Sabido é que a denúncia só tem capacidade jurídica de instalar ação penal válida e com potencialidade de produzir eficácia e efetividade quando contém os elementos determinados pelo artigo 41 do Código de Processo Penal, a saber:
a) Descrição do fato, com todas as circunstâncias;
b) Qualificação do acusado ou fornecimento de dados que possibilitem a sua identificação;
c) Classificação do crime;
d) Rol de testemunhas;
e) Pedido de condenação;
f) Endereçamento;
g) Nome e assinatura.
Ademais, a denúncia deve especificar fatos concretos, de modo a possibilitar ao acusado a sua defesa, não podendo se limitar a afirmações de cunho vago.
O Poder Judiciário tem consagrado o entendimento, em homenagem ao devido processo legal, que o réu se defende de fatos concretos que lhe são imputados e não da tipificação jurídica que lhes é dada. Essa postura obriga que o Ministério Público faça narrativa de fatos na denúncia que realmente aconteceram, a fim de ser identificada a essência da tipificação do delito. No particular, deve o Ministério Público descrever, com base em realidades acontecidas, os fatos, podendo até fazê-lo de modo resumido. O que se exige, contudo, é que a denúncia seja clara, direta, bem estruturada e precisa, isto é, contendo descrição comedida dos acontecimentos, a fim de não criar dificuldades para a defesa do acusado.
A peça acusatória não pode ser genérica. Os fatos devem ser individualizados e com características de concretude. Não devem nascer da imaginação do Ministério Público. Não pode a denúncia ser uma peça de ficção. Havendo concurso de infratores, há de a denúncia destacar a quota de participação de cada um na infração penal apontada como tendo sido consumada. A definição do grau dessa participação é indispensável. A denúncia há de relatar, com base em fatos apurados e existentes, o que está sendo imputado ao réu, em que circunstâncias, os efeitos produzidos no mundo concreto, para que o exercício da ampla defesa seja exercido.
O Supremo Tribunal Federal, no HC n. 822246/RJ, relatado pela Min. Ellen Gracie, DJ de 14.11.2002, p. 33, decidiu: “Em tema de crimes societários, é indispensável que a peça acusatória individualize a conduta de cada denunciado, sob pena de ser considerada inepta”.
O mesmo posicionamento adotou o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 135264/GO, relatado pelo Ministro Edson Vidigal, DJ de 17.08.1998, p. 79: “Nos chamados crimes societários é imprescindível que a denúncia descreva, ao menos sucintamente, a participação de cada pessoa no evento criminoso. A invocação da condição de sócio ou diretor, sem a individualização das condutas, não é suficiente para viabilizar a ação penal, por impedir o exercício do contraditório e da ampla defesa”.
Denúncia que não apresenta os requisitos acima elencados é inepta. A inépcia da denúncia deve ser reconhecida, especialmente, quando não há na inicial a descrição pormenorizada dos fatos, tendo em vista que é deles que o acusado se defende e que permite ao juiz aferir sobre a efetiva ocorrência do fato típico, estabelecendo os limites do campo temático a ser discutido no processo durante a sua tramitação. Não se pode ignorar o transtorno de uma acusação penal contra o cidadão. Por tal razão, a ele deve ser assegurado o direito fundamental da ampla defesa, abrindo-se espaço para que, desde logo, lhe seja dado conhecimento, o mais completo possível, de toda a extensão da pretensão punitiva contra ele instaurada.
Nesse sentido, Tourinho Filho1 consigna que, “na denúncia, o órgão do Ministério Público pede a condenação do réu. E, para pedi-la, obviamente deve imputar a prática de um crime. O fato criminoso, pois, é a razão do pedido da condenação, a causa petendi. Não se concebe, por absurdo, uma peça acusatória sem que haja causa petendi”
Dessa feita, o nosso ordenamento jurídico, em homenagem aos princípios da dignidade humana e da valorização da cidadania, não permite denúncia vaga, com base em fatos fictícios, irreal, genérica e sem um mínimo de prova que a sustente. A que assim se apresenta há de, inexoravelmente, ser considerada inepta.
Em respeito ao princípio fundamental do devido processo legal, toda acusação posta em denúncia penal sofre limites jurídicos. Estes são os de que a peça acusatória deve apresentar-se vinculada à contextualização dos fatos de natureza concreta. Não pode haver denúncia com base em fatos abstratos. A denúncia não será reconhecida como capaz de instaurar ação penal contra qualquer cidadão quando for deficiente na narrativa dos fatos ou não demonstrar, inicialmente, a sua existência mínima, limitando-se a indicar, apenas, o dispositivo legal supostamente infringido. No mesmo plano impositivo de rejeição da denúncia encontra-se a situação em que a denúncia descreve “fatos intricados, ininteligíveis, contraditórios”, conforme ensina Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar2.
A reforma imposta ao Código de Processo Penal pela Lei nº 11.719/2008, consagrando o entendimento construído pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, com referência aos casos de rejeição da denúncia, revogou o art. 43. do Código de Processo Penal, passando a considerar maculada a denúncia quando não se apresentar composta por todos os elementos definidos no art. 41. e nas hipóteses descritas no art. 395, tudo do normativo processual mencionado.
Temos, na quadra atual construída pelo nosso ordenamento jurídico processual penal, a rejeição obrigatória da denúncia pelo juiz, nas situações seguintes:
a) Quando for manifestamente inepta;
b) Quando lhe faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal;
c) Quando lhe faltar justa causa.
As três hipóteses acima configuradas devem ser somadas com as determinadas pelo art. 397. do Código de Processo Penal:
I – existência manifesta de causa excludente de ilicitude;
II – existência manifesta de causa de excludente de culpabilidade;
III – fato narrado evidentemente não constituir crime;
IV – estiver extinta a punibilidade.
A rejeição da denúncia, comprovadas as hipóteses acima elencadas, constitui um direito fundamental do cidadão acusado, pelo que é imperiosa a sua decretação por via de pronunciamento judicial adequado: na fase de seu recebimento ou, posteriormente, na apreciação da causa em julgamento antecipado.
O Superior Tribunal de Justiça tem proclamado que “A dificuldade na apuração de um delito não justifica o oferecimento precoce de denúncia e nem isenta o órgão de acusação de apresentar provas indiciárias do que foi imputado”. (Denúncia na APn nº 549, de São Paulo, relatada pelo Min. Feliz Fischer, Corte Especial, julgada em 21/10/2009).
No mesmo julgamento da APn 549/SP, ficou assentado :
“A denúncia deve vir acompanhada com o mínimo embasamento probatório, ou seja, com lastro probatório mínimo (HC 88.601/CE, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJU de 22/06/2007), apto a demonstrar, ainda que de modo incidiário, a efetiva realização do ilícito penal por parte do denunciado. Em outros termos, é imperiosa a existência de um suporte legitimador que revele de modo satisfatório e consistente, a materialidade do fato delituoso e a existência de indícios suficientes de autoria do crime, a respaldar a acusação, de modo a tornar esta plausível. Não se revela admissível a imputação penal destituída de base empírica idônea (INQ 1.978/PR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 17/08/2007) o que implica a ausência de justa causa a autorizar a instauração da persecutio criminis in iudicio”.
Certo é, conforme a doutrina e a jurisprudência, que o exercício do direito de ação penal exige que o inquérito ou as peças de informação devem conter elementos sérios e idôneos demonstrando que houve uma infração penal, e indícios, mais ou menos razoáveis, de que o seu autor foi a pessoa apontada no processo informativo ou nos elementos de convicção, porque a propositura de uma ação acarreta vexames à pessoa contra quem foi proposta.
Em síntese, a denúncia é considerada inepta quando:
a) Não individualiza a conduta do acusado;
b) Não expõe concretamente o fato imputado ao acusado;
c) Não permite ao acusado o exercício da ampla defesa e do contraditório por não ter fato concreto a se defender;
d) Não apresenta indícios de materialidade e de autoria envolvendo o acusado;
e) Omite-se na descrição de comportamento típico penal supostamente cometido pelo acusado.
O Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus nº 84.580, relatado pelo Ministro Celso de Melo, julgado em 25/08/2009, atualizou a sua jurisprudência para deixar assentado em nosso ordenamento jurídico, no referente à denúncia, os princípios sintetizados na ementa a seguir:
“’HABEAS CORPUS’ - CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL - RESPONSABILIDADE PENAL DOS CONTROLADORES E ADMINISTRADORES DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA - LEI Nº 7.492/86 (ART. 17) - DENÚNCIA QUE NÃO ATRIBUI COMPORTAMENTO ESPECÍFICO E INDIVIDUALIZADO AOS DIRETORES DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA - INEXISTÊNCIA, OUTROSSIM, DE DADOS PROBATÓRIOS MÍNIMOS QUE VINCULEM OS PACIENTES AO EVENTO DELITUOSO - INÉPCIA DA DENÚNCIA - PEDIDO DEFERIDO. PROCESSO PENAL ACUSATÓRIO - OBRIGAÇÃO DE O MINISTÉRIO PÚBLICO FORMULAR DENÚNCIA JURIDICAMENTE APTA. - O sistema jurídico vigente no Brasil - tendo presente a natureza dialógica do processo penal acusatório, hoje impregnado, em sua estrutura formal, de caráter essencialmente democrático - impõe, ao Ministério Público, notadamente no denominado "reato societario", a obrigação de expor, na denúncia, de maneira precisa, objetiva e individualizada, a participação de cada acusado na suposta prática delituosa. - O ordenamento positivo brasileiro - cujos fundamentos repousam, dentre outros expressivos vetores condicionantes da atividade de persecução estatal, no postulado essencial do direito penal da culpa e no princípio constitucional do "due process of law" (com todos os consectários que dele resultam) - repudia as imputações criminais genéricas e não tolera, porque ineptas, as acusações que não individualizam nem especificam, de maneira concreta, a conduta penal atribuída ao denunciado. Precedentes.
