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O Ato da Comissão Diretora nº 3/2013 do Senado Federal:

uma violação ao direito à saúde pela contrariedade ao princípio da proibição do retrocesso social

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Análise do Ato da Comissão Diretora do Senado Federal nº 03/2013, que extinguiu a Secretaria de Assistência Médica e Social (SAMS), sob a ótica do princípio da proibição do retrocesso social.

            Conforme Cunha[2], "a saúde é um direito de todos os cidadãos brasileiros, frito de muita luta e conquista e que gera, por sua vez, o dever do Estado de propiciá-lo imediatamente, sob pena de ser instado judicialmente a fazê-lo".

            E na conceituação de Dallari[3], saúde "não é apenas a ausência de doenças, mas envolve o completo bem-estar físico, mental e social."

            A Constituição Federal de 1988, em seus arts. 6º e 196, prevê a proteção à Saúde do Brasileiro, nos seguintes termos:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

            Trata-se, portanto e essencialmente, de se proteger o núcleo essencial do direito subjetivo à saúde, constitucionalmente garantido.

            É que, o direito à saúde assume uma dimensão positiva (prestacional) e outra negativa (garantistica). A prestacional diz respeito à obrigação do Estado em ações concretas para garantir a saúde do cidadão. A garantistica diz respeito à obrigação do Estado de se abster de praticar ações (no âmbito dos três Poderes) que impliquem em diminuição, violação, redução do direito à saúde do cidadão. Em último termo, é a obrigação do Estado de garantir ao cidadão a liberdade de exercer seu direito subjetivo à saúde[4].

            Para a proteção específica do Servidor Público, a Lei nº 8.112/90, dispôs que a assistência à saúde poderia ser feita pelo SUS, diretamente pelo órgão ou entidade ao qual o servidor está vinculado ou mediante convênio. É o que determina o art. 230 do Regime Jurídico do Servidor Público:

Art. 230. A assistência à saúde do servidor, ativo ou inativo, e de sua familia compreende assistência médica, hospitalar, odontológica, psicológica e farmacêutica, terá como diretriz básica o implemento de ações preventivas voltadas para a promoção da saúde e será prestada pelos Sistema Único de Saúde - SUS, diretamente pelo órgão ou entidade ao qual estiver vinculado o servidor, ou mediante convênio ou contrato, ou ainda na forma de auxílio, mediante ressarcimento parcial do valor despendido pelo servidor, ativo ou inativo, e seus dependentes ou pensionistas com planos ou seguros privados de assistência à saúde, na forma estabelecida em regulamento.

            Importante é observar que, nos termos do art. 1º, da Lei nº 9.656/98, os Planos de Saúde atuam somente no acesso à assistência médica, hospitalar e odontológica. Não possuem, pois, qualquer obrigação legal na atuação preventiva voltada para a promoção da saúde. Ou seja, a obrigação preventiva, fica a cargo do SUS. Ou, no caso de servidor público, a cargo do Órgão ao qual estiver vinculado ao servidor.

            No âmbito do Senado Federal,  o direito à saúde do servidor foi garantido diretamente pelo órgão, através do Sistema Integrado de Saúde (SIS). Referido Sistema Integrado foi regulamentado pela Resolução nº 35, de 2012. O art. 2º do Regulamento dispõe expressamente:

Art. 2º. O Plano de Assistência à Saúde do SIS adota as definições constantes do Anexo deste Regulamento e consistirá em:

I - serviços próprios prestados pela Secretaria de Assistência Médica e Social (Sams), sem ônus para o servidor, nos termos do Regulamento Administrativo do Senado Federal e suas normas complementares;

II - serviços prestados por instituições públicas e privadas credenciadas pelo SIS;

III - serviços prestados por profissionais liberais e instituições públicas e privadas de livre escolha dos beneficiários, não credenciadas pelo SIS;

IV - serviços de internação domiciliar, denominados home care.

