Artigo Destaque dos editores

O regime colaborativo estatal na área da saúde: as parcerias com o terceiro setor

Exibindo página 3 de 6
Leia nesta página:

4 – Forma de estabelecimento do vínculo de execução indireta de serviços públicos na área da saúde.

As hipóteses de delegação legal, como vimos, exigem lei de criação ou autorizativa, que seja prévia e específica, motivo pelo qual certamente já contarão com sua função definida, a prescindir de qualquer instrumento para que venham a formalizar o regime de cooperação ou materializar seus fins.

O mesmo não ocorre com as organizações colaboradoras instituídas segundo o regime privado, que demandam a presença de instrumento que formalize a relação e que permita se materialize a parceria em serviço público não exclusivo então colmatada. Esses instrumentos podem se diversificar, mas em maior ou menor grau detém a natureza jurídica dos convênios administrativos, submetendo-se cada qual a um regime formal peculiar prescrito em lei, observada muitas vezes as condições de cada esfera de governo, naquilo em que não se invada a competência dos demais.

Destarte, no que se refere aos regimes de parceria, estes podem se realizar valendo-se principalmente das seguintes instrumentalizações: pelo regime dos convênios administrativos, pelo regime dos contratos de gestão; e pelo regime da gestão por colaboração, onde se incluem os termos de parceria.

As organizações sociais foram inseridas no ordenamento jurídico por meio da Lei Federal nº 9.637/1998, sendo então dirigidas ao ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde. Importam, na verdade, em entidades não lucrativas que detém uma qualificação especial, conferida após prévio juízo de conveniência e oportunidade do Poder Público, por meio de ato discricionário. Essa qualificação precisa ser conferida no âmbito de cada esfera de governo, não sendo a citada Lei Federal considerada de caráter nacional. Ademais, sua relação com o Estado, quando em conta sua qualificação e consequente formatação, dá-se através de contrato de gestão, sendo aconselhável o disciplinamento da matéria no âmbito da respectiva esfera de governo. Assim ensina José dos Santos Carvalho Filho:

“Por último, vale observar que a lei é de observância obrigatória apenas para a União Federal e, portanto, incide sobre os serviços públicos federais. Mas, assim como o Governo Federal concebeu essa nova forma de prestação de serviços, nada impede que Estados, Distrito Federal e Municípios editem seus próprios diplomas com vistas à maior descentralização de suas atividades, o que podem fazer adotando o modelo proposto na Lei nº 9.637/1998 ou modelo diverso, desde que, é óbvio, idênticos sejam seus objetivos. O importante é que a qualificação seja atribuída a entidades que se proponham a executar serviços sociais comunitários em parceria com o Poder Público.” (Manual de Direito Administrativo, 25ª Edição, Editora Atlas, 2012, p. 357) (destacou-se)

As organizações da sociedade civil de interesse público, por seu lado, foram geradas pela Lei Federal nº 9.790/1999, sendo ligadas a assistência social; promoção da cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico; promoção gratuita da educação, da saúde e da segurança alimentar, do voluntariado, do combate à pobreza, da defesa do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável, da ética, da paz e da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de outros valores universais; efetivação de estudos e pesquisas para a ampliação de tecnologias alternativas voltadas à divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos; para a promoção de direitos estabelecidos e a construção de novos, além de assessoria jurídica gratuita de interesses suplementares. Trata-se também de qualificação, conquanto derivada de ato vinculado e, uma vez obtida, podem celebrar termo de parceria com o Poder Público, observado, da mesma forma, o regramento peculiar a cada ente (união, estados ou municípios). Assim explicam Paola Nery Ferrari e Regina Maria Macedo Nery Ferrari:

“Considerando a federação brasileira, Estados, Municípios e Distrito Federal, também podem criar, tanto Organizações Sociais como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, desde que, em seu âmbito de atuação, exista prévia previsão legal. Isto porque a legislação federal, as leis nº 9.637/98 e nº 9.790/99, só se aplicam à Administração Pública Federal e não serve de suporte para qualificar, como tais, pessoas jurídicas de direito privado, na esfera estadual, municipal e distrital.” (Controle das Organizações Sociais, Editora Fórum, 2007, p. 33)

Na mesma linha, tem-se visto a exigência de lei no âmbito da respectiva unidade federativa, municipal ou estadual. Nesse sentido já se manifestou o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo em resposta à Consulta formulada pela Prefeitura do Município de Patrocínio Paulista, nos autos do TC nº 002149/006/02, apreciada em sessão de 05.05.2004:

