais graves.
Todavia, a alteração promovida no Código Penal Comum não se estendeu ao Código Penal Militar e o instituto da imprescritibilidade das penas acessórias permaneceu existindo apenas no Direito Militar, em uma clara afronta à Constituição Federal.
Ademais, apontamos ainda que a Constituição Federal de 1988 assegura a todos, no âmbito judicial a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. A prescrição da pretensão punitiva do Estado visa, ainda, efetivar esse Direito Fundamental.
Nesse sentido, a previsão de penas imprescritíveis, conforme dispõe o artigo 130 do Código Penal Militar, é incompatível com a Constituição da República, pois afronta direitos fundamentais Direitos Fundamentais. Portanto, mostra-se razoável o entendimento de que tal instituto não foi recepcionado pela Carta Magna, tendo ocorrido sua revogação tácita.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal há muito já se alinhava a esse entendimento:
HC 62883 / RJ - RIO DE JANEIRO
HABEAS CORPUS
Habeas Corpus visando reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva, inclusive da pena acessória. sendo a pena máxima em abstrato três meses de prisão simples, e transcorrido o prazo de mais de quatro anos entre a sentença e o julgamento da apelação, não subsiste a condenação para qualquer efeito. A pena acessória prescreve junto com a principal, se a hipótese e de prescrição da pretensão punitiva. Ademais, lei nova mais benigna, extinguiu a pena acessória. deferimento do pedido.(Destaques nossos).
No mesmo sentido:
HC 61274 / SC - SANTA CATARINA
HABEAS CORPUS
Condenação pelo crime capitulado no Art-129 do Código Penal. Não se configura, na espécie, prescrição da pretensão punitiva, nem da pretensão executória. Aplicação de pena pecuniária pela prática do crime de abuso de autoridade. Prescrição da pretensão punitiva (Art-114 e 109, inciso VI, do Código. Penal), alcançando, inclusive, a pena acessória. (Destaques nossos).
Portanto, observamos que a jurisprudência da Suprema Corte já havia pacificado o entendimento de que as penas acessórias prescrevem junto com as penas principais.
Não bastasse a consolidação jurisprudencial do tema no Excelso Pretório, parcela da doutrina especializada no estudo dos crimes castrenses também corrobora com o posicionamento ora esposado.
Alexandre Saraiva, citado na obra de Célio Lobão, expõe que a regra da imprescritibilidade executória das penas acessórias não foi recepcionada pela Constituição de 1998. [3] No mesmo caminhar, o jurista Jadir Silva:[4]
Gostaria, de ver, no CPM, o seguinte dispositivo legal: As penas acessórias serão inaplicáveis, quando a pena principal já estiver prescrita a sua pretensão punitiva. Ou então: As penas acessórias perderão os seus efeitos quando não for possível a execução da pena principal.
Nesse diapasão, podemos concluir que a imprescritibilidade das penas acessórias não pode mais ser aplicada: a uma, porque não guarda compatibilidade com a Constituição Federal de 1988, pois houve revogação tácita; a duas, porque não se pode conceber no ordenamento jurídico a existência de declaração de extinção “parcial” da punibilidade; e a três, porque as penas acessórias prescrevem junto com as penas principais, segundo a jurisprudência pacífica do STF.
Portanto, no caso de decisão de extinção da punibilidade por verificação da prescrição da pretensão punitiva ou executória da pena privativa de liberdade, caberá ao Judiciário estender os efeitos daquele decisum à pena acessória de exclusão das Forças Armadas.
Em retomada ao acórdão paradigma mencionado no início dessa exposição, a Corte Militar, no julgamento do respectivo Recurso em Sentido Estrito, optou por não analisar o pedido da Defesa de chancela da revogação por não-recepção do artigo 130 do Código Penal Militar pela nova ordem constitucional, apenas acolhendo, como argumento do aresto, a impossibilidade de subsistir a pena acessória de exclusão das Forças Armadas quando não mais seja possível executar a pena principal de reclusão. Seguem os termos da ementa:
Recurso em Sentido Estrito. Prescrição da pretensão punitiva da pena acessória. Extinção da Punibilidade.
Decisão da Juíza-Auditora Substituta da Auditoria da 11ª CJM, proferida nos autos de Execução da Ação Penal Militar, na parte em que não reconheceu a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva da pena acessória de exclusão das Forças Armadas, aplicada ao recorrente.
Entendimento da doutrina e da jurisprudência tendem a considerar que, na hipótese de ocorrência da prescrição da pretensão punitiva, a pena acessória, declarada ou não, acompanha de modo similar, a declaração de extinção da punibilidade da pena principal.
Extinção da punibilidade pela prescrição pela prescrição da pretensão punitiva superveniente à sentença condenatória da pena acessória de exclusão das Forças Armadas.
Recurso provido.
Decisão unânime.
Não restam dúvidas que, de certo modo, o Superior Tribunal Militar, com apoio na tese subsidiária defensiva, decidiu reconhecer a extinção da punibilidade da pena acessória de exclusão da Força Armada aplicada ao militar recorrente. Todavia, a Corte Castrense perdeu a chance de extirpar de vez, do nosso ordenamento jurídico militar, a previsão de pena de caráter perpétuo e imprescritível, em flagrante incompatibilidade com o texto constitucional e o Estatuto de Roma.
Entretanto, por derradeiro, não podemos olvidar que o primeiro passo foi dado para reconhecer a inaplicabilidade do artigo 130 do Código Penal Castrense.
Notas
[1] BRASIL. Superior Tribunal Militar. Penal. Recurso em sentido estrito nº. 0000138-86.20107.11.0011-DF. Relator: Ministro Gen Ex Raymundo Nonato de Cerqueira Filho. Julgamento unânime em 15/02/2011.
[2] BRASIL. Decreto nº 4.388, promulgado no dia 25 de setembro de 2002. Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.
[3] SARAIVA apud LOBÃO, Célio. Comentário ao Código Penal Militar: Vol. 1 – Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 323.
[4] SILVA apud ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar: comentários, doutrina, jurisprudência dos tribunais militares e tribunais superiores. Curitiba: Juruá, 2009, p. 271.