            Fica delimitada, então, a premissa fática e jurídica: O Senado Federal, para garantir o direito social à saúde de seus servidores, estabeleceu e regulamentou serviço próprio, prestado pela Sams. Referida Secretaria, já de há muito estruturada, aparelhada e em funcionamento, possuía  funcionários de carreira há muito trabalhando, além de contar com cidadãos já aprovados no último concurso realizado em 2012, que apenas aguardavam nomeação e posse.

            Essa prestação de serviço à saúde incorporou-se ao patrimônio jurídico dos servidores do Senado Federal - já que direito social afeto à dignidade humana e ao direito à vida, constitucionalmente garantido -, e não poderia lhes ser retirado, sequer com seu expresso consentimento, tendo em vista que o direito à saúde e à vida são direitos irrenunciáveis, nos termos do art. 11, do Código Civil[5], e regras decorrentes[6].

            Há pois, perfeitamente identificável, um núcleo essencial do direito[7] à saúde dos servidores do Senado, imanente, que não pode ser esvaziado ou retrocedido, eu que veda qualquer ação normativa que alcance sua plena disposição.

             No entanto, a Gestão que assumiu o biênio 2013/2015, do Senado Federal, por meio do Ato da Comissão Diretora nº 3/2013[8], avança sobre referido direito, e desmantela todo o serviço de saúde já estruturado e em funcionamento.

            Com efeito, sob o pretexto de "implementar medidas de racionalização administrativa no âmbito do Senado Federal, com redução de despesas", a Comissão Diretora decidiu contraria o disposto no art. 2º, I, do Anexo da Resolução 35, 2012. Eis o teor das normas do Ato nº 3/2013 que finalizam com o serviço médico:

Art. 3º O atendimento ambulatorial realizado pela Secretaria de Assistência Médica e Social será encerrado, ressalvadas as unidades destinadas a prestar os seguintes serviços:

I - unidade de pronto atendimento médico;

II - perícias sobre ressarcimentos a serem feitos pelo SIS;

III- atividades de junta médica e medicina do trabalho, nos termos da legislação aplicável.

§ 1º Os servidores que se encontram prestando serviço de atendimento de saúde sem que pertençam a uma das carreiras médicas do quadro do Senado Federal deverão ser relotados em suas funções correspondentes.

§ 2º No prazo de 30 dias deverá ser identificada a lotação ideal de servidores necessária para a manutenção do serviço médico, nos termos fixados neste Ato.

Art. 4º Ficam vedadas as nomeações para os cargos de Técnico Legislativo, especialidades de Policial Legislativo Federal, Enfermagem e Odontologia e para os cargos de Analista Legislativo, especialidades de Medicina, Odontologia,  Farmácia, Psicologia, Assistência Social, Enfermagem, Fisioterapia e Nutrição.

Observa-se que a agressão gratuita perpetrada pela Comissão Diretora viola direitos básicos já de a muito assegurados constitucionalmente, atingido o princípio da vedação do retrocesso social.

            Segundo Cunha[9], “uma vez alcançado determinado grau de concretização de uma norma constitucional definidora de direito social – aquela que descreve uma conduta, omissiva ou comissiva, a ser seguida pelo Estado ou por particulares – fica o legislador proibido de suprimir ou reduzir essa concretização sem a criação de mecanismo equivalente ou substituto.

             No ARE 639337[10], o Min. Celso de Mello magistralmente colocou a questão: havendo o direito previsto, daí deriva prerrogativa jurídica que impõe ao Estado, por conta de sua alta significação, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, a fruição do direito vindicado, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. Inobstante referida decisão ter sido proferia no sentido de obrigar determinado município a construir uma creche, seu fundamente cai como uma luva na presente situação: garantir o direito imposto constitucionalmente.

            Pede-se licença para transcrever o trecho da Ementa:

ARE 639337 AgR, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125

(...)

DESCUMPRIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DEFINIDAS EM SEDE CONSTITUCIONAL: HIPÓTESE LEGITIMADORA DE INTERVENÇÃO JURISDICIONAL. - O Poder Público - quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de implementar políticas públicas definidas no próprio texto constitucional - transgride, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional. Precedentes: ADI 1.484/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.. - A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos. - A intervenção do Poder Judiciário, em tema de implementação de políticas governamentais previstas e determinadas no texto constitucional, notadamente na área da educação infantil (RTJ 199/1219-1220), objetiva neutralizar os efeitos lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto a direitos básicos que a própria Constituição da República assegura à generalidade das pessoas. Precedentes. A CONTROVÉRSIA PERTINENTE À “RESERVA DO POSSÍVEL” E A INTANGIBILIDADE DO MÍNIMO EXISTENCIAL: A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS”. - A destinação de recursos públicos, sempre tão dramaticamente escassos, faz instaurar situações de conflito, quer com a execução de políticas públicas definidas no texto constitucional, quer, também, com a própria implementação de direitos sociais assegurados pela Constituição da República, daí resultando contextos de antagonismo que impõem, ao Estado, o encargo de superá-los mediante opções por determinados valores, em detrimento de outros igualmente relevantes, compelindo, o Poder Público, em face dessa relação dilemática, causada pela insuficiência de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder a verdadeiras “escolhas trágicas”, em decisão governamental cujo parâmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, deverá ter em perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial, em ordem a conferir real efetividade às normas programáticas positivadas na própria Lei Fundamental. Magistério da doutrina. - A cláusula da reserva do possível - que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição - encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana. Doutrina. Precedentes. - A noção de “mínimo existencial”, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança. Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, de 1948 (Artigo XXV). A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. - O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. - A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em conseqüência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar - mediante supressão total ou parcial - os direitos sociais já concretizados.

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            A justificativa apresentada pela Comissão Diretora para a Edição do Ato nº 3/2013, foi a necessidade de economizar recursos, por suposta superposição de competências entre a Sams e o SUS. Referida superposição não ocorre, pois a prestação de serviços de saúde de forma autônoma por Órgão Estatal a seus servidores decorre expressamente do art. 230, da Lei nº 8.112/90. Mais, a prestação de tais serviços ocorre em relação de complementariedade, nunca superposição.

            Quanto ao motivo relativo à economia de recursos, lapidar é o voto do Ministro Celso de Mello a respeito, proferido no acórdão já citado, do qual colhemos o seguinte magistério:

“Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à “reserva do possível” (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, “The Cost of Rights”, 1999, Norton, New York; ANA PAULA DE BARCELLOS, “A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais”, p. 245/246, 2002, Renovar), que tem constituído objeto de aguda reflexão teórica em razão das tensões dialéticas entre os modelos de Estado Social e de Estado Liberal e Neoliberal (LUÍS FERNANDO SGARBOSSA, “Crítica à Teoria dos Custos dos Direitos: Reserva do Possível”, vol. 1, 2010, Fabris Editor), notadamente quando se tratar de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas.

Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a Documento assinado digitalmente conforme  limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.

Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político- -administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Informativo/STF nº 345/2004).

Impende ressaltar, ante a inquestionável procedência de suas observações, a decisão proferida pela eminente Ministra CÁRMEN LÚCIA (AI 583.136/SC), em tudo aplicável, por identidade de situação, ao caso em análise:

“9. Exatamente na esteira daquela jurisprudência consolidada é que cumpre reconhecer o dever do Estado de implementar as medidas necessárias para que as crianças e os adolescentes fiquem protegidos de situações que os coloquem em risco, seja sob a forma de negligência, de discriminação, de exploração, de violência, de crueldade ou a de opressão, situações que confiscam o mínimo existencial sem o qual a dignidade da pessoa humana é mera utopia. E não se há de admitir ser esse princípio despojado de efetividade constitucional, sobre o que não mais pende discussão, sendo o seu cumprimento incontornável.

10. Reitere-se que a proteção contra aquelas situações compõe o mínimo existencial, de atendimento obrigatório pelo Poder Público, dele não podendo se eximir qualquer das entidades que exercem as funções estatais, posto que tais condutas ilícitas afrontam o direito universal à vida com dignidade, à liberdade e à segurança.”

