3. O direito fundamental ao trabalho da pessoa com deficiência e a dignidade da pessoa humana.
Desse modo, reconhecer o trabalho como direito fundamental a todos os grupos sociais torna-se imprescindível, como forma de salvaguarda de sua dignidade, vinculado ao princípio da igualdade no seu aspecto material, ou seja, dependente de ações discriminatórias positivas, com o objetivo de corrigir desigualdades. [28]
O direito fundamental ao trabalho consiste na promoção de igualdade de oportunidades por meios capazes de mudar as regras do "jogo do mercado de trabalho" não visam ao reconhecimento de igualdade de tratamento, mas aos meios necessários para torná-la efetiva.
No que pertine à aplicação dos direitos fundamentais nas relações de emprego, de início, conveniente destacar que, conforme Manoel Jorge e Silva Neto, o exame dos Princípios Fundamentais do Estado brasileiro deve preceder o estudo da incorporação dos direitos fundamentais ao contrato de trabalho, em razão de que tais postulados servem de “vetores interpretativos” da própria Constituição e da legislação trabalhista. [29]
Para Queiroz Júnior, o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser considerado como fundamento de todo o sistema de direitos fundamentais, vez que esses se constituem em “exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da pessoa humana e com fundamento nesta devem ser interpretados”. [30]
Sayão Romita chama a atenção para um paradoxo, no sentido de que nos estudos sobre relações de trabalho, quase não se vê referência aos direitos humanos, embora o obreiro seja uma pessoa que não deixa de ter tal condição quando inserido no âmbito da relação empregatícia. [31]
A questão da incidência dos direitos fundamentais nas relações de emprego possui clara e indiscutível justificativa: o objeto da relação de emprego é o trabalho e não o trabalhador. Contudo, resta impossível se desmembrar tais figuras, motivo pelo qual o trabalhador detém a proteção dos direitos fundamentais como cidadão e, especificamente como trabalhador. Sendo assim, conclui-se com serenidade que os direitos fundamentais ocupam papel fundamental no ordenamento jurídico pátrio, se configurando como parâmetro dentro do qual devem ser interpretadas todas as normas trabalhistas. [32]
Ainda sobre a aplicação dos direitos fundamentais nas relações de emprego, registra-se existir situações concretas que se configuram como nítidos desdobramentos da aplicação dos direitos fundamentais nas relações de emprego, considerando o caráter de pessoa humana do trabalhador.
Observa-se que o trabalho, enquanto necessidade intrínseca dos seres humanos, pois é por meio dele que a pessoa obtém parte do necessário à sua subsistência e assegura o direito à dignidade da pessoa humana, modificou-se ao longo do tempo. As tecnologias de informação e de comunicação tornaram-se um elemento indissociável do desenvolvimento da atividade econômica em todo o mundo, constituindo-se, igualmente, num fator cada vez mais importante na organização e estruturação das sociedades modernas.
Constata-se que a sociedade moderna caracteriza-se por um processo de constante inovação tecnológica que transformou os meios de comunicação pela velocidade no acesso às informações. A inovação proporcionada pela comunicação via satélite e pelas novas infra-estruturas de telecomunicações são exemplos típicos da Sociedade da Informação.
4. A terminologia adotada para as pessoas com deficiência.
Indiscutível é a divergência terminológica sobre a conceituação dada ao grupo social das pessoas com deficiência, razão pela qual, percorrer-se-à a trajetória dos termos utilizados ao longo da história.
Sassaki deixa claro que “jamais houve ou haverá um único termo correto (...). A razão disto reside no fato de que a cada época são utilizados termos cujo significado seja compatível com os valores vigentes em cada sociedade (...)”. [33]
No passado, os termos que predominavam na sociedade eram "aleijado", "defeituoso", "incapacitado", "inválido", “excepcional”, “retardado”, dentre outros; enfatizando a deficiência mais do que a pessoa. [34][35]
Passou-se a utilizar o termo “deficiente” por influência do Ano Internacional e da Década das Pessoas Deficientes, estabelecido pela Organização das Nações Unidas - ONU, apenas a partir de 1981. Em meados dos anos 1980, entraram em uso as expressões "pessoa portadora de deficiência" e "portadores de deficiência". Por volta da metade da década de 1990, a terminologia utilizada passou a ser "pessoas com deficiência", que permanece até hoje. [36]
A pergunta que não quer calar tem sido esta: “Qual é o termo correto: pessoa portadora de deficiência, pessoa portadora de necessidades especiais ou pessoa com deficiência?”. Responder esta pergunta tão objetiva é simplesmente trabalhoso, por incrível que possa parecer. A doutrina e a legislação ainda hoje discutem a melhor terminologia.
