Resumo: A partir da análise de algumas paradigmáticas decisões do Supremo Tribunal Federal, exaradas durante o trâmite do Inquérito 2245/MG e da Ação Penal 470,também conhecida como ação do “mensalão”, em cotejo com a doutrina que respalda a constitucionalização do processo penal brasileiro, busca-se demonstrar que garantias processuais dos réus, conhecidos pejorativamente como “mensaleiros”, foram violadas. O tratamento exaustivo dado pela imprensa aos fatos, réus e agentes estatais envolvidos no contexto do processo estudado permite crer que as decisões da Suprema Corte se deram mais para atender àmidiatizada vigília da opinião pública, do que para garantir aos imputados o devido processo legal que legitimasse a justa sentença. Violações ao princípio da presunção da inocência, da garantia da imparcialidade do juiz e o trato indevido do princípio da publicidade parecem coincidir para a argumentação trabalhada neste artigo.
Palavras-chave: Processo Penal Constitucional – devido processo legal - garantias constitucionais – Supremo Tribunal Federal -ação penal 470 – mensalão – mídia - princípio da presunção de inocência – imparcialidade do juiz – princípio da publicidade
Sumário: 1. INTRODUÇÃO. 2. ESPETACULARIZAÇÃO DA AÇÃO PENAL 470. 3. DECIDIR OU ASSINAR A DECISÃO. 4. BATMAN E O JUIZ IMPARCIAL. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
INTRODUÇÃO
Para a elaboração deste artigo,parte-seda análise da Ação Penal 470 Minas Gerais, que tramita perante o Supremo Tribunal Federal(STF) e que traz a peculiaridade de versar sobre o popularmente conhecido como “Caso Mensalão”, talvez o maior escândalo de corrupção parlamentar da República Federativa do Brasil.
Estudam-se, sobretudo, os autos que compõem os cinco volumes do Inquérito 2245 e as diversas decisões interlocutórias tomadas em seu andamento, desaguando na decisão e recebimento da denúncia da referidaação penal. Pretende-se fazer a leitura sob o enfoque necessário da constitucionalização do processo penal.
Devido à enorme repercussão nacional dada ao Processo sub examine e a consequente projeção midiática dos atores estatais envolvidos no julgamento, entende-se que algumas garantias fundamentais dos réus demonstraram terem sido atingidas, ora pela necessidade de tratamento diferenciado e histórico do caso em tela, ora pela conclamação da opinião pública como balizamento da legitimidade da decisão da Suprema Corte. A partir destas constatações, críticas são apontadas, com amparo na doutrina abalizada e nas discussões havidas em sala de aula, sob orientação do Professor Doutor Felipe Martins Pinto, quando do magistério da disciplina “Temas de Processo Penal – Análise de precedentes dos Tribunais Superiores: aspectos processuais penais da Ação Penal 470”, ministrada no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG.
Percorrem-se, como parâmetro para a argumentação, algumas decisões interlocutórias exaradas no processo referenciado, a fim de demonstrar o rigor excessivo e diferenciado que se fez presente, em questionável fuga da perspectiva garantista adotada pelo Supremo Tribunal Federal. Tais decisões são confrontadas com a doutrina especializada e com a principiologia constitucional.
Busca-se evidenciar que a espetacularização dos fatos apurados no inquérito policialcitado, que tramitou sob a presidência do Ministro Joaquim Barbosa, e que deram azo à instauração do processo judicial, teve, ao que parece, o condão de afetara decisão final de alguns acórdãos e, portanto, a parcialidade do órgão julgador, que se absteve, ao cabo, da função contramajoritária[1] devida à Corte Constitucional.
A argumentação é orientada sob o prisma do princípio da presunção de inocência, sob a crítica à publicidade desvirtuada dada ao processo, bem como à imparcialidade diagnosticada em decisões discrepantes dos precedentes judiciais.
2.ESPETACULARIZAÇÃO DA AÇÃO PENAL 470
O estudo da paradigmática Ação Penal no. 470 - MG traz contornos indicativos (e preocupantes) sobre o atual estágio de constitucionalização do processo penal brasileiro. São vários os ângulos possíveis para a observação, a partir deste julgamento histórico e revelador da maturidade democrática do sistema processual vigente. Porém, independentemente do prisma eleito, o tratamento dado à presunção de inocência, princípio que permite “avaliar a qualidade de um sistema processual”[2], deverá ocupar seu espaço de honra no debate.