Não se desconhece que a destinação de recursos públicos, sempre tão dramaticamente escassos, faz instaurar situações de conflito, quer com a execução de políticas públicas definidas no texto constitucional, quer, também, com a própria implementação de direitos sociais assegurados pela Constituição da República, daí resultando contextos de antagonismo que impõem, ao Estado, o encargo de superá-los mediante opções por determinados valores, em detrimento de outros igualmente relevantes, compelindo, o Poder Público, em face dessa relação dilemática, causada pela insuficiência de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder a verdadeiras “escolhas trágicas” (GUIDO CALABRESI/PHILIP BOBBITT, “Tragic Choices – The Conflicts society confronts in the allocation of tragically scarce resources”, W.W. Norton & Company, Inc., 1978; GUSTAVO ALMEIDA PAOLINELLI DE CASTRO, “Direito à Segurança Pública: Intervenção, Escassez e Escolhas Trágicas”; SÔNIA FLEURY, “Direitos Sociais e Restrições Financeiras: Escolhas Trágicas sobre Universalização”, v.g.), em decisão governamental cujo parâmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, deverá ter em perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial, em ordem a conferir real efetividade às normas programáticas positivadas na própria Lei Fundamental.

É por essa razão que DANIEL SARMENTO, ao versar o tema pertinente ao controle judicial de políticas públicas (“Reserva do Possível e Mínimo Existencial”, “in” “Comentários à Constituição Federal de 1988”, p. 371/388, 371/375, 2009, Gen/Forense), expendeu considerações que vale reproduzir:

“Até então, o discurso predominante na nossa doutrina e jurisprudência era o de que os direitos sociais constitucionalmente consagrados não passavam de normas programáticas, o que impedia que servissem de fundamento para a exigência em juízo de prestações positivas do Estado. As intervenções judiciais neste campo eram raríssimas, prevalecendo uma leitura mais ortodoxa do princípio da separação de poderes, que via como intromissões indevidas do Judiciário na seara própria do Legislativo e do Executivo as decisões que implicassem controle sobre as políticas públicas voltadas à efetivação dos direitos sociais. Hoje, no entanto, este panorama se inverteu. Em todo o país, tornaram-se freqüentes as decisões judiciais determinando a entrega de prestações materiais aos jurisdicionados relacionadas a direitos sociais constitucionalmente positivados. Trata-se de uma mudança altamente positiva, que deve ser celebrada. Atualmente, pode-se dizer que o Poder Judiciário brasileiro ‘leva a sério’ os direitos sociais, tratando-os como autênticos direitos fundamentais, e a via judicial parece ter sido definitivamente incorporada ao arsenal dos instrumentos à disposição dos cidadãos para a luta em prol da inclusão social e da garantia da vida digna. Sem embargo, este fenômeno também suscita algumas questões complexas e delicadas, que não podem ser ignoradas. Sabe-se, em primeiro lugar, que os recursos existentes na sociedade são escassos e que o atendimento aos direitos sociais envolve custos. (...). ...................................................

Neste quadro de escassez, não há como realizar, ‘hic et nunc’, todos os direitos sociais em seu grau máximo. O grau de desenvolvimento socioeconômico de cada país impõe limites, que o mero voluntarismo de bacharéis não tem como superar. E a escassez obriga o Estado em muitos casos a confrontar-se com verdadeiras ‘escolhas trágicas’, pois, diante da limitação de recursos, vê-se forçado a eleger prioridades dentre várias demandas igualmente legítimas. (...). ...................................................

