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Impactos da Lei 12.815/13 no sistema portuário brasileiro:

avulsos portuários podem ficar a não ver navios

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26/03/2014 às 09:28
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VI – TRABALHADOR PORTUÁRIO AVULSO E COM VÍNCULO EMPREGATÍCIO

No sistema do porto organizado (aquele que se encontra sob a jurisdição de autoridade portuária), só pode haver contratação, para as funções de capatazia, estiva, conferência de carga, conserto de carga, bloco e vigilância de embarcações, de duas formas: ou se contrata trabalhadores com vínculo empregatício por prazo indeterminado e ou avulsos via OGMO. E na primeira alternativa a contratação tem que ocorrer exclusivamente dentre os trabalhadores avulsos registrados. É o que se infere do art. 40 e § 2º, da Lei 12.815:

“Art. 40.  O trabalho portuário de capatazia, estiva, conferência de carga, conserto de carga, bloco e vigilância de embarcações, nos portos organizados, será realizado por trabalhadores portuários com vínculo empregatício por prazo indeterminado e por trabalhadores portuários avulsos. 

§ 2o  A contratação de trabalhadores portuários de capatazia, bloco, estiva, conferência de carga, conserto de carga e vigilância de embarcações com vínculo empregatício por prazo indeterminado será feita exclusivamente dentre trabalhadores portuários avulsos registrados.”

Antes de prosseguirmos no debate, cabe uma explanação acerca da diferença entre os portuários avulsos cadastrados e registrados. Primeiramente, quem mantém e organiza o cadastro e o registro dos trabalhadores é o OGMO. A inscrição no cadastro precede a no registro, dependendo exclusivamente de prévia habilitação profissional do trabalhador interessado, mediante treinamento realizado em entidade indicada pelo órgão de gestão de mão de obra. Para se inscrever no registro faz-se necessária prévia seleção e inscrição no cadastro, havendo disponibilidade de vagas e obedecida a ordem cronológica de inscrição no cadastro. 

E o que é trabalhador avulso? Tal conceituação encontra-se insculpida no Decreto nº 3.043/1999, art. 9º, inciso VI, o qual sinaliza como trabalhador avulso: “aquele que, sindicalizado ou não, presta serviço de natureza urbana ou rural, a diversas empresas, sem vínculo empregatício, com a intermediação obrigatória do órgão gestor de mão-de-obra, nos termos da Lei 8.630. de 25 de fevereiro de 1993, ou de sindicato da categoria...”

A Constituição Federal de 1998 conferiu tratamento isonômico dos avulsos com os trabalhadores com vínculo empregatício, por força do inciso XXXIV, do art. 7º: “igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso.”.

No que diz respeito à outra modalidade de prestação de serviços contemplada no texto legal, qual seja, a contratação com vínculo empregatício por prazo indeterminado, sob regime celetista, coloque-se que não há a prestação de trabalho a vários operadores portuários, sucessivamente, como no trabalho avulso. Um operador portuário admite em seus quadros funcionais um ou mais empregados, e passa a ser responsável pela supervisão do trabalho, treinamento, pagamento de salários, enfim, exerce todos os deveres e direitos de um empregador comum.

Por derradeiro, registre-se ainda a impossibilidade plasmada no texto legal (art. 40, § 3º, da Lei 12.815) do operador portuário, nas atividades típicas portuárias, contratar mão de obra sob o regime de trabalho temporário de que trata a Lei no 6.019.


VII – IMPACTOS DA LEI 12.815 NA DEMANDA PELO TRABALHO PORTUÁRIO AVULSO 

À primeira vista, pode-se pensar que a alteração feita pela MP 595 e posterior Lei 12.815 foi sutil. Ledo engano! A alteração foi na própria veia do sistema portuário. Mas, para entender essa mudança nevrálgica é preciso compreender alguns pontos prévios sobre as modalidades de portos existentes e o próprio sistema.

Na égide da Lei 8.630, havia basicamente dois tipos de portos: portos organizados e terminais de uso privativo. Paralelamente a estes, surgiram os portos clandestinos, operando ilicitamente (diante da ausência de autorização da ANTAQ) e em pequena escala.