A peculiar cobertura midiática que se instalou em cada etapa desta famigerada ação penal, popularmente conhecida como “mensalão”, proporcionou uma avalanche de informações, “pré-juízos” e opiniões, que dificilmente deixaria imparcial o espectador. Ocupando grande espaço nos noticiários, as manchetes e editoriais jornalísticos cobraram de cada brasileiro seu quinhão no posicionamento firme e urgente sobre o propagado esquema de corrupção que teria assolado o Congresso Nacional.
Pobre daquele que, incomodado com a execração pública patrocinada pelos meios de comunicação, se arvorasse sob o manto da ponderação[3] e trouxesse consigoo estorvo[4] conjunto das garantias do processo penal em defesa dos acusados: amargaria o opróbrio social, quando não o estigma da conivência. Foi o recado subliminar dado a todos que se quisessem minoria.
O discurso massivo e reiterado da mídia buscou sufocar o próprio conceito do princípio da presunção de inocência, desconhecendo-o como “conceito basilar sobre o qual se edifica o modelo de processo penal garantista e de corte liberal”[5]. Os réus foram tratados desde o início dos levantamentos levados a cabo por repórteres investigativos[6] (ou pautados por estes) como se culpados fossem. Com a vantagem do sigilo das fontes[7], as revistas semanais traziam, a cada semana a partir das primeiras denúncias do “mensalão”, transmitidas ao vivo, outras “provas” de cometimento dos crimes por parte dos “mensaleiros”, frutos de “exitosas” diligências destes agentes persecutórios informais.
O questionável êxito da célere apuração realizada pelos órgãos de imprensa e importadas para a persecução penal já foi denunciado com propriedade:
o “tempo do direito” é diverso do “tempo da notícia/informação” e os juízos paralelos são muito mais acelerados. Como consequência, a atividade probatória, antes dirigida a formar convicção racional, também tem que derrubar uma esfera emotiva (pré-constituída) e também o pré-julgamento (forjado pela imprensa e seus juízos paralelos). É um imenso prejuízo pelo pré-juízo gerado pela intermediação midiática, com patente comprometimento da imparcialidade e da independência do julgador[8].
Transpondo os limites conhecidos da manipulação individual[9], a vinculação mídia - sistema penal, já denunciada pelo Prof. Nilo Batista[10], mostrou aqui, conforme o teor das decisões que permearam o trâmite da Ação Penal 470, a face da “executivização” das agências de comunicação social do sistema penal”, manipulando as instituições do Estado Democrático de Direito. Os órgãos de imprensa mostraram-se detentores da força para mobilizar o sistema penal e, sob tais circunstâncias, pautaram as “agências executivas do sistema”[11].
A partir das primeiras notícias da existência do “mensalão” trazidas à tona pela grande mídia, começou-se a delinear a vigília sobre os rumos da persecução penal.
Com efeito. A Folha de São Paulo, em 06/06/2005[12], trouxe a notícia de capa de entrevista exclusiva do então Presidente do PTB, Roberto Jefferson, denunciando o “mensalão” (matéria que, inclusive, cunhou o termo que passou a ser utilizado por todos e pela Suprema Corte, para designar o esquema de compra de votos no Congresso Nacional, em tese, patrocinado pelo Partido dos Trabalhadores).
A jornalista Renata Lo Prete, autora do furo jornalístico, e diante da ligação umbilical já demonstrada entre mídia e sistema penal, assumiu o papel de autoridade responsável pela investigação, conduzindo o interrogatório pormenorizado na entrevista veiculada, extraindo confissões e delações de Jefferson, que se solidificariam no meio social como verdades inabaláveis[13], já que afiançadas por órgão de imprensa de tamanha capacidade de difusão de informações.
A publicidade dada às denúncias/delações, dado seu amplo alcance e conteúdo incendiário, dificilmente encontraria uma reversão, em que pese a existência de defesas, argumentos contrários ou outras versões dos fatos.Sabe-se que “a inocência nunca é notícia”[14].