As complexidades suscitadas são, contudo, insuficientes para afastar a atuação do Poder Judiciário na concretização dos direitos sociais. Com a consolidação da nova cultura constitucional que emergiu no país em 1988, a jurisprudência brasileira deu um passo importante, ao reconhecer a plena justiciabilidade dos direitos sociais. No entanto, essas dificuldades devem ser levadas em conta. Vencido, com sucesso, o momento inicial de afirmação da sindicabilidade dos direitos prestacionais, é chegada a hora de racionalizar esse processo. Para este fim, cumprem importante papel, como parâmetros a orientar a intervenção judicial nesta seara, duas categorias que vêm sendo muito discutidas na dogmática jurídica: a reserva do possível e o mínimo existencial, que serão analisadas abaixo. Há outras, todavia, que também têm importância capital neste campo, como o princípio da proporcionalidade, na sua dimensão de vedação à proteção deficiente, e o princípio da proibição do retrocesso social.”

Cabe ter presente, bem por isso, consideradas as dificuldades que podem derivar da escassez de recursos – com a resultante necessidade de o Poder Público ter de realizar as denominadas “escolhas trágicas” (em virtude das quais alguns direitos, interesses e valores serão priorizados “com sacrifício” de outros) -, o fato de que, embora invocável como parâmetro a ser observado pela decisão judicial, a cláusula da reserva do possível encontrará, sempre, insuperável limitação na exigência constitucional de preservação do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana, tal como tem sido reconhecido pela jurisprudência constitucional desta Suprema Corte:

“CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE ABUSO E/OU EXPLORAÇÃO SEXUAL. DEVER DE PROTEÇÃO INTEGRAL À INFÂNCIA E À JUVENTUDE. OBRIGAÇÃO CONSTITUCIONAL QUE SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO. PROGRAMA SENTINELA–PROJETO ACORDE. INEXECUÇÃO, PELO MUNICÍPIO DE FLORIANÓPOLIS/SC, DE REFERIDO PROGRAMA DE AÇÃO SOCIAL CUJO ADIMPLEMENTO TRADUZ EXIGÊNCIA DE ORDEM CONSTITUCIONAL. CONFIGURAÇÃO, NO CASO, DE TÍPICA HIPÓTESE DE OMISSÃO INCONSTITUCIONAL IMPUTÁVEL AO MUNICÍPIO. DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO PROVOCADO POR INÉRCIA ESTATAL (RTJ 183/818-819). COMPORTAMENTO QUE TRANSGRIDE A AUTORIDADE DA LEI FUNDAMENTAL (RTJ 185/794-796). IMPOSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO, PELO PODER PÚBLICO, DA CLÁUSULA DA RESERVA DO POSSÍVEL SEMPRE QUE PUDER RESULTAR, DE SUA APLICAÇÃO, COMPROMETIMENTO DO NÚCLEO BÁSICO QUE QUALIFICA O MÍNIMO EXISTENCIAL (RTJ 200/191-197). CARÁTER COGENTE E VINCULANTE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS, INCLUSIVE DAQUELAS DE CONTEÚDO PROGRAMÁTICO, QUE VEICULAM DIRETRIZES DE POLÍTICAS PÚBLICAS. PLENA LEGITIMIDADE JURÍDICA DO CONTROLE DAS OMISSÕES ESTATAIS PELO PODER JUDICIÁRIO. A COLMATAÇÃO DE OMISSÕES INCONSTITUCIONAIS COMO NECESSIDADE INSTITUCIONAL FUNDADA EM COMPORTAMENTO AFIRMATIVO DOS JUÍZES E TRIBUNAIS E DE QUE RESULTA UMA POSITIVA CRIAÇÃO JURISPRUDENCIAL DO DIREITO. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DELINEADAS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA (RTJ 174/687 – RTJ 175/1212-1213 – RTJ 199/1219-1220). RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL CONHECIDO E PROVIDO.”