Sustenta Luiz Alberto David Araújo que a ”expressão ‘pessoas portadoras de deficiência’ tem o condão de diminuir o estigma da deficiência, ressaltando o conceito de pessoa; é mais leve, mais elegante, e diminui a situação de desvantagem que caracteriza esse grupo de indivíduos”.[37]
Guilherme José Purvin de Figueiredo afirma que “atualmente, a expressão pessoa portadora de deficiência começa a ser questionada, propondo-se, alternativamente, sua substituição por portadores de necessidades especiais” [38]. Tal terminologia é adotada pela Constituição Federal de 1988 e pela legislação pátria em vigor.
Com relação à expressão: "pessoas com necessidades especiais” destaca-se que os simpatizantes de tal terminologia enfatizam que o significado das palavras “deficiente” e “deficiência” está intimamente ligado à falta, à carência de algo, o que levaria à impropriedade da terminologia “pessoas portadoras de deficiência”. Ainda, sustenta-se que deficiência é antônimo de eficiência, razão pela qual vincular a pessoa à deficiência que a mesma porta leva à conclusão de que tal pessoa não é eficiente. [39]
No entanto, o termo pesquisado passou a ser questionado, pois, "necessidades especiais" quem não as tem, com ou sem deficiência? [40] Essa terminologia estava relacionada às “necessidades educacionais especiais” de algumas crianças com deficiência, que é utilizado na área da Educação, e passou a ser difundido para todas as circunstâncias, fora do ambiente escolar. [41]
Ainda hoje se utiliza a expressão "pessoas com necessidades especiais", demonstrando-se uma transformação de tratamento que vai da invalidez e incapacidade à tentativa de nominar a característica peculiar da pessoa, sem estigmatizá-la. A expressão "pessoa com necessidades especiais" acabou por tornar-se um gênero que contém as pessoas com deficiência, mas também acolhe os idosos, as gestantes, enfim, qualquer situação que implique tratamento diferenciado. [42]
Compreende Manoel Jorge e Silva Neto [43] que é a expressão “pessoa ou empregado portador de necessidades especiais” a mais apropriada para designar a existência de indivíduos que são tão ou mais capazes que outras pessoas no desempenho de sua atividade laboral.
A terminologia “pessoa com deficiência” é verificada em algumas Declarações Internacionais e, por vezes, é adotada pela doutrina. A diferença entre esta e as anteriores é simples: ressalta-se a pessoa à frente de sua deficiência.
Constata-se que a melhor terminologia a ser utilizada é “pessoa com deficiência”, eis que valoriza a pessoa acima de tudo, independentemente de suas condições, restando evidente a observância aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
Quanto ao termo mais adequado, opta-se pelo referencial de Sassaki que diz que “o conceito de deficiência não pode ser confundido com o de incapacidade (...). O conceito de incapacidade denota um estado negativo de funcionamento da pessoa, resultante do ambiente humano e físico inadequado ou inacessível, e não um tipo de condição”. [44]
Encontrar a terminologia mais adequada para designar um grupo de pessoas é de fundamental importância para sua proteção jurídica, pois também pela linguagem se revela ou se oculta o respeito ou a discriminação.
5. O conceito de deficiência face à pessoa humana.
O conceito de deficiência vinculado à pessoa humana pode ser visualizado na perspectiva doutrinária e legislativa, na esfera constitucional, infraconstitucional, internacional e comunitária; a partir do reconhecimento dos direitos humanos pautados nos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade.
A Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispôs sobre o apoio às pessoas com deficiência e criou um órgão para coordenação das ações do Estado para acompanhar e implementar políticas públicas por meio da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência - CORDE, mas não define quem é o destinatário dessa política e por isso requer regulamentação. A Lei foi regulamentada pelo Decreto nº 914, de 06 de setembro de 1993, atualmente revogado pelo Decreto nº 3.298, 20 de dezembro de 1999, que instituiu a política nacional para a integração da pessoa com deficiência. Sua aplicação e interpretação considerados os valores básicos da igualdade de tratamento e oportunidade, da justiça social, do respeito à dignidade da pessoa humana, do bem-estar, além de outros, indicados na Constituição Federal ou justificados pelos princípios gerais de direito, em complementação ao conceito técnico trazido pela Lei da Pessoa Portadora de Deficiência.
O Decreto n°. 3.298/99, no artigo 3° [45], conceitua e distingue deficiência, deficiência permanente e incapacidade. O artigo 4º do Decreto n°. 3.298/99 especifica a conceituação técnica do ponto de vista médico das deficiências: física, auditiva, visual, mental e múltipla, ressalvadas as alterações previstas no Decreto nº. 5.296, de dezembro de 2004.
A Organização Mundial da Saúde – OMS definiu o conceito de deficiência como sendo “qualquer perda ou anormalidade de estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica” [46], ressaltando que tais restrições não lhes retiram o valor como pessoa humana, o poder de decidir sobre suas vidas e de tomarem decisões [47].
No âmbito da Organização Internacional do Trabalho, o primeiro documento que tratou da conceituação de deficiência foi a Recomendação nº 99, de 25 de junho de 1955, tendo o conceito se repetido na Recomendação nº 168, de 20 de junho de 1983, e aprimorado na Convenção nº 159, de 20 de junho de 1983.
A Convenção nº 159 da OIT, que trata da reabilitação profissional e emprego das pessoas com deficiência, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 51, de 28 de agosto de 1989, e promulgada pelo Brasil por meio do Decreto nº 129, de 18 de maio de 1991, conceitua deficiência no artigo 1, parte 1; entendendo por pessoa deficiente todas aquelas cujas possibilidades de obter e conservar um emprego adequado e de progredir no mesmo fiquem substancialmente reduzidas [48]. O conceito ressalta o caráter funcional das deficiências físicas ou sensoriais, estabelecendo a Convenção o dever dos países signatários de se engajarem em atividades de integração e de fornecerem instrumentos que viabilizem o exercício das atividades profissionais para as pessoas que deles necessitem. [49]
A Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes elaborada pela Organização das Nações Unidas por meio da Resolução 3.447, de 09 de dezembro de 1975, traz, em seu artigo 1º, a definição de pessoa deficiente. Nesse sentido, conceitua-se pessoa deficiente qualquer pessoa incapaz de assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais. [50]
No entendimento da ONU, deficiência é um conceito em mutação, resultado da interação entre a deficiência de uma pessoa e os obstáculos que impedem sua participação na sociedade. Quanto mais obstáculos, como barreiras físicas e condutas atitudinais impeditivas de sua integração, mais deficiente é uma pessoa. Não importa se a deficiência é física, mental, sensorial, múltipla ou resultante da vulnerabilidade etária. Mede-se a deficiência pelo grau da impossibilidade de interagir com o meio da forma mais autônoma possível.
A Organização das Nações Unidas, em dezembro de 2006, aprovou o texto da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências. O Brasil participou intensamente dos debates. O que distingue essa Convenção das outras é seu conteúdo, que foi realizado com ajuda direta de ONGs de pessoas com deficiência. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu respectivo Protocolo Facultativo foram ratificados pelo Congresso Nacional em 09 de julho de 2008 pelo Decreto legislativo nº 186 e todos os seus artigos são de aplicação imediata. A Convenção no seu artigo 1º diz qual o seu propósito e define o conceito de pessoa com deficiência. [51]
Resta evidente que o próprio conceito de pessoa com deficiência incorporado pela Convenção carrega forte relevância jurídica, porque incorpora na tipificação das deficiências, além dos aspectos físicos, sensoriais, intelectuais e mentais, a conjuntura social e cultural em que o cidadão com deficiência está inserido, vendo nestas o principal fator de cerceamento dos direitos humanos.
Pode-se definir pessoa com deficiência como sendo aquela que, por possuir alguma limitação física, sensorial, mental ou múltipla, enfrenta maiores dificuldades para se inserir na sociedade e nela se manter e se desenvolver, especialmente quando comparada às pessoas que não portam tais limitações, necessitando, pois, de medidas compensatórias com vistas a efetivar a igualdade de oportunidades e acesso ao emprego.
A pessoa com deficiência não é necessariamente incapaz para o trabalho. Capacidade laboral e deficiência são conceitos absolutamente distintos e não devem gerar qualquer confusão. Como exemplo, pode-se citar o gênio da música, Ludwig van Beethoven, que mesmo após ser diagnosticado como surdo compôs, dentre outras, a Nona Sinfonia, considerada tanto ícone quanto predecessora da música romântica; o velejador, Lars Schmidt Grael, que mesmo após sofrer grave acidente náutico que culminou com a mutilação de uma de suas pernas não deixou de praticar o esporte como profissão; e, não por último, mas em especial em razão da pesquisa, o Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, enquanto primeiro juiz cego do Brasil. A discussão acerca da deficiência modificou-se para uma visão social, enfatizando a necessidade de os fundamentos e garantias constitucionais estarem à disposição de toda a diversidade humana, sem exclusão de qualquer grupo por qualquer motivo.