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Ministros legisladores?

O caso da Reclamação nº 4.335/AC e a interpretação no Estado Democrático de Direito

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5. Concluindo: o Estado Democrático de Direito e a sua incompatibilidade com posturas discricionárias

Como já foi dito, a CRFB/1988 significa um marco na história constitucional brasileira. A partir dela, passa a ter importância constitucional os rumos tomados pelo país em busca da concretização dos seus principais desideratos. Nessa esteira, a Carta foi generosa em garantir direitos e deveres a fim de que tal seja possível. Mas o caminho é árduo. É preciso superar séculos de atraso, correr atrás do prejuízo causado pela demora em absorver as promessas da modernidade. As nossas instituições ainda necessitam assumir compleição democrática mais sólida, o que não significa que já tenhamos avançado muito nesse quesito.

Nesse contexto, percebemos que os poderes da República permanecem acometidos de disfuncionalidades. O Legislativo, como destacado no item 1, por todo o tempo de vigência da CRFB/1988 permaneceu silente em relação a determinados deveres de legislar. Isso acaba por acirrar o debate entre aqueles que defendem uma postura ativista do Judiciário e os defensores de uma atividade mais autocontida por parte deste. Afinal, seria legítima a atuação desse Poder quando da inércia injustificada dos outros? Até que ponto?

Há diferença entre judicialização e ativismo judicial. A judicialização é contingencial, sendo que a Constituição mesma oferece meios para sanar as necessidades circunstanciais (veja-se o Mandado de Injunção). Já o ativismo judicial extrapola o texto constitucional, acarretando rompimentos constitucionais.[31] Ou seja, quando o Judiciário age de maneira ativista, desconsidera as suas atribuições demarcadas pelo Estado Democrático de Direito. São as posturas voluntaristas, fundadas, ainda, em uma dogmática refém de standards do positivismo discricionarista, em que aplicação do direito é ato de vontade. Isso ocorre quando o STF, a pretexto de suposta prevalência de uma categoria de controle de constitucionalidade, pretende alterar o sistema de aferição de constitucionalidade de leis delineado pelos constituintes originário e reformador e regulamentado pelo legislador ordinário, suplantando as atribuições exclusivas do Legislativo. Ocorre quando equipara à união estável a união homoafetiva, sem alteração legislativa a respeito. Ocorre quando, a pretexto de inércia dos poderes competentes, legisla minudenciosamente sobre demarcação de terras indígenas, sem ter a menor capacidade institucional para tal.

Esse é um problema relevante em um país em que o Judiciário constitui um verdadeiro “terceiro turno” das disputas políticas e sociais. O STF é constantemente provocado por grupos políticos perdedores no embate democrático em busca da “reversão do placar a seu favor”. Os movimentos sociais cada vez menos se dirigem às instituições deliberativas e logo recorrem ao Judiciário para implementar as suas demandas.[32] Se o Judiciário assume uma postura ativista, lançando mão de discricionarismos dos mais diversos, sem ter as atribuições e as capacidades próprias para lidar com tais questões, ele só estará contribuindo com o desprivilégio normativo de nossa Constituição. O problema da disfuncionalidade de nossas instâncias deliberativas não pode ser resolvido através de um by-pass protagonizado pelo Judiciário. Uma boa dose de civismo republicano pode ser um bom começo para a resolução desse problema.

O grande desiderato do Judiciário é oferecer respostas adequadas à Constituição, eximindo-se de voluntarismos. As suas decisões devem estar de acordo com as tradições democráticas oficializadas pela promulgação da CRFB/1988. Alterar textos arbitrariamente não pode fazer parte de sua agenda, pois isso significaria a relativização das nossas maiores conquistas. A atividade interpretativa deve ser direcionada para o esforço de identificação do melhor sentido (democraticamente e constitucionalmente adequado) a ser atribuído à uma disposição legislativa, que deverá seguir os parâmetros estabelecidos pelo direito fundamental do cidadão a uma decisão bem fundamentada (art. 93, IX, da CRFB).

Portanto, seguramente a hermenêutica filosófica oferece os mais apropriados padrões para a tarefa interpretativa no direito (pois aversa a qualquer tipo de discricionarismo), privilegiando a nossa tradição democrática inaugurada no fim do século passado e que faz parte da luta de todo brasileiro engajado na busca dos objetivos do nosso novo constitucionalismo.


6. Bibliografia

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Notas

[1] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constiticional. 27. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 394.

[2] A título de exemplo, o seu art. 3º, em que estão estabelecidos como objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais, e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

[3] O que não significa a ignorância das implicações em outras áreas das ideias aqui desenvolvidas, mormente no que tange à democracia e aos desenhos insitutionais (relação entre poderes).

[4] Para uma discussão proficiente do tema, v. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração da construção do Direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, principalmente capítulos 1 e 2.

[5]A prática jurídica ainda tende a ser resiliente à novidade.

[6] Sobre o tema, v. percuciente análise de MOREIRA, Eduardo Ribeiro. O novo aproveitamento do mandado de injunção. In: Revista brasileira de direito constitucional. n. 60, Editora RT, 2007.

[7]<http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2013/03/20/senado-e-camara-criam-comissao-para-regulamentar-dispositivos-constitucionais>, acesso em 13/06/2013.

[8] Aqui, uma parada para transcrever as palavras de Fábio de Oliveira sobre a diferença entre dogmática e dogmatismo, digna de registro: “O dogmatismo é o apego impensado aos dogmas. É sectarismo. Dogmatismo é positivismo em qualquer de suas vertentes. A dogmática é o saber jurídico material-instrumental. Não é forçosamente dogmatista. É aberta a posicionamentos diversos. É espaço de consonâncias e dissonâncias doutrinárias. Há que se negar o dogmatismo, mas não a dogmática: negar a dogmática é rejeitar o Direito. O dogmatismo é mítico: o dogma é um mito, uma crendice, não se explica. Para a dogmática, o dogma é crítica, é fundamentação, argumentação, evolução”. OLIVEIRA, Fábio de. Por uma teoria dos princípios: o princípio constitucional da razoabilidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 8.

[9] Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:

[...]

X – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.

[10] O andamento processual do pleito pode ser acompanhado no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal, em <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2381551>. 

[11] Os argumentos podem ser encontrados em MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 753-763.

[12] BULOS, Uadi Lamego. Da reforma à mutação constitucional. Revista de Informação Legislativa. n. 129, jan./mar. 1996, p. 26, disponível em <http://www2.senado.gov.br/bdsf/bitstream/id/176380/1/000506397.pdf>, acesso em 24/10/2012.

[13] MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Teoria da reforma constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 93.

[14] HESSE, Konrad. Limites da mutação constitucional. In: Temas fundamentais do direito constitucional. Trad. Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 157.

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[15] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.

[16] Na mesma linha, BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 160; SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 355.

[17] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Edições Almedina, 2003, p. 1234.

[18]Dentre tantos, v. MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Op. cit., p. 94; SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Op. cit. p. 353. BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 128.

[19] MÜLLER, Friedrich. Metodologia do direito constitucional. Trad. Peter Naumann. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 54.

[20] Ibid. p. 58

[21] “A tarefa da interpretação consiste em concretizar a lei, em cada caso, ou seja, é tarefa da aplicação”. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I. Trad. Flávio Paulo Meurer. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 432.

[22] Para os desenvolvimentos em hermenêutica deste item, tivemos por base o Capítulo 10 de STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.

[23] HEIDEGGER, Martin. Ontologia: hermenêutica da faticidade. Trad. Renato Kirchner. Petrópolis: Vozes, 2012.

[24] STEIN, Ernildo. Crítica da ideologia e racionalidade. Porto Alegre: Movimento, 1986, p. 37.

[25] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p 136.

[26] Para uma breve e proficiente exposição do tema, v. ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

[27] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 221.

[28] Ibid. p. 393.

[29] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileito: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 56.

[30] GADAMER. Hans-Georg. Verdade e método. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 405.

[31] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 53.

[32] Sobre o tema, o interessantíssimo artigo de STRECK, Lenio Luiz. O Supremo Tribunal deve julgar por princípios ou políticas? In: Constitucionalismo e democracia. FELLET, André; NOVELINO, Marcelo (orgs.). Salvador: Juspodivm, 2013.

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Sobre o autor
Guilherme Cuiabano Monteiro da Silva

Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Guilherme Cuiabano Monteiro. Ministros legisladores?: O caso da Reclamação nº 4.335/AC e a interpretação no Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3757, 14 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25505. Acesso em: 19 abr. 2024.

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