(AI 583.553/SC, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Não constitui demasia acentuar, por oportuno, que o princípio da dignidade da pessoa humana representa - considerada a centralidade desse postulado essencial (CF, art. 1º, III) - significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo, tal como tem reconhecido a jurisprudência desta Suprema Corte, cujas decisões, no ponto, refletem, com precisão, o próprio magistério da doutrina (JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Poder Constituinte e Poder Popular”, p. 146, 2000, Malheiros; RODRIGO DA CUNHA PEREIRA, “Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil Brasileiro”, p. 106, 2006, Del Rey; INGO WOLFANG SARLET, “Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988”, p. 45, 2002, Livraria dos Advogados; IMMANUEL KANT, “Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos”, 2004, Martin Claret; LUIZ ANTONIO RIZZATTO NUNES, “O Princípio Constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência”, 2002, Saraiva; LUIZ EDSON FACHIN, “Questões do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo”, 2008, Renovar, v.g.).

A noção de mínimo existencial, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança.

Orienta-se, nesse mesmo sentido, a própria Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, promulgada, em Paris, em 10/12/1948, pela Terceira Assembléia Geral das Nações Unidas, cujo Artigo XXV assim proclama: 

“1. Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem- -estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.”

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.”

            Portanto, por qualquer ângulo que se pretenda observar a questão, a Mesa Diretora pura e simplesmente  violou o direito à saúde de seus servidores, incidindo naquilo que Celso Antônio Bandeira de Mello afirma ser a pior das violações: a violação ao princípio constitucional de proteção a direito social fundamental.

            Destarte, conforme o acima exposto, o Ato da Mesa Diretora nº 03/2013, seria nulo e portanto não deveria produzir efeitos, e, os efeitos já produzidos deveriam ser anulados, com a consequente dos responsáveis.


[1] Advogado.

[2] CUNHA, Jarbas Ricardo Almeida. O princípio da proibição do retrocesso social como norte para o desenvolvimento do direito à saúde no Brasil. Artigo submetido à avaliação da comissão responsável pela área temática nº8 - "Direito e Desenvolvimento"da Conferência de Desenvolvimento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (CODE-IPEA). Brasilia, 2011, s.r.

[3] DALLARI, Sueli. DIREITO A SAÚDE. <http://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/bib/dallari3.htm> acesso em 07.11.2013.

[4] Sobre o assunto as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, no seu livro: Eficácia das Normas Constitucionais e Direitos Sociais. 1ª Ed. 2ª Tiragem. São Paulo:Malheiros, 2010.

[5] Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.

[6] Como por exemplo, no mesmo Código Civil:

Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.

Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.

Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

[7] Sobre conceituação e a teoria do núcleo essencial dos direitos fundamentais, ver, por todos: AWAD, Fahd Medeiros. Proibição de retrocesso social diante da garantia do núcleo essencial dos direitos fundamentais. In Justiça do Direito. v.24, n.1, 2010, p.90-100. disponível em: <http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=8&ved=0CF4QFjAH&url=http%3A%2F%2Fwww.upf.br%2Fseer%2Findex.php%2Frjd%2Farticle%2Fdownload%2F2146%2F1386&ei=RaZ7Up_XB4T7kQeluoC4AQ&usg=AFQjCNHs5rhobhKLLikiwTcEalN0hHCyiA&bvm=bv.56146854,d.eW0> acesso em 07.11.2013

[8] BRASIL, Senado Federal. Comissão Diretora. Ato da Comissão Diretora nº 03, de 2013. Publicado no Boletim Administrativo do Senado Federal, Seção II, número 5165, de 20 de fevereiro de 2.013.

[9] CUNHA, Jarbas Ricardo Almeida. O princípio da proibição do retrocesso social como norte para o desenvolvimento do direito à saúde no Brasil. Artigo submetido à avaliação da comissão responsável pela área temática nº8 - "Direito e Desenvolvimento"da Conferência de Desenvolvimento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (CODE-IPEA). Brasilia, 2011, s.r.

[10] ARE 639337 AgR, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125

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Sobre o autor
Sergio Lindoso Baumann Pietroluongo

Advogado. Especialista em Direito Público na UniDF

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIETROLUONGO, Sergio Lindoso Baumann. O Ato da Comissão Diretora nº 3/2013 do Senado Federal:: uma violação ao direito à saúde pela contrariedade ao princípio da proibição do retrocesso social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3820, 16 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26158. Acesso em: 2 nov. 2024.

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