A PESSOA SOB INVESTIGAÇÃO PENAL TEM O DIREITO DE NÃO SER ACUSADA COM BASE EM DENÚNCIA INEPTA. - A denúncia deve conter a exposição do fato delituoso, descrito em toda a sua essência e narrado com todas as suas circunstâncias fundamentais. Essa narração, ainda que sucinta, impõe-se ao acusador como exigência derivada do postulado constitucional que assegura, ao réu, o exercício, em plenitude, do direito de defesa. Denúncia que deixa de estabelecer a necessária vinculação da conduta individual de cada agente aos eventos delituosos qualifica-se como denúncia inepta. Precedentes.
DELITOS CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL - PEÇA ACUSATÓRIA QUE NÃO DESCREVE, QUANTO AOS DIRETORES DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA, QUALQUER CONDUTA ESPECÍFICA QUE OS VINCULE, CONCRETAMENTE, AOS EVENTOS DELITUOSOS - INÉPCIA DA DENÚNCIA. - A mera invocação da condição de diretor ou de administrador de instituição financeira, sem a correspondente e objetiva descrição de determinado comportamento típico que o vincule, concretamente, à prática criminosa, não constitui fator suficiente apto a legitimar a formulação de acusação estatal ou a autorizar a prolação de decreto judicial condenatório. - A circunstância objetiva de alguém meramente exercer cargo de direção ou de administração em instituição financeira não se revela suficiente, só por si, para autorizar qualquer presunção de culpa (inexistente em nosso sistema jurídico-penal) e, menos ainda, para justificar, como efeito derivado dessa particular qualificação formal, a correspondente persecução criminal. - Não existe, no ordenamento positivo brasileiro, ainda que se trate de práticas configuradoras de macrodelinquência ou caracterizadoras de delinquência econômica, a possibilidade constitucional de incidência da responsabilidade penal objetiva. Prevalece, sempre, em sede criminal, como princípio dominante do sistema normativo, o dogma da responsabilidade com culpa ("nullum crimen sine culpa"), absolutamente incompatível com a velha concepção medieval do "versari in re illicita", banida do domínio do direito penal da culpa. Precedentes.
AS ACUSAÇÕES PENAIS NÃO SE PRESUMEM PROVADAS: O ÔNUS DA PROVA INCUMBE, EXCLUSIVAMENTE, A QUEM ACUSA. - Nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete, ao réu, demonstrar a sua inocência. Cabe, ao contrário, ao Ministério Público, comprovar, de forma inequívoca, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (Decreto-lei nº 88, de 20/12/37, art. 20, n. 5). Precedentes. - Para o acusado exercer, em plenitude, a garantia do contraditório, torna-se indispensável que o órgão da acusação descreva, de modo preciso, os elementos estruturais ("essentialia delicti") que compõem o tipo penal, sob pena de se devolver, ilegitimamente, ao réu, o ônus (que sobre ele não incide) de provar que é inocente. - Em matéria de responsabilidade penal, não se registra, no modelo constitucional brasileiro, qualquer possibilidade de o Judiciário, por simples presunção ou com fundamento em meras suspeitas, reconhecer a culpa do réu. Os princípios democráticos que informam o sistema jurídico nacional repelem qualquer ato estatal que transgrida o dogma de que não haverá culpa penal por presunção nem responsabilidade criminal por mera suspeita.”
(HC 84580, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 25/08/2009, DJe-176 DIVULG 17-09-2009 PUBLIC 18-09-2009 EMENT VOL-02374-02 PP-00222 RT v. 98, n. 890, 2009, p. 500-513)
CONCLUSÃO
Diante do exposto, podemos concluir, em apertada síntese, que a instauração de ação penal com debilidade probante constitui ilegalidade manifestada, atentando ao direito fundamental de paz que deve gozar o cidadão, o que deve ser reconhecido, em qualquer tempo, pelo magistrado dirigente do processo. Este, no caso de ter recebido a denúncia, deve, após ser surpreendido com as alegações de defesa demonstrando a impossibilidade de a ação penal prosseguir, por a peça acusatória ser inepta, subordinar-se aos ditames do art. 395 do Código de Processo Penal e, julgando antecipadamente a lide, extinguir o processo sem resolução de mérito.
REFERÊNCIAS
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual, 4ª. ed., Salvador: JusPodivm.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 10ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
Notas
1 In Manual de Processo Penal. 10ª Ed. São Paulo, Saraiva, 2008, p. 154.
2 In Curso de Direito Processual, 4ª. ed., Salvador: JusPodivm, p. 184.