Não é outro o diagnóstico de Nilo Batista[15]:
Se, através da investigação direta de delitos, da circulação de pautas de interesse criminal, ou da franca intervenção sobre processos em andamento as agências de comunicação social do sistema penal se aproximam das agências executivas, precisam de um discurso para fundamentar sua performance. Mais do que isso, precisam que seu discurso se imponha aos concorrentes. Neste sentido, toda e qualquer re?exão que deslegitime aquele credo criminológico da mídia deve ser ignorada ou escondida: nenhuma teoria e nenhuma pesquisa questionadora do dogma penal, da criminalização provedora ou do próprio sistema penal são veiculadas em igualdade de condições com suas congêneres legitimantes. (grifos nossos)
Sintomático que o nascedouro da persecução tenha se dado não através de um depoimento dado a uma autoridade policial ou órgão do ministério público, senão justamente sob o aparato penal das agências de notícias.
Interessante aqui mencionar a importância dada ao depoimento do réu/denunciante Roberto Jéferson, em 12/06/05, perante o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, motivado justamente pelas declarações “bombásticas” [16] junto à Folha de São Paulo.O depoimento foi transmitido em rede nacional[17] e, em linguagem dramatizada, semelhante a de animadores de programas tais como o “Linha Direta” [18], com a mistura de dados reais e dados ?ccionais (na reconstituição de um crime nãopresenciado e que por sua natureza se esgueira pelas sombras) se encaminhou,de forma grosseiramente óbvia, a despertar aindignação dos telespectadores[19].
Ainda sob o encalço das câmeras da TV, em 02/08/05, Roberto Jefferson voltou a prestar declarações ao Conselho de Ética e Decoro Parlamentar. Suas palavras foram trazidas aos autos, pelo relator, como fundamentação do recebimento da denúncia contra o réu José Dirceu:
Sr. Presidente, Sr. Relator, Srs. Deputados, Sras. Deputadas, povo do Brasil, cidadão do Brasil, cidadã do Brasil, depois de ouvir o ex-Ministro José Dirceu, o Deputado José Dirceu, eu cheguei à conclusão de que foi ele quem treinou o Silvinho Pereira, o Delúbio e o Marcos Valério a mentirem. Não tem mensalão no Brasil. É conversa da imprensa. Todos os jornais mentem. Todas as revistas mentem. Todo o brasileiro prejulga o Ministro José Dirceu, esse inocente e humilde que aqui está, porque não tem mensalão. (grifos nossos).[20]
.Na parte grifada do excerto acima, extraído do voto do Ministro Joaquim Barbosa, vê-se a preponderância do crédito dado às páginas de imprensa[21] sobre a constitucional presunção de inocência[22].
Apesar de outros argumentos apresentados pelo relator para o recebimento da denúncia contra José Dirceu e demais réus, seria provável uma postura autônoma, diversa da exigência aclamada pela rede de notícias que domina a formação de opinião neste cenário?
Aury Lopes Júnior[23] responde com propriedade:
A publicidade abusiva, comprovadamente, causa distorção no comportamento dos sujeitos processuais (promotores, advogados e juízes), aumentando ainda mais o estigma do imputado. Uma das consequências negativas está no que Ibáñez define como “hiperpenalização” através da “espetacularização” do julgamento. A verdadeira garantia está exatamente no oposto, pois a presunção de inocência exige que o imputado seja protegido de tais fenômenos. [...] O livre convencimento passa a ser utópico diante do contaminado estado de ânimo do juiz.
De certa forma, articulada sob o amparo do foco pernicioso da “lei e ordem” [24], a imprensa nacional, entre os intervalos caríssimos de seus espaços publicitários (a esta altura supervalorizados), construiu uma teia retórica[25] antecipatória da condenação dos“40 ladrões”[26].
Não é demais ressaltar que “a mídia e os participantes da persecução penal, ao se “associarem” para vulnerar a imagem do imputado na busca de autopromoção (indevida) ou vantagem econômica, estão violando a presunção de inocência como “norma de tratamento”[27].
Quando de sua enumeração das dez pragas do sistema penal brasileiro, não foi sem razão que René Dotti[28] incluiu o flagelo dos “juízes paralelos: determinados pro?ssionais da mídia eletrônica e muitos juristas de plantão [...], apóstolos da suspeita temerária e militantes da presunção da culpa”. Para alimentar interesses privados e alavancar audiência, a versão da culpa é sempre mais interessante[29].
Paradigmático o livre uso de citações literais de matérias jornalísticas nas fundamentações das decisões que permearam a Ação Penal 470. Sabe-se que a isenção das linhas editoriais não é uma virtude encontrada entre nós, o que já invalidaria a utilização das entrevistas direcionadas. Observe-se como o relator da Ação Penal, ao justificar o recebimento da denúncia, seembasou indevidamente em matéria jornalística para exarar um de seusvotos:
Aliás, no que tange à suposta responsabilidade do Banco Rural pela concepção deste mecanismo de lavagem narrado pelo Procurador Geral da República, é interessante ler a entrevista concedida por Carlos Godinho, ex-superintendente de Compliance do Banco Rural (fls. 3368/3373, volume 15), à Revista Época (Edição 391 – Nov. 05), em reportagem intitulada “A caixa preta do Rural”, verbis: [...][30]
E deveras citou na íntegra a matéria jornalística, concluindo, depois de frágil fundamentação: “Assim, pode-se perceber que há indícios de participação do Banco Rural nos fatos objetos da acusação”.
Contra a singela fundamentação para o recebimento da denúncia in totum, no caso específico de Marcos Valério, não foi outra a visão da defesa, alardeando a influência da mídia e a “distorção no comportamento dos sujeitos processuais”[31]:
Na versão narrada na denúncia, de que discorda a defesa, o simples operador do intermediário foi trazido para o papel de figura central. A classe política armou, a mídia aceitou, o PGR embarcou e, na peça inicial, deu ao 5° denunciado, MARCOS VALÉRIO, uma importância desmedida, abusando nas expressões ofensivas ao mesmo (aliás, o único acusado expressamente xingado na denúncia), chegando-se ao ponto de ser ele a pessoa mais gravemente acusada, sendo-lhe imputado o maior número de crimes: art. 288, art. 299, art. 333 e art. 312, estes do Código Penal, art. 22, parágrafo único, da lei 7.492, e art. 1°, incisos V, VI e VII, da lei 9.613 (quadrilha, falsidade ideológica, corrupção ativa, peculato, evasão de divisas e lavagem de dinheiro, respectivamente), tudo em concurso material (art. 69, CP) e multiplicado várias vezes. [Observação: houve rejeição da denúncia apenas quanto à imputação de falsidade ideológica]. Na ânsia de mostrar serviço acusatório, o PGR ignora, solenemente, o instituto da continuidade delitiva, previsto no art. 71 do Código Penal, fazendo referência a ações que deveriam ser somadas "quatro vezes", "sessenta e cinco vezes", "três vezes" e "cinqüenta e três". Isto para divulgar para a mídia as contas aritméticas de penas exorbitantes possíveis por ocasião da entrega de suas alegações finais, quando estava pendente a sua recondução a novo mandato.[32]
Neste ponto, lembre-sedo ensinamento de Aury Lopes Júnior[33]:
A acusação não pode, diante da inegável existência de penas processuais, ser leviana e despida de um suporte probatório suficiente para, à luz do princípio da proporcionalidade, justificar o imenso constrangimento que representa a assunção da condição de réu.
A análise dos requisitos para o recebimento da denúncia deve ser criteriosa e exaustiva, uma vez que “a presunção de inocência como “norma de juízo” incide em toda decisão, no instante de se analisar o material probatório já produzido para a formação da convicção judicial.”[34] Tanto nas decisões de mérito, quanto nas demais decisões da persecução, manifestar-se-á o princípio.
Na linha de raciocínio do Prof. Maurício Zanoide de Moraes[35], encontra-se o pertinente trecho:
Devem ser considerados como violadores do atual modelo constitucional e, portanto, da presunção de inocência como “norma de juízo”, argumentos baseados em linhas criminológicas justificadoras, p. ex. do direito penal (e processual penal) do autor, do direito penal (e processual penal) do inimigo, de teorias “eficientistas” com as quais se busca a eliminação de diversos aspectos das garantias constitucionais do devido processo penal, assim como de uma política criminal de emergência punitiva e do direito penal (e processual penal) de “Lei e Ordem” (Law and Order).
Tampouco é cabível aqui a citação do velho adágio in dubio pro societate. Escorar a racionalidade de um processo penal constitucional neste brocardo é se esquecer da coerência lógica exigida pelo ordenamento, lembrada por Maurício Zanoide de Moraes[36]:
A doutrina já demonstrou que o “in dubio pro societate” é um “absurdo lógico-jurídico” uma vez que o órgão acusador, que tem o ônus de provar sua tese jurídica, será o beneficiado por não cumpri-lo de modo suficiente: quem deveria provar não provou ou não o fez de modo suficiente, porém, mesmo não provando sua tese de modo pleno, sairá vencedor.
Vê-se que o recebimento da denúncia também deve seguir a lógica constitucional que preza pela presunção da inocência. O recebimento da denúncia não pode se esquivar de criteriosa análise dos requisitos de necessidade e legitimidade acusatória[37], vez que a autorização para o início da ação penal traz pesados encargos para o imputado e para o Estado.
2. DECIDIR OU ASSINAR A DECISÃO
Não se pode olvidar que “o juiz é passível de sofrer vários tipos de influência no instante de decidir, não sendo de se desconsiderar a força que os meios de comunicação produzem e projetam neste momento”[38]. Assim, a Ação Penal 470 é farta destes exemplos de inflexão da parcialidade judicante pela sedução dos aplausos propiciados pela transmissão midiática.
Cite-se, e.g, a decisão da questão de ordem do Inquérito 2245-4[39], ondea Suprema Corte recebeu, na condição de juiz natural,a Ação Penal para julgamento.
Antes mesmo da denúncia se aproximar da mesa do Colendo Tribunal, a sentença da opinião pública já havia sido dada e a polícia midiática monitorava tão somente a dosagem das penas a serem aplicadas.
Aqui, não seria demais vislumbrar a força atrativa já denunciada e que, ao final, em seu conjunto, levaria a decisão do STF para fora do traçado garantista, “para o ponto fora da curva”[40]. O próprio Procurador Geral da República, em parecer emitido sobre o pedido de desmembramento do processo, tendo em vista que apenas seis dos quarenta denunciados possuíam prerrogativa de função, já se conformava com a decisão pelo desmembramento, conhecido precedente da própria Corte:
Entretanto, conheço o entendimento dessa Corte Suprema em casos assemelhados, que é no sentido de determinar o desmembramento do feito, para que permaneçam submetidos ao seu juízo apenas os denunciados que têm foro por prerrogativa de função[41].
Nas palavras do Ministro Joaquim Barbosa[42], até o momento desta decisão “fora da curva”, a jurisprudência do STF era “uníssona no sentido de aplicar o disposto no artigo 80 do CPP, em casos de pluralidade de partes em processo criminal no qual apenas uma ou algumas das pessoas denunciadas gozam da prerrogativa de foro prevista no artigo 102, I, b da Constituição Federal.”
Acontece que, como já demonstrado, sem entrar no mérito da tipificação dos possíveis crimes cometidos, houve para o “peso mensalão” uma outra medida. Os réus que se viram denunciados pela mídia e Ministério Público Federal tiveram, sob o argumento insuficientemente democrático do clamor social, violados princípios da igualdade e da garantia de serem julgados pelo juiz natural[43]. Observe-se a argumentação da Ministra Carmen Lúcia[44], que abriu a divergência, para fugir ao precedente do Supremo:
O rigor que se impõe a este caso, o qual me parece específico, muito peculiar da história brasileira e que, pela sua só notícia, independentemente de comprovação, agravou a sociedade brasileira da forma como aconteceu, não pode prescindir do conhecimento, da apreciação e do julgamento deste todo como um conjunto que tem uma essência substancial, portanto, entre os fatos inextrincáveis.
Difícil não chegar à constatação de que a Ação Penal 470 teve um julgamento excepcional: exigia-se rigor incomum do STF, exigia-se uma punição pela “sua só notícia, independentemente de comprovação.” Ainda que a excepcionalidade do art. 80 do CPP não deva ser a regra, e que as regras de fixação de competência, por conexão ou continência, imponham a unidade de processo e julgamento, conforme preceitua o caput do art. 79 do CPP, a coerência da argumentação jurídica trazida pelos ministros partidários da inseparabilidade processual poderia ter sido evocada em casos semelhantes, mas somente o foram no espetacular “mensalão”.
Registre-se que os riscos de conflituosas decisões judiciais e dificuldades de entendimento de todos os aspectos do crime perpetuado numa organização criminosa existemem toda separação de processo e, até então, nunca fora impedimento para decisões do STF neste sentido, como deixa claro este julgado:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. PENAL. CRIME DE QUADRILHA. FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. SEPARACÃO DOS PROCESSOS. CPP, art. 80. NÚMERO EXCESSIVO DE ACUSADOS. PREJUÍZO DA DEFESA: INEXISTÊNCIA. I. - O fato de um dos co-réus ser Deputado Federal não impede o desmembramento do feito com base no art. 80 do Código de Processo Penal. II. - A possibilidade de separação dos processos quando conveniente a instrução penal é aplicável também em relação ao crime de quadrilha ou bando (art. 288 do CódigoPenal). III. - Agravos não providos[45].