“... Tratam os autos de consulta formulada pelo Prefeito de Patrocínio Paulista, Senhor Henrique Lopes, indagando: 1º) da possibilidade de a Administração Pública Municipal firmar vínculo de cooperação por meio de contrato de gestão (Organizações não Governamentais), termos de parceria (Organizações Sociais de Sociedade Civil de Caráter Público) e convênios ou contratos de direito público (Associações), com vistas à operacionalização do Programa Nacional de Saúde da Família - PSF e do Programa de Agentes Comunitários de Saúde - PACS. [...] Diante do informado, entendo que a primeira questão deva ser respondida no sentido de que é possível a contratação de Organizações Sociais, Organizações Sociais de Sociedade Civil de Caráter Público e Associações para a operacionalização do Programa de Saúde da Família e do Programa de Agentes Comunitários de Saúde, desde que precedida de lei municipal dispondo sobre a matéria e que sejam observados os respectivos procedimentos de seleção das entidades interessadas em celebrar contratos de gestão, termos de parceria e convênios ou contratos com a Prefeitura local.” (destacou-se)

Verdade que a questão é controversa, mas parece ser esse o entendimento que tem prevalecido. Para a vertente adversa, referidos diplomas caracterizam-se como lei nacional e, portanto, aplicáveis a todos os entes da Federação indistintamente, de tal forma que não se faria necessária a edição de uma lei estadual ou municipal, a fim de viabilizar a realização de parceria com determinada OSCIP; podendo simplesmente a Administração observar o teor integral desta legislação. O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo demonstrou mais recentemente tal inclinação em seu Manual:

“A qualificação como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público é certificação emitida pelo Ministério da Justiça que habilita uma entidade privada do Terceiro Setor a celebrar ajuste, denominado ´Termo de Parceria´, com ente do Poder Executivo de qualquer esfera, visando desenvolver projetos ou atividades complementares às que originalmente constituem responsabilidade direta daquele Poder.” (Manual Básico de Repasses Públicos ao Terceiro Setor, de 2012, p. 67) (destacou-se)

A par da discussão, evidente que se as disposições da Lei Federal atentam para a realidade do ente interessado, nada impediria, a nosso ver, que se venha a ratificar seus termos, naquilo em que compatível com a legislação própria de cada ente, mesmo porque ao legislar Estados e Municípios devem se atentar para não disciplinar questões afetas à competência da União, como aquela relacionada a licitações e contratos administrativos. Ocorre que a apreciação da matéria na respectiva órbita de governo, pelos representantes do povo em Câmaras e Assembleias reunidas, parece precisar e parece legitimar contundentemente a adoção de prescrições estabelecidas indistintamente para a União.

Apesar disso, entendimentos do escol da ínclita Maria Sylvia Zanella Di Pietro, inclusive tratando das OSCIPs, inclinam-se no sentido de que não há impedimento para que Estados e Municípios firmem ajustes com tais entidades simplesmente porque qualificadas pela União. Notemos:

“Com relação aos Estados e Municípios, não tem aplicação obrigatória a Lei nº 9.790. Da mesma forma que os títulos de utilidade pública e organização social, para serem outorgados, dependem de lei de cada ente da federação, também a qualificação de Oscip está sujeita à mesma exigência. União, Estados e Municípios exercem o fomento em suas respectivas áreas de atuação. Cada qual tem competência própria para estabelecer os requisitos para essa finalidade, que não têm que ser iguais aos da lei federal. Isto contudo, não impede Estados e Municípios de firmarem ajustes com as Oscips qualificadas pela União” (Direito Administrativo, 21ª edição, Atlas, São Paulo, 2008, p. 477) (destacou-se).

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Feito esse apanhado, conclui-se que no âmbito do terceiro setor, onde é necessário firmar ajuste, seja pelos tradicionais convênios, seja através dos contemporâneos contratos de gestão ou termos de parceria, aconselhável se mostra o regramento estabelecido em lei originária do ente federativo que pretenda firmar colaboração.

Assim, importante que o ente considere, caso já não disponha, sobre a necessidade de elaborar legislação própria tratando da matéria.


5 – Peculiaridade dos modernos ajustes com entidades do Terceiro Setor: o foco no resultado.

Embora haja presença plena do trinômio possibilidade-conveniência-oportunidade do gestor em optar pela forma de ajuste que melhor atenda à realidade local, gostaríamos de trazer algumas possíveis vantagens distintivas apresentadas entre as Entidades do Terceiro Setor com regulamentação mais recente, como as OSs e as OSCIPs.

A distinção mais relevante entre essas espécies e aquelas tradicionalmente verificadas nos convênios de mais ajustes, é que se passou a verificar um tratamento normativo antes inexistente, com um foco mais preciso, e desejado, em resultados; assim como uma indisfarçável preocupação com a composição de uma configuração fiscal interna mínima das entidades que venham a querer enquadrar-se nesses modelos e assim obterem a qualificação correlata.

