Antes de discutir Política é preciso definir o que significa este termo. Todos os filósofos e cientistas sociais que se debruçaram sob o tema definiram Política à sua maneira com maior ou menor amplitude. Alguns deles até negaram sua existência ou necessidade, outros defenderam a superação do conflito político das classes pela administração das coisas. Hannah Arendt costumava dizer que a Política é aquilo que existe no espaço comum voluntariamente criado por pessoas diferentes. Este espaço é frágil e pode ser alargado, com aumento da liberdade e da igualdade. Mas também pode ser destruído. Quando o espaço da Política deixa de existir resta apenas a guerra e a terra devastada que separa inimigos irreconciliáveis. Me agrada bastante a definição de Hannah Arendt, em que a Política é tratada como um fenômeno histórico e, portanto, sujeito às inflexões das ações humanas. É com base nele que defendo a tese de que no Brasil nunca houve Política.
Em 1500 cá chegaram uns portugueses abatidos, barbudos e imundos. Em pouco tempo impuseram sua vontade pela força, tomando as terras, as índias e o trabalho dos índios. Entre portugueses e índios nunca houve espaço voluntário, exceto quando os colonos usavam as inimizades ancestrais entre as diversas etnias que habitavam o território para empregar uma tribo como tropa auxiliar na guerra contra outra tribo hostil. Estabelecidos na colonia, os portugueses começaram a importar escravos negros da África, explorando-os até a exaustão e castigando-os de maneira impiedosa. A terra devastada que existia entre colonos e índios se ampliou pela aquisição de novos espaços devastados entre colonos e negros escravizados.
Todas as conquistas que a esquerda brasileira hoje considera históricas, como fim da escravidão e a proteção legal aos índios, não conseguiram construir um espaço voluntário entre os campos inimigos. No Brasil, se levarmos em conta as teses arendtianas, não há Política por dois motivos. Primeiro: nem a proteção aos índios (ainda considerados pouco mais que crianças), nem a libertação dos escravos (cujos descendentes seguem sendo discriminados e abatidos como moscas pelas PMs) foi negociada pelos grupos antagônicos em condições de igualdade jurídica. Estas duas grandes inovações, recentes se levarmos em conta o tempo histórico, foram impostas pelos brasileiros bem nascidos como uma trégua concedida generosamente aos indígenas e aos negros para atender aos interesses nacionais (eufemismo para interesses dos donos do Estado brasileiro). Segundo: como não há e nunca houve um espaço criado voluntariamente pelos diversos atores sociais de maneira a por fim às chagas abertas pela colonização e escravidão, o Brasil permanece eternamente na ante-sala da barbárie colonial qualquer que seja seu regime político (muito embora não exista Política, mas apenas "regimes que mascaram a inexistência dela") .
A inexistência de Política no Brasil explica satisfatoriamente todos os golpes de estado que ocorreram no país desde o final do século XIX. Ao menor sinal de perigo, os "donos do Estado brasileiro" nunca exitaram em usar a força bruta para recuperar o que consideram ser seu direito ancestral de governar com mão de ferro o território que supostamente lhe pertence. O povo nunca precisou ser consultado, pois os descontentes sempre poderiam ser (e com certeza foram) reprimidos como se fossem negros fugidos ou índios rebeldes pelas forças policiais e militares.
Entre a elite brasileira (que se considera magnânima apesar de sempre ter sido brutal) e o restante da população (mais ou menos brutalizada nas áreas pobres e favelizadas de nossas cidades) existe a imprensa. A função desta tem sido bastante evidente para aqueles que estudam sua História e a História do país. Os jornais brasileiros foram contra a libertação dos escravos e a favor do golpe militar de 1964, apoiaram a hedionda repressão militar em Canudos e cobriram de maneira bastante generosa as operações do Exército no Araguaia. O comportamento atual da imprensa brasileira tem sido exemplar. No presente momento, a maioria dos veículos de comunicação do país impede a construção da Política ou a ampliação do pequeno espaço político laboriosamente manufaturado após o advento da CF/88. Eu mesmo já tive a oportunidade de notar como a imprensa brasileira hostiliza de maneira cruel os indigenas (http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/globo-silencia-os-indios e http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed691_band_tambem_silencia_os_indios ) e perigosamente criminaliza o movimento sem terra (http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/o_mst_e_o_jornalismo_homicida). Na semana passada a propaganda jornalística contra o Black Bloc foi bastante intensa. Os telejornais entrevistaram autoridades, especialistas e policiais e quase todos eles exigiram Leis mais duras e maior repressão política nas ruas.
Geraldo Alckimin foi intensamente mostrado pelos telejornais transmitidos aos cidadãos paulistas nos últimos dias. Mas nenhum jornalista, destes que se dizem isentos e que criticam o jornalismo chapa branca, ousou perguntar-lhe se ele estava usando o Black Bloc como uma cortina de fumaça para desviar a atenção do respeitável público da roubalheira tucana no Metrô. A palavra do governador de São Paulo é verdade, sempre que ele precisa ampliar a terra devastada ou impedir a construção da Política a imprensa cumpre sua função histórica de deslegitimar seus adversários. Curiosamente foi exatamente nesta semana de campanha jornalística contra as manifestações e seus defensores mascarados que um Procurador Federal arquivou apressadamente o processo aberto para investigar a referida roubalheira tucana no Metrô paulista. Coincidência?
Ninguém pode dizer que os donos das empresas de comunicação não cuidam bem de seus próprios interesses ao preservar a terra devastada no país. No Brasil são poucas as famílias que controlam a mídia. As bandas de TV e de rádio são públicas e exploradas por particulares mediante concessão, mas nenhum governo jamais ousou revogar o direito de exploração ao dono de um canal de TV. Nem mesmo a Rede Globo, que deve bilhões de reais de impostos ao Estado, teme ver cassado seu sagrado direito de continuar transmitindo propaganda contra a expansão do espaço político. Ao contrário da Argentina, que fez aprovar uma Lei de Meios para combater o monopólio na imprensa, o Brasil continua tratando liberdade de empresa como se fosse liberdade de imprensa (sobre este assunto vide http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/a_liberdade_de_imprensa_e_a_liberdade_de_empresa ).
O momento de legitimar a Política no Brasil chegou. Chega de mais do mesmo, cansamos desta história infame de maior repressão policial. O governo tem que enfrentar os monopólios de mídia para reduzir a terra devastada que segue tomando conta do nosso país.