Os portos organizados, principais portos do país, eram e são ainda sob o pálio da novel Lei aqueles que se encontram sob a “jurisdição” de uma autoridade portuária e sua área é definida por um ato do Presidente da República.

Já os terminais de uso privativo eram instalações portuárias exploradas mediante autorização e localizadas fora da área do porto organizado. Se subdividiam em terminais de uso privativo exclusivo e misto. O primeiro era aquele que movimentava apenas carga própria, atendendo a uma necessidade inerente ao negócio de uma grande empresa, que precisa de um porto para si para movimentar o grande volume de exportações ou importações de seus produtos (por exemplo, a Petrobrás).

Em contrapartida, o terminal de uso privativo misto poderia movimentar carga própria e de terceiro, desde que o volume da carga própria fosse suficiente para justificar a existência do porto, de acordo com norma infralegal da ANTAQ. Desse modo, a carga de terceiros era movimentada de forma suplementar, para aproveitar alguma capacidade ociosa, não sendo, portanto, um concorrente do porto organizado.

Ocorre que diante da impossibilidade dos armadores de se utilizarem de portos que não os portos organizados, estes conquistaram um monopólio, o qual não apenas era tolerado pelo ordenamento jurídico, como incentivado nos termos da Convenção 137 da OIT.

E o sistema do porto organizado tem um custo de mão de obra muito maior do que o dos portos privados, sendo tal fato decorrência tanto de motivos virtuosos e como de motivos viciosos.

Como motivos virtuosos, temos a capacidade de organização e mobilização da categoria, adquirida ao longo da história, fazendo com que o trabalhador registrado no OGMO alcançasse uma remuneração e condições de trabalho consideráveis em a maioria dos trabalhadores, a ponto de, não raras vezes, preferir manter-se como avulso que se ativar com a maior estabilidade do vínculo empregatício. Essas vitórias são conquistadas em negociações coletivas.

Por outro prisma, como motivos viciosos temos o fato de que os sindicatos, para manter seus nacos de poder, boicotaram a multifuncionalidade, causando inchaço dos ternos e consequente aumento dos custos para os operadores portuários e, consequentemente, para os armadores. Assim, ao invés de haver trabalhadores com treinamento e habilitação para as diversas funções, sendo identificado como um trabalhador portuário, passou a existir um trabalhador de estiva, outro da conferência, e assim por diante.

Tal fragmentação possibilitou a proliferação de diversos sindicatos (sindicato dos estivadores, sindicato dos capatazes, etc...), fragmentando a categoria, o que acarreta a diminuição do poder de mobilização e pressão.

É cristalina a miopia deste tipo de pensamento: mantém-se um nicho de poder que atende a um interesse de alguns dirigentes, mas prejudica-se a categoria, já que multifuncionalidade significa: 1) flexibilidade do trabalhador para variadas fainas (algo essencial atualmente) e 2) a substituição de sindicatos fragmentados por ofícios por uma entidade sindical mais forte e ampla de trabalhadores portuários.

Para o trabalhador especificado diminuíram as oportunidades de trabalho, pois um trabalhador da conferência, por exemplo, acaba impossibilitado de realizar uma faina do conserto.

Essa fragmentação gerou então impactos diretos no custo da mao de obra, porque no afã de atender aos anseios de seus filiados, os sindicatos fragmentados induziram, pela via negocial, a um inchaço de ternos. Por exemplo, se para a faina do navio Blue Star bastaria escalar quatro estivadores, três conferentes e nove capatazes, a norma coletiva exigia um terno com dez estivadores, seis conferentes, vinte arrumadores, dois vigilantes de embarcações, três consertadores, três trabalhadores de bloco. O interesse imediato dos filiados restou atendido mas houve um encarecimento da mão de obra.