Arrematando esta passagem, o Ministro Eros Grau[46], que votou pela unidade de julgamento de todos os réus, asseverou que “este caso éhistoricamente relevante e a Corte tem o dever de dele se ocupar.”
Duas questões surgem a partir daí: os casos que chegam ao STF não devem ter o mesmo tratamento, em obediência à igualdade preconizada no caput do art. 5º da Constituição Federal? Num país de tantos escândalos, não raro o STF decide questões com mesmas variáveis. Assim, o “bombástico” tratamento da mídia e o respectivo clamor provocadonão teriam impelido o STF a decisões isoladamente “históricas”?
O Ministro Gilmar Mendes[47], em seu voto pela unidade de julgamento, cita outra idiossincrasia de tratamento desse processo, agora pelo Procurador Geral da República:
Ainda, que em todos os casos em que este Tribunal deferiu o desmembramento do processo, o fez em atenção a pedido expresso e devidamente fundamentado do Procurador-Geral daRepública. No presente caso, o próprio Procurador-Geral da República entende que não existem, neste caso, elementos que justifiquem o desmembramento do processo.
Decidida a destoante competência do STF no julgamento dos réus denunciados, desde que houvesse coautoria com titulares de prerrogativa de foro[48], coube ao Ministro Joaquim Barbosa assumir a relatoria da Ação Penal 470.
E o fez com o pulso forte que se exigia naquele momento “historicamente relevante”, com a pressão da grande mídia e sob os olhares vigilantes da opinião pública manipulada:
“Rejeito assim, todas as questões preliminares” [49], foi uma das decisões heroicas do relator.
Não por acaso, capas de revistas, charges e postagens em redes sociais associaram o relator do caso “mensalão” com a figura emblemática do herói dos quadrinhos, Batman. Esta é a óbvia remissão feita pela capa do livro de autoria do fast-thinker[50]jornalista Merval Pereira[51], “Mensalão - O dia a dia do mais importante julgamento da história política do Brasil”.
Neste ponto, é preciso esclarecer que, na lição de Maurício Zanoide[52], “a atividade dos meios de comunicação não pode ser tida, em tese, como violadora da presunção de inocência ou de qualquer outro direito fundamental.” No entanto, o abuso no exercício da imprensa pode configurar o ilícito.
Enquanto cabe a todos que atuam na persecução penal preservar o imputado para que não seja exposto à mídia na condição de culpado, cabe a esta evitar a divulgação de informações que lancem o imputado ao patamar de acusado, antes que esse status seja definido legitimamente pelo Judiciário.
Em tese, deveria ser assim a norma de tratamento da presunção de inocência. No entanto, ao revés, além da exposição por parte de autoridades responsáveis pela investigação, os conhecidos “vazamentos”, vê-se a imprensa inculpando os réus sem critério ou norma de conduta ética, apoiando seu discurso, muitas vezes tendencioso e antecipatório da culpa, na retórica trazida por “especialistas”.
O professor Nilo Batista[53], em seu artigo também orientador dessa crítica, assinala a perniciosa e fundamental importância do especialista (aqui em direito penal) na convalidação do amálgama entre mídia e agências executivas penais. O especialista dá aos espectadores o substrato falacioso que fundamentará a decisão de interesse do discurso espetacular. Assim, o parecer do especialista no assunto “não ultrapassa a função de argumento de autoridade [...]. Sua importância é puramente retórica: o cronista criminólogo está fundamentado nos especialistas [...].”
Debord[54] é enfático:
Todos os especialistas são midiáticos-estatais, e só dessa forma são reconhecidos como especialistas. Todo especialista serve a seu senhor, pois as antigas possibilidades de independência foram praticamente reduzidas a zero pelas condições de organização da sociedade atual. O especialista que mais bem serve é, evidentemente, aquele que mente. Quem tem necessidade do especialista, por motivos diversos, são o falsificador e o ignorante. Quando o indivíduo já não consegue reconhecer nada sozinho, ele vai ser formalmente tranquilizado pelo especialista.