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Do controle de constitucionalidade de leis orçamentárias e sua evolução jurisprudencial

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3. DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS ORÇAMENTÁRIAS

3.1. Judicialização das Relações Políticas e Sociais

Como já se sabe, a razão de existir do orçamento nasceu da necessidade de combater arbitrariedades no dispêndio dos recursos públicos. Assim, o povo, por meio dos seus representantes eleitos, autoriza o plano de ação do Estado, consubstanciado na lei orçamentária. Atualmente, o entendimento predominante é o de que permanece a essência que deu origem à peça orçamentária, isto é, continua o orçamento a ter caráter autorizativo. Logo, o fato de determinada verba estar nele prevista, em princípio, não obriga o governante a realizá-la, ao contrário, apenas o autoriza. Aliás, esse sempre foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal, mesmo em época anterior à Constituição de 1988, posicionando-se no sentido de conferir ao orçamento caráter autorizativo, de modo que a inclusão de verba no orçamento não geraria, de pronto, direito ao seu recebimento, pois a previsão de despesa, em lei orçamentária, não confere direito subjetivo a ser assegurado por via judicial, como decorrência do orçamento ser, em regra, instrumento autorizativo. Veja-se, nesse sentido, o antigo julgado da Corte Suprema:

”EMENTA: ORCAMENTO. VERBAS DESTINADAS A INSTITUIÇÃO ASSISTENCIAL. - A PREVISÃO DE DESPESA, EM LEI ORCAMENTARIA, NÃO GERA DIREITO SUBJETIVO A SER ASSEGURADO POR VIA JUDICIAL. - AÇÃO RESCISÓRIA IMPROCEDENTE.” (AR 929 / PR, Relator(a):  Min. RODRIGUES ALCKMIN,  Julgamento:  25/02/1976)

Logo, daí extraímos que a existência de eventual verba para certo setor social pelo Estado, trata-se, em princípio, tão somente de intenção do governo, não obrigando-o à sua realização. É, portanto, plano de ação e planejamento estatal, cabendo ao administrador público, diante de situações concretas, sobretudo quando se deparar com escassez de recursos, dar prioridade a determinadas despesas, ajustando os gastos diante das necessidades ao longo do exercício. Obviamente, existem verbas orçamentárias que, em razão de comando normativo constitucional, estão vinculadas a finalidades específicas, não havendo margem de discricionariedade do Poder Público nesse aspecto. Contudo, mesmo que haja impositividade em certos casos, o orçamento continua a ter natureza autorizativa. Ou seja, não se pode dizer, em virtude de pequena parcela de vinculação orçamentária, que o orçamento passaria a não ter caráter autorizativo. Eventual exceção não tem o condão de alterar a sua natureza.

Contudo, nos dias atuais, por tal razão, apesar do modelo constitucional conferir caráter autorizativo à lei orçamentária, entendimento inclusive pacificado na jurisprudência, parcela relevante da doutrina e da opinião pública criticam esse posicionamento, indagando se seria o orçamento público mera peça de ficção, sem a possibilidade de exigência do seu efetivo cumprimento pela sociedade. Quer dizer, na medida em que o orçamento vem a ter caráter autorizativo (e de fato esta é sua essência), não vincularia o Estado à sua estrita observância e, por isso, não haveria que se cogitar eventual direito subjetivo a ser amparado, ficando os governantes, na prática, com a alternativa de realizar ou não as verbas previstas, de forma completamente discricionária. Nesse sentido, crescem as vozes daqueles que defendem a necessidade de se implantar um modelo de orçamento que vincule o Estado à sua fiel observância.

O caráter autorizativo orçamentário pode abrir margem ao gestor para a realização de práticas discricionárias que vão de encontro aos reais objetivos orçamentários. Com isso, as expectativas criadas a partir da proposta orçamentária não demoram muito para serem frustadas logo em seguida, convertendo-se o orçamento em mera peça retórica. Assim, embora o orçamento seja peça chave para a nação, no plano formal, as disposições orçamentárias podem se converter em mera promessa, expectativas que muitas vezes não saem do papel. Nesse sentido, o debate acerca do modelo orçamentário impositivo passa a ganhar força. Cada vez mais se nota uma crescente tendência à limitação da margem de discricionariedade administrativa no dispêndio dos recursos públicos, o que pode ser notado, inclusive, pelo aumento gradativo da criação de vinculações orçamentárias, hoje expostas em vários dispositivos do próprio texto constitucional.

A decisão de gastar é, sem dúvida, eminentemente política, porém, deve passar por todo um processo de criação das leis orçamentárias, desde a participação popular na sua elaboração até as discussões de emendas no legislativo. Tudo isso, obviamente, perde o sentido quando a discricionariedade administrativa pode ser utilizada como manobra para justificar a inexecução daquilo que foi exaustivamente planejado e discutido. De fato, parece mesmo ser contraditório ter todo o trabalho de elaboração do orçamento, recheado de estimativas técnicas e discussões públicas, para ao seu final tratar-se de mero indicativo. Nesse sentido, é inegável a crecente pressão social para que haja uma modificação na interpretação da peça orçamentária, dotando-a de maior coercitividade no que tange aos limites de efetivação da aplicação dos recursos nela aprovados, evitando que o Executivo renegue a vontade popular a partir da manipulação do orçamento. A doutrina, a propósito, também começa a se manifestar, inclinando-se, embora lentamente, quanto à necessidade de vinculação do Executivo à peça orçamentária. Voz forte, nesse sentido, é entoada na doutrina de Regis Fernandes de Oliveira:

"Já não se pode admitir um orçamento sem compromissos, apenas para cumprir determinação legal. Já não se aceita o governante irresponsável. Já longe vai o tempo em que se cuidava de mera peça financeira, descompromissada com os interesses públicos. Já é passado o momento político em que as previsões frustravam a esperança da sociedade. A introdução do orçamento participativo foi o primeiro passo. Para que serve? Está o governante obrigado a acolher as propostas que lhe forem apresentadas? Para que ouvir a sociedade? Trata-se de mero jogo lúdico? É mera diversão, tal como os jogos com os cristãos da Antiga Roma, que eram devorados pelos leões para gáudio de uma platéia destituída de sentido ético? Serviria de mera burilação de ocupante desocupado do governo? Mera elucubração mental para brincadeira com os interesses públicos? A evidência das respostas às questões formuladas leva-nos à conclusão de que o orçamento não pode ser mera peça financeira, nem apenas simples plano de governo, mas representa o compromisso político de cumprimento de promessas sérias levadas ao povo. A previsão desperta esperança, expectativa de satisfação dos compromissos, certeza de que os desejos serão atendidos". (OLIVEIRA, 2011)

Na verdade, o desejo de um orçamento cada vez mais vinculado, dotado de impositividade ao gestor, reflete, no seu íntimo, o anseio da população pela efetivação das políticas públicas, transferindo-se para a lei a confiança que não se tem nos governantes, revelando crescente tendência de descrença das instituições e, especialmente, do Poder Executivo. A rigor, a proposta faz repensar, inclusive, a relação entre os Poderes do Estado. Não é por outro motivo que, hoje, tem-se admitido no âmbito do judiciário a chamada “judicialização de relações políticas e sociais”. Com todas as transformações ocorridas nas últimas décadas, passando a Constituição a ser central e suprema no ordenamento jurídico, a atividade do judiciário acabou ficando altamente fortalecida. Verificamos uma verdadeira jurisdição constitucional, instrumentalizada no exercício da guarda da Lei Fundamental pelo Judiciário, daí resultando o que hoje se tem como ativismo judiciário da Corte Constitucional. Deposita-se menor confiança nas instâncias executiva e legislativa de poder, conferindo-se maior confiança na instância judiciária, sobretudo no tribunal constitucional.

Em uma situação ideal, quem deveria implementar os direitos sociais seriam o Legislativo e o Executivo, porque foram eleitos, gozam de representatividade popular. O dever, portanto, é de ver em prática as metas contidas no orçamento. O problema é que a democracia não pode ser vista tão somente na sua dimensão formal, mas também em seu aspecto substancial, que abrange, além da possibilidade formal de participação na escolha dos representantes, também a fruição de direitos, inclusive pelas minorias (democracia material). Daí decorre a preocupação com a efetividade dos direitos fundamentais. É nesse ponto onde entra o ativismo do judiciário e a jurisdição constitucional. A fruição de direitos pela sociedade, sobretudo no que se refere ao direito das minorias, será efetivado principalmente pelo Judiciário, exercendo o papel contra-majoritário, Quer dizer, a inércia ou incompetência do legislador e do administrador, muitas vezes, obrigam uma atuação do judiciário, caso contrário é ele próprio quem vai estar descumprindo a Constituição.

O Supremo Tribunal Federal, nesse sentido, já fixou entendimento pela possibilidade de se recorrer diretamente ao judiciário para exigir uma prestação fundada num direito social. Assim, direitos básicos da sociedade previstas no orçamento não ficam ao crivo da dsicricionariedade do administrador. Nesse ponto, em que pese tratar-se de natureza autorizativa, caminha-se no sentido de maior vinculação aos clamores sociais e programas de governo essencias que garantam, ao menos, a dignidade da pessoa humana. Conforme já decidido pelo STF, o Estado não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos sociais sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer de modo inaceitável a integridade da própria ordem constitucional.

Assim, as instâncias ordinárias são os atores para o estabelecimento das políticas públicas prioritárias, mas quando estes se omitem ou retardam o cumprimento de um direito, aí se torna necessária a intervenção judicial. É função institucional do Poder Judiciário determinar a implantação de políticas públicas quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático. Logo, o déficit democrático, a falta de credibilidade nas instâncias democráticas, faz com que o judiciário tenha que intervir. Daí se falar, hoje, na chamada “judicialização das relações políticas e sociais”.

É função institucional do Poder Judiciário determinar a implantação de políticas públicas quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático. Nesse sentido, o atual entendimento da Corte Suprema:

“Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político- -jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. DESCUMPRIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DEFINIDAS EM SEDE CONSTITUCIONAL: HIPÓTESE LEGITIMADORA DE INTERVENÇÃO JURISDICIONAL. - O Poder Público - quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de implementar políticas públicas definidas no próprio texto constitucional - transgride, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional. Precedentes: ADI 1.484/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.. - A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos. - A intervenção do Poder Judiciário, em tema de implementação de políticas governamentais previstas e determinadas no texto constitucional, notadamente na área da educação infantil (RTJ 199/1219-1220), objetiva neutralizar os efeitos lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto a direitos básicos que a própria Constituição da República assegura à generalidade das pessoas. Precedentes.” (ARE 639337 AgR / SP, Segunda Turma, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Julgamento: 23/08/2011).

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Ora, se a gênese do orçamento guarda relação com a autorização dada pelo povo aos seus governantes para a utilização dos recursos públicos, não é errado concluir que, ao fim e ao cabo, quando não se efetiva a aplicação que se garanta o cumprimento do mínimo necessário ao atendimento dos clamores sociais, sejam aqueles já consubstanciados nas normas cogentes constitucionais, sejam os demais incluídos no orçamento anual, estar-se-á agindo à revelia daquilo que foi autorizado e, portanto, em arrepio ao próprio regime democrático, que exige a subsunção dos governantes aos objetivos do Estado. De fato, o caráter autorizativo do orçamento não pode originar uma benesse ao Executivo de forma a ser possível descumprí-lo a tal ponto de não assegurar direitos básicos sociais, caso contrário, voltaríamos para a fase anterior à existência do orçamento, com a aplicação arbitrária dos recursos públicos. Ao contrário, a discricionariedade administrativa deve ser exercida visando unicamente o cumprimento dos objetivos encampados na Lei Maior.

De toda sorte, ante a complexidade da peça orçamentária, há desdobramentos que impedem resolução breve. Apesar de ser imprescindível o necessário comprometimento do Estado com a efetividade das medidas contempladas na lei orçamentária para que esta não vire peça fictícia, não se pode negar que o orçamento insere-se em um contexto dinâmico de planejamento e ação, não sendo documento estático, mas que flutua conforme seja alterada a conjuntura econômica global, sendo necessário que a atuação estatal possua, de fato, certa margem de liberdade. Logo, não se vislumbra ser possível, objetivamente, sem analisar as condições factuais de cada caso, vincular o administrador e impor-lhe o orçamento para cumprimento cego de suas disposições. Esse outro extremo seria, de igual forma, devastador para os fins sociais. Por isso é que, embora haja a necessidade do Estado cumprir com, pelo menos, o mínimo necessário ao atendimento das necessidades públicas, a essência orçamentária não deixa de ter natureza autorizativa, só que, agora, com maior controle exercido pelas demais instâncias de poder e pela própria sociedade, não apenas com a possibilidade de judicialização de relações políticas e sociais, mas também com a recente admissão, pelo Supremo Tribunal Federal, de controle de constitucionalidade do orçamento, o que passaremos a ver neste momento.

3.2. Evolução Jurisprudencial no Controle de Constitucionalidade de Leis Orçamentárias

Reconhecendo-se a natureza de lei formal ao orçamento, surge, em decorrência, o impasse acerca da possibilidade ou não do controle de constitucionalidade da lei orçamentária, uma vez que, por ser o orçamento norma de efeitos concretos, seria, a princípio, incapaz de ser analisada via ação direta de insconstitucionalidade. Na jurisprudência antiga do Supremo Tribunal Federal, não cabia ADI em relação à chamada lei formal, de efeitos concretos. De fato, a jurisprudência do Supremo era uníssona em dizer que a norma de efeitos concretos não se prestava a controle abstrato de constitucionalidade, seja porque é lei apenas em sentido formal, mas materialmente revestida de caráter administrativo, destituída de qualquer carga de abstração e de enunciado normativo, seja, ainda, porque por ser lei de efeitos concretos, o seu papel se exaure após a ocorrência da determinada situação que regula, daí porque não teria a abstração necessária ao controle de constitucionalidade. Nesse sentido, vejamos a antiga jurisprudência da Suprema Corte:

“EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COM EFEITO CONCRETO. LEI DE DIRETRIZES ORÇAMENTÁRIAS: Lei 10.266, de 2001. I. - Leis com efeitos concretos, assim atos administrativos em sentido material: não se admite o seu controle em abstrato, ou no controle concentrado de constitucionalidade. II. - Lei de diretrizes orçamentárias, que tem objeto determinado e destinatários certos, assim sem generalidade abstrata, é lei de efeitos concretos, que não está sujeita à fiscalização jurisdicional no controle concentrado. III. - Precedentes do Supremo Tribunal Federal. IV. - Ação direta de inconstitucionalidade não conhecida.” (ADI 2484 MC/DF, Rel(a): Min. CARLOS VELLOSO, Julg: 19/12/2001)

Assim, a Corte Suprema tinha firmado entendimento de que só seria possível admitir ação direta de inconstitucionalidade contra ato normativo dotado de abstração, generalidade e impessoalidade, daí porque as leis orçamentárias, por serem leis de efeitos concretos, não estariam sujeitas à fiscalização jurisdicional no controle concentrado. Porém, em 2003, o STF na ADI 2925, começou a sinalizar uma mudança nesse entendimento, quando tratou da análise da lei orçamentária especificamente no que tange à desvinculação de parte das receitas arrecadadas com a CIDE Combustíveis. Sabemos que essa contribuição está prevista no art. 177, §4º, da CF/88, dispondo o exato destino dessas receitas. Mas a lei orçamentária impugnada, em descumprimento, estabeleceu a possibilidade de destinação dos recursos para áreas outras não diretametne relacionadas com as finalidades daquele tributo. Na ocasião, o STF reconheceu que, naquele caso específico, a norma teria densidade normativa abstrata suficente para ser objeto de controle de constitucionalidade e, no mérito, a ação foi julgada procedente para se reconhecer a inconstitucionalidade da desvinculação dos recursos da CIDE prevista na lei orçamentária. Vejamos, a propósito, os termos da superação do entendimento anterior pela Suprema Corte:

“EMENTA: PROCESSO OBJETIVO - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI ORÇAMENTÁRIA. Mostra-se adequado o controle concentrado de constitucionalidade quando a lei orçamentária revela contornos abstratos e autônomos, em abandono ao campo da eficácia concreta. LEI ORÇAMENTÁRIA - CONTRIBUIÇÃO DE INTERVENÇÃO NO DOMÍNIO ECONÔMICO - IMPORTAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO DE PETRÓLEO E DERIVADOS, GÁS NATURAL E DERIVADOS E ÁLCOOL COMBUSTÍVEL - CIDE - DESTINAÇÃO - ARTIGO 177, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. É inconstitucional interpretação da Lei Orçamentária nº 10.640, de 14 de janeiro de 2003, que implique abertura de crédito suplementar em rubrica estranha à destinação do que arrecadado a partir do disposto no § 4º do artigo 177 da Constituição Federal, ante a natureza exaustiva das alíneas "a", "b" e "c" do inciso II do citado parágrafo.” (ADI 2925 / DF, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Julgamento: 19/12/2003)

Nesse sentido, tal julgado representou uma relativização na jurisprudência anterior do Supremo. Entendimento contrário levaria por colocar a lei orçamentária acima da Carta da República, daí porque começou a se admitir, em tese, a possibilidade das leis orçamentárias serem objeto de controle de constitucionalidade, sempre que contivessem normas dotadas de abstração e generalidade (densidade normativa), tornando-se nesse ponto lei também sob o aspecto material, caso em que caberia o exame de constitucionalidade, embora na sua essência se reconheça tratar de lei formal de efeitos concretos. E ainda, mais recentemente, o tema foi novamente levado à Corte Suprema, dessa vez em decorrência de medida provisória que promoveu a abertura de créditos extraordinários sem a observância dos requsitos do art. 167, §3º, da CF/88, o qual legitima a hipótese apenas quando presente situação de calamidade pública, guerra ou comoção interna, tendo havido posteriormente a conversão da medida provisória em lei, à revelia dos mandamentos constitucionais. O STF julgou o caso na ADI 4048 e na ADI 4049, avançando mais ainda no seu entendimento, posicionando-se no sentido de que a análise material da norma, para fins de identificação de sua abstração, não seria mais necessária, já que se está diante de uma lei em sentido formal.

Vejamos a superação do precedente judicial e atual entendimento da Corte Suprema, inicialmente percebendo o julgamento da ADI 4048:

EMENTA: MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA N° 405, DE 18.12.2007. ABERTURA DE CRÉDITO EXTRAORDINÁRIO. LIMITES CONSTITUCIONAIS À ATIVIDADE LEGISLATIVA EXCEPCIONAL DO PODER EXECUTIVO NA EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS. I. MEDIDA PROVISÓRIA E SUA CONVERSÃO EM LEI. Conversão da medida provisória na Lei n° 11.658/2008, sem alteração substancial. Aditamento ao pedido inicial. Inexistência de obstáculo processual ao prosseguimento do julgamento. A lei de conversão não convalida os vícios existentes na medida provisória. Precedentes. II. CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE NORMAS ORÇAMENTÁRIAS. REVISÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O Supremo Tribunal Federal deve exercer sua função precípua de fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos quando houver um tema ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato, independente do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto. Possibilidade de submissão das normas orçamentárias ao controle abstrato de constitucionalidade. III. LIMITES CONSTITUCIONAIS À ATIVIDADE LEGISLATIVA EXCEPCIONAL DO PODER EXECUTIVO NA EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS PARA ABERTURA DE CRÉDITO EXTRAORDINÁRIO. Interpretação do art. 167, § 3º c/c o art. 62, § 1º, inciso I, alínea "d", da Constituição. Além dos requisitos de relevância e urgência (art. 62), a Constituição exige que a abertura do crédito extraordinário seja feita apenas para atender a despesas imprevisíveis e urgentes. Ao contrário do que ocorre em relação aos requisitos de relevância e urgência (art. 62), que se submetem a uma ampla margem de discricionariedade por parte do Presidente da República, os requisitos de imprevisibilidade e urgência (art. 167, § 3º) recebem densificação normativa da Constituição. Os conteúdos semânticos das expressões "guerra", "comoção interna" e "calamidade pública" constituem vetores para a interpretação/aplicação do art. 167, § 3º c/c o art. 62, § 1º, inciso I, alínea "d", da Constituição. "Guerra", "comoção interna" e "calamidade pública" são conceitos que representam realidades ou situações fáticas de extrema gravidade e de conseqüências imprevisíveis para a ordem pública e a paz social, e que dessa forma requerem, com a devida urgência, a adoção de medidas singulares e extraordinárias. A leitura atenta e a análise interpretativa do texto e da exposição de motivos da MP n° 405/2007 demonstram que os créditos abertos são destinados a prover despesas correntes, que não estão qualificadas pela imprevisibilidade ou pela urgência. A edição da MP n° 405/2007 configurou um patente desvirtuamento dos parâmetros constitucionais que permitem a edição de medidas provisórias para a abertura de créditos extraordinários. IV. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. Suspensão da vigência da Lei n° 11.658/2008, desde a sua publicação, ocorrida em 22 de abril de 2008.” (ADI 4048 MC / DF, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Julgamento:  14/05/2008)

No mesmo sentido, corroborando o exposto, assim também se manifestou o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 4049:

“EMENTA: CONSTITUCIONAL. MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 402, DE 23 DE NOVEMBRO DE 2007, CONVERTIDA NA LEI Nº 11.656, DE 16 DE ABRIL DE 2008. ABERTURA DE CRÉDITO EXTRAORDINÁRIO. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS CONSTITUCIONAIS DA IMPREVISIBILIDADE E DA URGÊNCIA (§ 3º DO ART. 167 DA CF), CONCOMITANTEMENTE. 1. A lei não precisa de densidade normativa para se expor ao controle abstrato de constitucionalidade, devido a que se trata de ato de aplicação primária da Constituição. Para esse tipo de controle, exige-se densidade normativa apenas para o ato de natureza infralegal. Precedente: ADI 4.048-MC. 2. Medida provisória que abre crédito extraordinário não se exaure no ato de sua primeira aplicação. Ela somente se exaure ao final do exercício financeiro para o qual foi aberto o crédito extraordinário nela referido. Hipótese em que a abertura do crédito se deu nos últimos quatro meses do exercício, projetando-se, nos limites de seus saldos, para o orçamento do exercício financeiro subseqüente (§ 2º do art. 167 da CF). 3. A conversão em lei da medida provisória que abre crédito extraordinário não prejudica a análise deste Supremo Tribunal Federal quanto aos vícios apontados na ação direta de inconstitucionalidade. 4. A abertura de crédito extraordinário para pagamento de despesas de simples custeio e investimentos triviais, que evidentemente não se caracterizam pela imprevisibilidade e urgência, viola o § 3º do art. 167 da Constituição Federal. Violação que alcança o inciso V do mesmo artigo, na medida em que o ato normativo adversado vem a categorizar como de natureza extraordinária crédito que, em verdade, não passa de especial, ou suplementar. 5. Medida cautelar deferida.” (ADI 4049 MC / DF, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Julgamento: 05/11/2008)

Portanto, agora, para a Corte Maior, independente do conteúdo da norma atacada, seja ela dotada de carga de abstração e de enunciado normativo, seja norma de efeitos concretos, o simples fato de se tratar de uma lei em sentido formal, aprovada pelo Legislativo e sancionada pelo Executivo, já justifica a possibilidade de controle abstrato de sua constitucionalidade. Logo, se for lei, esta será passível, em qualquer caso, de controle concentrado de constitucionalidade, independente da análise da densidade normativa, o que significa que, do âmbito material da lei, sempre poderá haver controle em sede abstrata, bastando que uma lei, em seu sentido formal, seja o objeto da controvérsia. Indubitavelmente, no que se refere à lei orçamentária, este é um grande avanço no sentido de vincular os atos de execução do orçamento à estrita obediência aos fins a que se destina. Poderações acerca da densidade normativa da norma atacada somente fazem sentido caso se trate de ato infralegal, mas estando-se diante de lei, caberá sempre controle de constitucionalidade.


4. CONCLUSÃO

Por todo o exposto, observamos que a moderna visão do orçamento exige sua inclusão como peça de planejamento, passando a assumir a função de elemento de programação política e econômica do Estado. Embora tenhamos uma legítima norma com natureza de lei formal de efeitos concretos, não se cinge ao caráter legal por meio do qual se instrumentaliza. Nesse sentido, importante questão concernente ao caráter autorizativo do orçamento para o dispêndio dos gastos públicos surge como decorrência direta dessa constatação, revelando-se ser tendência crescente o anseio social para fins de vinculação do Estado ao instrumento orçamentário e, sobretudo, a aplicação efetiva das políticas públicas.

Daí porque, nos dias atuais, percebemos maior controle exercido pelas demais instâncias de poder e pela própria sociedade, seja com a possibilidade de judicialização de relações políticas e sociais, seja com a recente admissão, pelo Supremo Tribunal Federal, de controle de constitucionalidade do orçamento. De fato, hoje, a evolução jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal abriu essa possibilidade, constituindo-se em grande avanço no sentido de vincular os atos de execução do orçamento à obediência aos mandamentos constitucionais para que, ao final, tenhamos efetivamente a realização do bem comum por meio da satisfação das necessidades públicas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, Luis Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 6ª ed. Saraiva, 2012.

FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Curso de Direito Constitucional. 37ª ed. Saraiva, 2011.

HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 19 ª ed. São Paulo: Atlas, 2010.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15ª ed. Saraiva, 2011.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. Saraiva, 2012.

NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 6ª ed. Método, 2012.

OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

PISCITELLI, Tathiane. Direito Financeiro Esquematizado. 1ª ed. São Paulo: Método, 2011.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34ª ed. Malheiros, 2011.

TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 18ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011

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Sobre o autor
Francisco Gilney Bezerra de Carvalho Ferreira

Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Direito Público pela Faculdade Projeção e MBA em Gestão Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e Engenharia Civil pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Procurador Federal em exercício pela Advocacia-Geral da União (AGU) e Professor do Curso de Graduação em Direito da Faculdade Luciano Feijão (FLF-Sobral/CE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Francisco Gilney Bezerra Carvalho. Do controle de constitucionalidade de leis orçamentárias e sua evolução jurisprudencial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3888, 22 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26721. Acesso em: 21 nov. 2024.

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