O caro leitor poderia então questionar: e o que mudou com Lei 12.815? A grande inovação da Lei 12.815 consiste em suprimir a antiga dicotomia existente entre terminais de uso privativo exclusivo e misto, antes prevista no art. 4º, II e §2º, II, “a” e “b” da Lei 8.630, passando a existir doravante somente terminais de uso privado (sem nenhuma referência a carga própria ou carga de terceiro) paralelamente ao porto organizado. Com isso, permitiu-se que os terminais de uso privado, ou seja, instalações portuárias exploradas mediante autorização e localizadas fora da área do porto organizado (art. 2º, IV, da Lei 12815/2013), operem independentemente de manejarem carga própria ou de terceiro, sendo um concorrente direto dos portos organizados.

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Ocorre que os terminais de uso privado, justamente por se localizarem fora da área do porto organizado (art. 2º, IV, da Lei 12.815), não estão sujeitos às rígidas regras para contratação de mão de obra previstas em seu art. 40, ou seja, não precisam se utilizar da intermediação do OGMO. Nesse sentido sinaliza a súmula 309 do TST.

O art. 44 da Lei 12.815/13 faculta aos titulares das instalações portuárias sujeitas a regime de autorização a contratação de trabalhadores a prazo indeterminado, ou seja, trabalhadores fora do sistema.

Desta forma, como não precisam contratar trabalhadores observando as regras do sistema dos portos organizados, o custo dos serviços nesses portos privados será bem menor, interferindo, indubitavelmente, na demanda pela utilização ou não dos portos organizados, pelos empresários, para movimentarem suas cargas. E logística é uma atividade ágil: é certo que optarão pelos terminais de uso privado, considerando que nestes os custos de mão de obra são sensivelmente menores, impactando não somente na demanda pela força de trabalho no porto organizado, mas também na própria economia da cidade que abriga este.

Por outro lado, paradoxalmente, o art. 44 da Lei 12.815/13 faculta aos titulares das instalações portuárias sujeitas a regime de autorização a contratação de trabalhadores a prazo indeterminado, ou seja, trabalhadores fora do sistema.

A ideia da novel Lei parece ser justamente colocar terminais de uso privado para concorrerem abertamente com portos organizados. Ocorre tal concorrência desleal, acobertada pelo manto legal, acabará por precarizar o trabalho portuário avulso de dentro do sistema.

Infelizmente, a valorização do trabalho humano, que consiste em um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art.1º, IV), foi relegada a segundo plano e preterida em relação à iniciativa privada.

No direito comparado, nos países em que se adotou esse modelo preconizado pela nova lei, enaltecedor da iniciativa privada, houve uma precarização das condições laborais. Assim, pode-se inferir que outra sorte não terá o Brasil.

Por fim, coloque-se, por oportuno, que antes mesmo da alteração legislativa, o Ministério Público do Trabalho já vinha atuando no sentido de alertar e tentar implementar a multifuncionalidade prevista na Lei 8.630, encontrando grande resistência perante os sindicatos que não queriam perder poder, já que multifuncionalidade implicaria unificação.


CONCLUSÃO

Como restou demonstrado, a Lei 12.815, embora não tenha trazido consigo grandes alterações sob o enfoque juslaboral, acabou por impactar de forma fulminante na demanda pela mão de obra avulsa nos portos organizados, tradicionalmente mais cara.

 À categoria dos trabalhadores avulsos caberá se mobilizar e se organizar de modo a implementar a multifuncionalidade, o que lhe garantirá sindicato mais homogêneo e coeso, com maior poder de pressão, ou então ficará a não ver navios.

Por fim ressalte-se que a questão não é de ordem humanitária (garantia de trabalho para os avulsos portuários), mas também de ordem econômica, pois a questão portuária é importantíssima para a economia de qualquer país e impacta sensivelmente no custo das exportações, por exemplo.


 REFERENCIAS

Cristiano Paixão e Ronaldo Curado Fleury. Trabalho portuário – a modernização dos portos e as relações de trabalho no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Método, 2008;

Delgado, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho . 12ª ed. 2013 – Ed. LTr.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NILA, Safira. Impactos da Lei 12.815/13 no sistema portuário brasileiro:: avulsos portuários podem ficar a não ver navios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3920, 26 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27093. Acesso em: 26 abr. 2024.

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