RESUMO: A celeuma sobre as biografias não autorizadas bate às portas do Supremo Tribunal Federal, através da ADI nº 4815. O debate gira em torno de eventual inconstitucionalidade dos arts. 20 e 21 do CC/2002, que estatuem a necessidade de prévia autorização para a publicação de obras sobre as vidas de pessoas, a inviolabilidade da vida privada, e a possibilidade de oposição pelos titulares dos direitos de personalidade a terceiros, com imposição, inclusive, de indenização por danos eventualmente caracterizados. A disputa traz à tona o conflito entre os direitos da intimidade e privacidade e os direitos de liberdade de expressão e informação. Diversos argumentos são apresentados. Todavia, não é apreciado o que subjaz aos discursos. Este ensaio objetiva justamente propor questionamentos sobre o tema na busca de proporcionar uma reflexão crítica a respeito.
O debate sobre as biografias não autorizadas está na pauta do dia.
Isso porque tramita perante o Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4815, impetrada nos idos de 2012 pela Associação Nacional dos Editores de Livros, visando à declaração de inconstitucionalidade dos artigos 20 e 21, do Código Civil de 2002.
De um lado, os artistas e outras figuras públicas que têm suas vidas nas esferas privada e pública versadas nas biografias. Eles dizem ficar configurada lesão aos seus direitos de personalidade, podendo-se elencar, os de intimidade, privacidade e imagem, diante da publicação dos livros sem sua prévia autorização.
De outro, a Associação Nacional dos Editores de Livros, apoiados pelo Sindicato Nacional de Editores de Livros, escritores das biografias, dentre outros, defendendo que não seja exigida autorização prévia para publicação de obras que tratem sobre a vida de personagens públicas.
Mas qual motivo de tamanha celeuma?
Aqueles que se posicionam pela necessidade de autorização para a edição e publicação das biografias sustentam, com base no art. 20 do Código Civil de 2002, que a divulgação de escritos, a transmissão da palavra ou a publicação, exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa podem ser proibidas pela parte interessada, salvo se forem autorizadas ou se necessárias à administração pública ou manutenção da ordem pública. Para tanto, é necessário que fique configurada afronta à honra, boa fama ou a respeitabilidade, ou que sejam destinados a fins comerciais. Nestes casos, fica, ainda, assegurada a indenização pelos danos eventualmente caracterizados.
Já o parágrafo único do art. 20 atribui ao cônjuge, ascendentes ou descentes a legitimidade para a defesa contra eventuais lesões levadas a efeito em face de morto ou ausente.
Por sua vez, o art. 21 dispõe sobre a inviolabilidade da vida privada, permitindo que o interessado possa adotar medidas que afrontem esse direito.
Realmente, da leitura dos citados dispositivos infraconstitucionais que tratam sobre os direitos de personalidade, verifica-se que: a) para a divulgação de fatos da vida da pessoa se faz necessária a autorização prévia; b) os direitos de personalidade são assegurados a qualquer pessoa, não havendo no texto legal limitação ao fato de se tratarem de pessoas públicas ou não.
Deve ser observado, ainda, que estes direitos de personalidade encontram também respaldo constitucional no art. 5º, inciso X, que eleva ao status de direitos fundamentais os direitos de personalidade, diretamente relacionados a um dos principais pilares constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana.
Neste sentido, os direitos de imagem, de intimidade e de privacidade, que se ligam indissociavelmente a qualquer pessoa, integram o rol dos direitos e garantias consagrados na Carta Magna, impondo a sua observância, sob pena de ressarcimento civil.
Não obstante, a constitucionalidade dos ditos artigos do vigente Código Civil é impugnada, sendo inclusive objeto do Projeto de Lei nº393/2011, de autoria do Deputado Federal Newton Lima.
A base desta tese é o direito fundamental de liberdade de expressão e informação e o direito de ser informado.
Sustenta-se que os arts. 5º. IX e 220, da Constituição Federal de 1988 estabelecem, como direito fundamental a liberdade da expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.
Do mesmo modo, o direito à informação que consiste na liberdade que a pessoa tem de conhecer fatos relevantes à sua formação intelectual, assegurado pelo art. 5º, XIV também da Carta Magna é pilar para este posicionamento.
Com apoio nessas premissas constitucionais, para se elaborar a biografia, que consiste na narração da vida de alguém – notadamente das pessoas públicas – considera-se inconstitucional a censura e a exigência de licença prévia.
Por isso, são questionados os arts. 20 e 21 do CC/2002 ao argumento de estar configurada afronta ao princípio democrático, além de constrangimento para os escritores e de prejuízo para a produção cultural pátria.
Postos os argumentos trazidos pelos interessados na solução do impasse, ficam os seguintes questionamentos:
Até que ponto estaria configurada afronta à liberdade de expressão e de ser informado?
Há a possibilidade de se estabelecer uma licença pública compulsória dos direitos de privacidade, intimidade e imagem das pessoas, pelo simples fato de estas serem públicas, e com base nos direitos de liberdade de manifestação do pensamento, tratando-se essas premissas como se inquestionáveis fossem?
É razoável atribuir aos artistas que pretendem ver protegidos os seus direitos de personalidade, tentando impedir que fatos que trazem para si desconforto e que não contribuem em nada para o acréscimo cultural/ intelectual das pessoas a denominação de “censores”?
O que subjaz ao discurso da vedação da autorização prévia?
Inicialmente deve-se levar em conta que tanto os direitos de intimidade, privacidade e imagem, quanto os direitos de liberdade de expressão e de acesso à informação são elevados pela Constituição Republicana em vigor ao patamar de direitos e garantias fundamentais. Por este motivo, convivem harmonicamente, sem que entre eles seja explicitada a priori qualquer modalidade de hierarquia.
Partindo-se desta premissa, não há como deixar de apresentar uma visão crítica em relação à construção de dogmas, que se pretendem fazer intransponíveis no presente caso.
As liberdades de expressão e informação devem mesmo ser prestigiadas, mas não de modo a fazer com que esses direitos fundamentais se sobreponham aos demais em qualquer situação ou caso concreto. Tampouco em detrimento da pessoa como ser dotado de dignidade que é – ainda que seja sob o argumento, no mais das vezes despidos de fundamento, no sentido de que se estaria diante de uma ditadura velada e que as vidas expostas nos livros seriam de pessoas públicas que previamente teriam abdicado de suas respectivas privacidade e intimidade.
A desconstrução deste discurso, na busca da percepção do que não é revelado deve, necessariamente, ser feita antes da tomada de qualquer posição.
Primeiro, porque a melhor dicção do artigo 20 do Código Civil de 2002, voltada para a efetiva tutela dos direitos de personalidade ali tipificados é no sentido de que apenas se permitidas as citadas divulgações, independente de requerimento de proibição, poderiam ser publicados os seus conteúdos. Do contrário, ficaria comprometida a efetiva tutela da personalidade do indivíduo.
Em segundo lugar, é de se pontuar que atribuir aos artistas e demais figuras públicas o título de “censores” configura exagerado instrumento para venda de notícias – e porque não de disseminação de um discurso tido como de autoridade? A aposição de denominações como a presente, com conteúdo caricatural, por si só, já constitui forma de rechaçar a manifestação do pensamento dos defensores da ideia de necessidade de autorização prévia. Isso não se debateu na mídia.
A defesa dos interesses relacionados à esfera íntima da pessoa, indiferentemente de se tratar de pessoa pública ou não, é a todos assegurada, valendo observar que os direitos da personalidade são inalienáveis, intransmissíveis, imprescritíveis.
Destarte, não se há de falar em uma licença compulsória dos direitos de privacidade, intimidade e imagem das pessoas, ao fundamento de que estas são públicas.
E mais, para além da defesa da liberdade de expressão e do acesso à informação, encontram-se os interesses econômicos e a substancial monta movimentada pelo mercado editorial e midiático com as biografias. Assim, em alguns casos não se busca prestigiar, necessariamente, a informação em si, nem sempre relevante e propulsora do incremento cultural.
Isso porque nem tudo que é publicado nos textos sobre a vida dos artistas e demais pessoas públicas é efetivamente de interesse da coletividade, sendo empregado, no mais das vezes, como instrumento para aumento da vendagem das obras.
Há fatos sobre a vida alheia que não são imprescindíveis para o conhecimento geral e pouco (ou nada) acrescentam ao acervo histórico e cultural. Concomitantemente, porém, trazem embaraço para os que têm tais ocorrências divulgadas.
Nestes casos, deve ser questionado: em que a informação que se pretende prestar e acessar acresce à cultura dando ensejo a lesão à esfera íntima do biografado?
Não cessa por aí.
É notório que determinadas situações trazem para os retratados dor e abalo psíquico, sendo imperioso perscrutar acerca da real necessidade de sua divulgação sob o fundamento da ampla e irrestrita liberdade de expressão e informação.
Seriam prestigiados, nestes casos, a exteriorização da obra, sua publicação e vendagem, com a movimentação de expressivas somas de dinheiro, sem que tenha havido qualquer contribuição ao desenvolvimento cultural, seja do indivíduo que acessa a obra, ou mesmo do acervo pátrio.
Em contrapartida, nestes casos, o biografado é lesionado desmotivadamente, e a reparação pelos danos sofridos e a retirada de circulação das obras publicadas, que serão posteriores, não estarão aptas a restaurarem as coisas ao estado em que se encontravam antes do advento dos textos.
Ademais, nos dias de hoje, em que a informação circula numa acelerada velocidade, pela facilidade de acesso à rede mundial de computadores, a retirada da obra de circulação poderá não surtir o efeito desejado, já que acaso copiada e/ou digitalizada, poderá ser disponibilizada por diversas formas.
Não se pretende aqui afastar a relevância e contribuição das biografias para o incremento do acervo cultural pátrio.
Todavia, se faz necessário separar o joio do trigo.