Segundo o art. 312 do Código de Processo Penal, "a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria." Eis um dispositivo central no estudo das prisões no ordenamento jurídico brasileiro. Apesar disso, ele não raro dá margem a confusões.
Com efeito, parte da doutrina e da jurisprudência, ao interpretar o art. 312 do CPP, associa o pressuposto assecuratório da aplicação da lei penal com a ação do réu que evita o processamento do feito, agindo de maneira a inviabilizar a marcha processual. De acordo com esse raciocínio, por exemplo, se o réu se oculta para ser citado, a evitar o contato com os oficiais de justiça no endereço objeto da diligência citatória, cabe a expedição imediata do mandado de prisão preventiva pelo juiz.
Ocorre que tal pensamento não se harmoniza com a Constituição de 1988. No plano dos direitos fundamentais, especialmente os de índole processual penal, encontra-se implícita no texto constitucional a ideia de que a prisão é medida extrema, só admissível em último caso. É o que se pode extrair, já numa primeira leitura, do art. 5º, LXVI:
Art. 5º omissis
LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;
A questão é interessante e remete à tese do Direito Penal mínimo paralelamente ao desenvolvimento da teoria do garantismo com influência no processo penal. Frise-se que aquela é oriunda da política criminal; esta proveniente da dogmática jurídica. São teorizações diferentes, portanto, mas que se apresentam intrinsecamente ligadas, já que "o direito penal mínimo, quer dizer, condicionado e limitado ao máximo, corresponde não apenas ao grau máximo de tutela das liberdades dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza (FERRAJOLI, 2010, p. 102).
É no contexto de um processo penal garantista que a prisão, por ser medida de extrema gravidade, deve funcionar como um instrumento invocável em ultima ratio. Por outras palavras, se há medida menos gravosa apta a satisfazer a finalidade do processo, não cabe a decretação da custódia cautelar pelo juiz.
Pois essa premissa teórica segundo a qual é preciso afastar a primazia da prisão na tutela cautelar do Processo Penal encontra um bom exemplo em decisão do TRF1 no julgamento do HC 75525-37.2011.4.01.0000/MG. No caso concreto, foram expedidas cinco cartas precatórias para a citação de determinada acusada, que não foi encontrada no endereço fornecido. O juiz federal entendeu que, diante do teor das certidões acostadas aos autos, a anunciar a suspeita de que a acusada estivesse a evitar a ação da justiça, caberia a decretação da sua prisão preventiva, a fim de "assegurar a aplicação da lei penal" - que, como é cediço, constitui um dos pressupostos inscritos no art. 312 do CPP. O problema é que, ao assim decidir, o magistrado priorizou a prisão, em detrimento de outros mecanismos procedimentais menos gravosos. Logo, decidiu em sentido contrário ao ethos garantista da Constituição.
E qual seria a atitude correta do juiz diante do caso concreto? Em primeiro lugar, avaliar se o processo penal tem opção, que não seja o decreto prisional, passível de ser aplicada ao caso. E tem! Trata-se da citação por hora certa, prevista no art. 362 do CPP (com a redação dada pela Lei 11.719/08):
Art. 362. Verificando que o réu se oculta para não ser citado, o oficial de justiça certificará a ocorrência e procederá à citação com hora certa, na forma estabelecida nos arts. 227 a 229 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil.
Parágrafo único. Completada a citação com hora certa, se o acusado não comparecer, ser-lhe-á nomeado defensor dativo.
Sendo assim, após a reforma operada pela Lei 11.719/08, o CPP passou a admitir o emprego da citação por hora certa no Processo Penal. O Código utiliza-se, inclusive, do mesmo procedimento adotado na esfera processual civil - daí a remissão expressa aos arts. 227, 228 e 229 do CPC. Ei-los in verbis:
Art. 227. Quando, por três vezes, o oficial de justiça houver procurado o réu em seu domicílio ou residência, sem o encontrar, deverá, havendo suspeita de ocultação, intimar a qualquer pessoa da família, ou em sua falta a qualquer vizinho, que, no dia imediato, voltará, a fim de efetuar a citação, na hora que designar.
Art. 228. No dia e hora designados, o oficial de justiça, independentemente de novo despacho, comparecerá ao domicílio ou residência do citando, a fim de realizar a diligência.
§ 1º Se o citando não estiver presente, o oficial de justiça procurará informar-se das razões da ausência, dando por feita a citação, ainda que o citando se tenha ocultado em outra comarca.
§ 2º Da certidão da ocorrência, o oficial de justiça deixará contrafé com pessoa da família ou com qualquer vizinho, conforme o caso, declarando-lhe o nome.
Art. 229. Feita a citação com hora certa, o escrivão enviará ao réu carta, telegrama ou radiograma, dando-lhe de tudo ciência.
Ou seja, é correto afirmar que, hoje, o Processo Penal brasileiro, além das tradicionais citação pessoal por mandado (CPP, art. 351), citação por precatória (CPP, art. 353) e citação por edital (CPP, art. 366). admite também a citação por hora certa (CPP, art. 362). Nesse sentido, o erro do juiz federal foi justamente prescindir da etapa da citação por hora certa quando seria possível fazê-lo. Evitar-se-ia, dessa forma, a expedição de mandado de prisão - ato de extrema gravidade, só admissível excepcionalmente.
No caso concreto, se havia fundada suspeita nos autos de que a ré estava a ocultar-se para não ser citada, o magistrado deveria ter determinado a citação por hora certa, etapa procedimental ainda suscetível de ser cumprida, e não o imediato encarceramento. Com isso, restaria satisfeito o objetivo garantista que coloca a prisão como medida de ultima ratio.
Foi exatamente esse o entendimento esposado pelo TRF1 no julgamento do HC 75525-37.2011.4.01.0000/MG. Eis o acórdão (grifo meu):
PROCESSUAL PENAL - HABEAS CORPUS - PRISÃO PREVENTIVA - EXCEPCIONALIDADE - ART. 5°, LVII E LXVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - RÉ NÃO ENCONTRADA - SUSPEITA DE OCULTAÇÃO PARA NÃO SER CITADA - CITAÇÃO POR HORA CERTA - NOVA REDAÇÃO DO ART. 362 DO CPP ( LEI 11.719/2008) - ORDEM CONCEDIDA.
I - Por força dos mandamentos insertos no art. 5º, LVII e LXVI, da Constituição Federal, a prisão preventiva é medida que deve ser decretada e mantida, apenas, quando for absolutamente imprescindível, dada sua natureza excepcional.
II - Hipótese em que foram expedidas 5 (cinco) cartas precatórias, para citação da paciente, sem lograr encontrá-la, sendo decretada a sua prisão preventiva, para a aplicação da lei penal.
III - Havendo suspeita de que a acusada estaria fugindo à ação da justiça, caso não é de decretação, desde logo, de sua prisão preventiva, para garantia da aplicação da lei penal, mas de se proceder à citação com hora certa, com as cautelas legais, na forma da lei de regência, sem prejuízo de ulterior aplicação da parte final do art. 366 do Código de Processo Penal.
IV - Ordem concedida.
(TRF1, HC 75525-37.2011.4.01.0000/MG, Rel. Des. Assusete Magalhães, j. 23/04/2012, p. DJ 27/04/2012).
Note-se que a citação por hora certa no Processo Penal é perfeitamente válida em casos como o do HC em comento, quando há fundada suspeita de que o acusado oculta-se para não ser citado. O STJ já teve oportunidade de decidir dessa maneira (grifo meu):
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CITAÇÃO POR HORA CERTA. VALIDADE. ESGOTAMENTO DOS MEIOS. ALEGADA AUSÊNCIA DOS REQUISITOS LEGAIS. VIA IMPRÓPRIA. INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZO. CONSTRANGIMENTO LEGAL NÃO EVIDENCIADO.
1. Tem-se por válida a citação por hora certa realizada nos autos, diante da informação de que foram empreendidas as diligências necessárias à localização do denunciado, bem assim de que havia indícios da sua ocultação para não ser citado. Precedentes.
2. A análise da arguição de que não teriam sido esgotados todos os meios de localização do Paciente ou de que não foi evidenciada a intenção de ocultação, constitui matéria que depende de dilação probatória, imprópria na via estreita do writ. Precedentes.
3. Ademais, sequer houve prejuízo para o réu, que teve o prazo reaberto, apresentando resposta à acusação, o que faz incidir a disposição constante da Súmula n.º 523 do STF "[n]o processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu". Precedentes.
4. Recurso desprovido.
(STJ, T5 - Quinta Turma, RHC 31421/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 08/05/2012, p. DJe 21/05/2012).
É claro que a citação por hora certa não obsta a que o juiz venha a decretar posteriormente a custódia cautelar, contanto que haja fundamentação concreta apta a caracterizar algum dos pressupostos do art. 312 do CPP. Mais uma vez a jurisprudência do STJ é esclarecedora:
HABEAS CORPUS. TENTATIVA DE ESTELIONATO EM DESFAVOR DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. PRISÃO PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E APLICAÇÃO DA LEI PENAL. DECISÃO FUNDAMENTADA. ORDEM DENEGADA.
1. A decisão que decretou a prisão preventiva está devidamente fundamentada na necessidade de garantia da ordem pública e para assegurar a aplicação da lei penal, levando em conta que o paciente responde a outros inúmeros processos (mais de uma dezena no Juízo de origem, além de outras ações em curso na 7ª e 9ª Varas Federais Criminais de São Paulo), com inquéritos instaurados desde 1999 até 2009, pela prática de falsidade ideológica e estelionato majorado, entre outros, o que demonstra fazer da conduta delituosa o seu meio de vida, sendo apontado como um 'profissional de atividade criminosa de falsificação de documentos para caracterizar vínculos trabalhistas inexistentes', tudo levando a crer que voltará a delinquir se em liberdade, não havendo que se cogitar de constrangimento ilegal na hipótese.
2. Ademais, o paciente vem, deliberadamente, se furtando à atuação da Justiça Criminal, inviabilizando a apuração das diversas imputações contra ele realizadas, não tendo sido localizado até o presente momento, apesar de procurado em vários endereços diferentes, inclusive naquele fornecido pelo próprio paciente, razão pela qual foi determinada, recentemente, pelo Juiz de primeiro grau, sua citação por hora certa, nos termos do art. 362 do CPP.
3. Outrossim, o impetrante não trouxe qualquer comprovação acerca da existência de residência fixa e tampouco ocupação lícita por parte do paciente, não se verificando circunstâncias pessoais a seu favor.
4. Habeas corpus denegado.
(STJ, T6 - Sexta Turma, HC 174.136/SP, Rel. Min. Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJCE, j. 21/09/2010, p. DJe 25/10/2010).
Conclui-se, conseguintemente, que, em havendo fundada suspeita de que o réu oculta-se para não ser citado, não se deve, desde logo, determinar a prisão preventiva, mas sim proceder à citação por hora certa, nos termos do que autoriza o art. 362 do CPP, sem prejuízo de etapas posteriores, tais como a citação editalícia ou mesmo a decretação da prisão preventiva, com base no art. 312 do Códex.
E penso que esse entendimento dos tribunais vai plenamente ao encontro do ideário garantista, que preconiza a máxima tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos em oposição ao arbítrio punitivista do Estado.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus nº 31.421/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 05/05/2012, p. DJe 21/05/2012. Disponível em:www.stj.jus.br. Acesso em: 02 de set. 2013.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 174.136/SP, Rel. Min. Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJCE), j. 21/09/2010, p. DJe 25/10/2010. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 02 de set. 2013.
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1º Região. Habeas Corpus nº 75525-37.2011.4.01.0000/MG, Rel. Des. Assusete Magalhães, j. 23/04/2012, p. DJ 27/04/2012. Disponível em: http://jurisprudencia.trf1.jus.br/busca/. Acesso em: 02 de set. 2013.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 02 de set. 2013.
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 02 de set. 2013.
BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 02 de set. 2013.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio Norberto Bobbio. Tradução Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. 3º ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 925 p.