Por esse motivo, os ajustes com essas entidades aparentam maior afinidade, senão possibilidade, de assegurar a tão quista utilidade das propostas de governo a que se propõem através da participação do setor privado. Por essa linha, José Maria Pinheiro Madeira expressamente consente que:

“... o sistema proposto para as OSCIP é mais eficiente para fomentar as parcerias na Administração, pois o Estado não está extinguindo uma entidade pública para que seja administrada por particulares, mas, realmente, incentivando a criação de entes intermediários por parte da sociedade.” (Administração Pública Centralizada e Descentralizada, América Jurídica, 2000, p. 456)

Entretanto, seja nos instrumentos de celebração de parceria com o Estado, seja quanto ao regramento legal, essas duas espécies de entidades qualificadas também guardam distinções marcantes, que podem caracterizar, conforme as necessidades do gestor público, vantagens ou desvantagens; conforme denote o exame da modelagem requerida para o caso concreto.

Comecemos, pois, pela natureza jurídica. Os contratos de gestão e termos de parceria, conquanto detenham em comum natureza jurídica assemelhada aos convênios – embora não sujeitas à sua sistemática tradicional –, acabam por não partilhar da natureza de contrato administrativo, cuja presença se nota no primeiro caso. Dado esse hibridismo, Sílvio Luiz Ferreira da Rocha chega a classificar os contratos de gestão como sendo contratos administrativos degradados. Vejamos:

“O exame do regime jurídico do contrato de gestão aponta, no entanto, para peculiaridades existentes tanto no contrato administrativo, como no convênio, com uma leve predominância do regime do contrato administrativo, mas não em sua totalidade, o que autoriza-nos a classificar o contrato de gestão como um contrato administrativo degradado. Falta-lhe, na essência, o reconhecido equilíbrio econômico-financeiro do administrado.” (Terceiro Setor, Coleção Temas de Direito Administrativo, 2ª edição, Malheiros:2006)

Vale lembrar que essas modalidades de ajuste, em si mesmas consideradas, mostram certo ponto de divergência entre os regimes a que se sujeitam, dado que não lhes é possível cumular qualificações; ou seja, ou a entidade qualificada será uma organização social, celebrando contratos de gestão; ou então uma organização da sociedade civil de interesse público, firmando termos de parceria; mesmo porque seus campos de atuação, segundo a legislação federal, não se confundem.

Ademais, possível aferir que, segundo o modelo federal, a composição das organizações sociais exige a participação de membros do Poder Público – o que nos parece bastante questionável, por impactar diretamente na capacidade de organização dessas entidades, vedada pelo artigo 5º, inciso XVIII, da Constituição Federal –; no intuito que assumam determinadas atividades então desempenhadas por entidades da Administração Pública, e resultando na extinção destas últimas.

O que não se verifica nas organizações da sociedade civil de interesse público, dado que não há qualquer exigência de que as integrem quaisquer servidores públicos; tampouco impactem nas atribuições de entidades ou órgãos da Administração Pública ao atuarem juntamente com esta. Não é outro o entendimento de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, para quem:

“... embora haja pontos em comum as organizações sociais e as organizações da sociedade civil de interesse público, o objetivo é diverso nos dois casos: nas primeiras, o intuito evidente é o de que elas assumam determinadas atividades hoje desempenhadas, como serviços públicos, por entidades da Administração Pública, resultando na extinção destas últimas. Nas segundas, essa intenção não existe, pois a qualificação da entidade como organização da sociedade civil de interesse público não afeta em nada a existência ou as atribuições de entidades ou órgãos integrantes da Administração Pública.”

Assuntos relacionados
Sobre os autores
Alexandre Massarana da Costa

Advogado, pós-graduado em direito constitucional e político, com atuação na área do direito público.

Marcos Antonio

Advogado com atuação especializada em direito público, palestrante na área do direito administrativo, sócio do escritório Monteiro & Massarana Sociedade de Advogados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Alexandre Massarana ; GABAN MONTEIRO, Marcos Antonio. O regime colaborativo estatal na área da saúde: as parcerias com o terceiro setor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3809, 5 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26061. Acesso em: 26 abr. 2024.

Mais informações

Há uma enorme carência na compreensão das necessidades e mesmo das possibilidades que o regime de colaboração com o Terceiro Setor, se bem aplicado, podem resultar, gerando benefícios sociais tão caros à sociedade, em especial na área da saúde. Esse artigo visa reunir os estudos e a experiência concreta de seus idealizadores em prol de um Estado igualmente presente.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos