Os mundos novos são parte de nosso cotidiano, as descobertas são novas formas de olhar, de relacionar, de conceber [...].
(Iná Elias de Castro, Paulo César da Costa Gomes e Roberto Lobato Corrêa, Explorações Geográficas, Prefácio, Bertrand Brasil, 1997 – original sem destaque.)
O que se pretende demonstrar neste estudo é que, ao contrário do que tem entendido o Superior Tribunal de Justiça (REsp 1147589/RS, dentre outros), o prazo prescricional previsto no Decreto nº 20.910/32 não se aplica aos casos de impugnação à demarcação dos terrenos de marinha e ao cadastramento de supostos ocupantes destes.
E por que não se aplica?
Antes de se responder à pergunta, necessário dizer que no direito brasileiro a prescrição é a regra; a imprescritibilidade, a exceção. E que a prescrição tem por finalidade primeira a estabilização das relações jurídicas, a paz social.
No caso, entretanto, a prescrição teria efeito oposto. Realizada a demarcação e cadastrado o ocupante, não sendo de terras de marinha a área demarcada, ou que, mesmo sendo, já tenha sido transferida a particulares, se admitida a prescrição quinquenal, consolidado estará, para os prejudicados, o desassossego.
Enquanto não reconhecida a preferência ao aforamento, quando a SPU admite isso, o ocupante será sempre lembrado de que sua situação é precária e de que a Administração poderá, a qualquer tempo, reintegrar-se na posse do terreno, indenizando as benfeitorias nele existentes, pelo valor que arbitrar, caso julgue de boa-fé a ocupação. Difícil imaginar-se insegurança jurídica maior.
Acresça-se a isso a enorme dificuldade para a realização de qualquer ato relativo ao imóvel, que dependa de manifestação da SPU.
Mais. Na maioria das vezes, quando o administrado toma efetivo conhecimento de que sua moradia está edificada em terreno considerado de marinha, já decorreram mais de cinco anos da data da demarcação e, às vezes, até mesmo da do cadastramento. É quando lhe apresentam a conta. Não raro bem salgada. Relativa a vários anos de taxa de ocupação, laudêmio, multa pela não comunicação de transferência. E ameaça de inclusão de seu nome no CADIN, quando não já realizada, com as consequências daí decorrentes.
Cadastramentos equivocados – de pessoas que nunca ocuparam o imóvel, de mais de um ocupante para o mesmo imóvel, com divergência entre a área efetivamente ocupada e a constante na base de dados da SPU etc. – se encontram com espantosa regularidade. O Tribunal de Contas da União, em auditoria realizada na SPU em 1998, constatou a existência de “imóveis cadastrados em duplicidade e com informações incompletas e inconsistentes que contaminaram a base de dados do SIAPA” (https://portal2.tcu.gov.br/portal/pls/portal/docs/2057482.PDF). E é com essa base de dados oficialmente reconhecida como contaminada, com informações incompletas e inconsistentes, que os supostos ou reais ocupantes de terrenos de marinha têm que conviver.
Inobstante isso, quando um suposto ocupante de terreno de marinha impugna uma demarcação, cadastramento ou área ocupada é ele quem tem que demonstrar a incorreção dos procedimentos e não o estado que agiu mal, terceirizando os serviços e não fiscalizando adequadamente sua execução. O estado que deve possuir, em autos administrativos específicos, a documentação necessária à demonstração da regularidade de seus atos.
E mesmo o Judiciário, que deveria por cobro a tais distorções, ratifica-as, muitas vezes, ao impor ao cidadão o encargo de demonstrar que o poder público agiu com desacerto e não a este que seu procedimento está conforme o Direito. Isso, desconhecendo o modo de agir burocrático, ao argumento de que demarcações e cadastramentos gozam dos atributos inerentes aos atos administrativos: “presunção de legitimidade, imperatividade, exigibilidade e executoriedade” (REsp 624.746/RS).
É certo que os atos administrativos gozam de tal peculiaridade. Mas isso até onde viabilize o agir da Administração Pública no exercício de seu mister. Somente até aí. No momento em que fundamentadamente contestado o ato, o mínimo que seria de se esperar é que se suspendesse sua eficácia, até que demonstrada sua correção. O que para a Administração não é difícil, já que se supõe que, controlando a legalidade de seus atos, ela os tenha praticado por meio de regular processo administrativo, com os registros necessários.
Aliás, suporte jurídico para isso há: os arts. 14. e 355 e seguintes do CPC. Mais ainda: dadas as circunstâncias, dada a disparidade de forças (estado x cidadão) e pela razão aludida no próximo parágrafo, plenamente aplicável, na hipótese, a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova. Teoria esta presente, faz tempo, em julgados do Superior Tribunal de Justiça (REsp 69309/SC, REsp 1084371/RJ e REsp 619148/MG, dentre outros). Neste último, assegura o relator, Min. Luiz Felipe Salomão: “[...] à luz da teoria da carga dinâmica da prova, não se concebe distribuir o ônus probatório de modo a retirar tal incumbência de quem poderia fazê-lo mais facilmente [...]”.
Em suma: a prova deve ser produzida por quem tem melhores condições de fazê-lo. Mesmo que isso implique beneficiar a parte contrária. Afinal, à parte compete expor os fatos conforme a verdade e agir com lealdade e boa fé. Se silencia sobre fatos, sonega documentos, atenta contra a dignidade da justiça. O objetivo buscado no processo não é dar a vitória ao mais poderoso, ao mais esperto, mas descobrir a verdade, fazer justiça.
Isso deveria ocorrer até mesmo em nome do princípio da economia processual. Porque impor ao cidadão gastos com perícias etc., se todas as informações e provas já estão (ou deveriam estar) nos autos dos processos administrativos onde se realizaram as demarcações e cadastramentos? Se neles estão as provas da regularidade dos atos contestados, resolve-se a questão com a improcedência do pedido. Se não, o ato é inválido e a acolhimento da pretensão do impugnante se impõe. Evitam-se, assim, as delongas e despesas necessárias com a nomeação de expertos, realização de perícias, confecção de laudos, designação de audiências para esclarecimento de dúvidas etc.
É preciso, outrossim, que o Judiciário não se deixe impressionar em demasia e por cautela quando se alega dano ao erário, ao patrimônio público, defesa do interesse público, do interesse da sociedade, lesão à ordem pública (nos seus aspectos jurídico ou econômico) e efeito multiplicador das decisões (seja lá o que for que tudo isso queira significar; no mais das vezes significa apenas ausência de argumentos consistentes), sem demonstração da efetiva ocorrência de tais situações. Pois quando isso ocorre anula-se, sufoca-se o indivíduo. E ele é o destinatário primeiro dos direitos e garantias asseguradas pela ordem jurídica (CF, art. 5º incisos e §§).
Mas, voltando à pergunta inicialmente formulada: porque o prazo prescricional estabelecido no Decreto nº 20.910/32 não se aplica aos casos de demarcação da LPM e cadastramento de ocupantes de terrenos de marinha?
Não se aplica, em primeiro lugar, porque a Administração deve, sem prazo fixado em lei para tanto, excetuada a situação referida no parágrafo seguinte, “anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade” (Lei nº 9.784/99, art. 53. – negrito acrescido).
O Poder Público somente decai do direito/dever de anular seus atos ilegais, no prazo de cinco anos, contados da data em que foram praticados ou que destes os interessados tiveram ciência, quando deles decorram efeitos favoráveis para os destinatários, salvo comprovada má-fé (Lei nº 9.784/99, art. 54). Isso em homenagem ao princípio da segurança jurídica, lembrado pela Constituição da República desde o seu preâmbulo.
Fechando o círculo, o art. 55. da mesma Lei somente autoriza a convalidação do ato viciado quando a providência não acarretar “lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros” (original sem destaque).
E por interesse público não se entenda qualquer vantagem financeira reclamada pela União, ao arrepio da lei. Pois isso contrariaria não só o princípio da legalidade, mas vários outros referidos no caput do art. 37. da CF e 2º do diploma legal supracitado. Até mesmo porque, não tendo o estado (no regime jurídico-político adotado pela CF/88) entre suas finalidades possuir bens para obtenção de receita, e considerando a intranquilidade social que a situação acarreta, a manutenção dos terrenos de marinha (há décadas ou séculos ocupados, não os ainda virgens, de interesse ambiental etc.) sob seu domínio é claramente contra o interesse público (primário).
A leitura contextual dos dispositivos legais mencionados não deixa dúvidas, pois, de que a regra é a inexistência de prazo para a anulação dos atos ilegais.
Não se queira que a demarcação que abarque terras que não são de marinha e o cadastramento, como ocupantes destes, de proprietários de áreas transferidas a particulares ou localizadas além dos 33 metros, contados a partir da LPM de 1831 (mormente quando feitos sem notificação pessoal dos interessados), não padeçam de nulidade máxima: eles atingem um direito fundamental, o de propriedade.
E ninguém pode ser privado de seus bens, seja como pena seja por desapropriação, sem que observado o devido processo legal (CF, art. 5º, LIV). E o processo de demarcação constitui devido processo legal apenas e tão somente para a discriminação da (discutível em muitos casos) propriedade da União em terrenos de marinha. Não para o dasapossamento de um bem por qualquer outro título.
Se a demarcação foi tecnicamente deficiente e considerou de marinha terras que efetivamente não o são, ou se se cadastraram como ocupantes de terrenos de marinha proprietários de áreas que legitimamente passaram para a propriedade de particulares ou que não são de marinha, tais atos são inválidos, absolutamente inválidos. E devem ser, nos termos da lei, anulados, sob pena de violação dos dispositivos legais antes referidos, vale dizer, do princípio da legalidade.
Não há como negar, insista-se, que uma demarcação de terrenos alodiais como se de marinha fossem, bem como o cadastramento de seus ocupantes são atos absolutamente ilícitos, sem apoio na ordem jurídica. E, nessa condição, não passam de atos de força.
Pretender prevaleça, diante da legislação citada, um ato de força do estado, em virtude de suposta prescrição, é algo absurdo. É tornar lícito um surreal esbulho, já que nem mesmo a posse a Administração detém. Faz pouco do princípio da razoabilidade conceder-se à União o privilégio de ter como seu imóvel que ela unilateralmente assim declarou, passados cinco anos, quando o cidadão prejudicado muitas vezes só tomou conhecimento do ilícito quando já transcorrido aquele prazo.
O estado, caso aja assim, descumpre sua função primordial, que é a de proporcionar o bem estar possível aos cidadãos.
A anulação da demarcação ou cadastramento, na hipótese, administrativa ou judicialmente, deve ser realizada sem se considerar qualquer prazo prescricional, repita-se, porque isso o que deflui do exame da lei de regência, como visto em linhas pretéritas.
Alguém poderia argumentar com as Súmulas 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal, dizendo que a União (apenas) pode – não está obrigada a – rever seus atos ilegais, por motivo de conveniência e oportunidade.
Ocorre que, independentemente da equivocada interpretação que se lhes dê, elas são anteriores à Lei nº 9.784/99. E não é só: o estado democrático de direito é um estado que se justifica. Determinada situação só pode ser por ele mantida se tem por fim o bem comum, o bem estar da sociedade (= interesse público primário). Não da sociedade massa amorfa. Mas da sociedade agrupamento de indivíduos com direitos inalienáveis, que não podem ser sacrificados em nome de um suposto interesse geral. E, na hipótese em discussão, definitivamente não é isso o que ocorre.
Em segundo lugar, porque a União não tem prazo para demarcar os terrenos de marinha e cadastrar os seus ocupantes. As primeiras normas especificando tais áreas datam do início do Século XIX. E até hoje ainda há enormes trechos do litoral brasileiro por demarcar.
O Superior Tribunal de Justiça já definiu que “o procedimento de demarcação dos terrenos de marinha [importante ressaltar: terrenos de marinha de propriedade da União, não os transferidos a particulares, em épocas passadas, nem os alodiais equivocadamente demarcados como se de marinha fossem] produz efeito meramente declaratório da propriedade da União sobre as áreas demarcadas” (REsp 687.843/ES). Se assim é, o reconhecimento – na via administrativa e também na judicial – de que houve equívoco na demarcação, reverso da moeda, tem a mesma natureza, e independe de prazo. Isso até mesmo em nome do princípio da simetria.
E o raciocínio não incorre em nenhuma heresia jurídica.
Em discussão recentemente finda na jurisprudência, sobre o prazo prescricional para a cobrança das dívidas relativas ao foro e à taxa de ocupação, ficou certo que quando a lei não o estabelece relativamente a determinada pretensão, a analogia se deve buscar em situações semelhantes no próprio direito público (REsp 1.133.696/PE).
Assim é que, em homenagem ao princípio supracitado, se fixou o entendimento de que o prazo que a União tinha para cobrar o foro e a taxa de ocupação, antes do advento da Lei nº 9.636/99, era de cinco anos, porque o Decreto nº 20.910/32 estabelece este lapso temporal para que o cidadão reivindique seus créditos em face dos entes públicos.
Anote-se que a busca de caminhos em seus próprios domínios, para a resolução de determinadas situações nele não previstas não é estranha ao Direito Público Brasileiro. O Código Tributário Nacional, em seu art. 108, I a IV, estabelece que, na ausência de disposição expressa, ao se aplicar a legislação tributária, se deve utilizar, sucessivamente, a analogia, os princípios gerais de direito tributário, os princípios gerais de direito público e a equidade. Ele parte das normas e princípios especiais para os gerais.
Aliás, aí, o CTN seguiu o rumo já indicado pelo Decreto-lei nº 4.657/42, hoje Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em seu art. 4º. Basta, para que assim se conclua, se leia aquele dispositivo legal no contexto do Direito Público. Coisa diversa não pretende a Lei nº 9.784/99, ao determinar, em seu art. 2º, parágrafo único, I, que a Administração pública atue “conforme a lei e o Direito (destaque da transcrição).
Vale utilizar, aqui, proveitosamente, com as ressalvas levantadas neste texto, objetivando solucionar as questões surgidas nas demarcações da LPM e cadastramentos de ocupantes de terrenos de marinha, o argumento da hoje aposentada Min. Eliana Calmon, quando ela afirmou que “o procedimento de demarcação de terrenos de marinha e seus acrescidos não atinge o direito de propriedade de particulares, pois não se pode retirar a propriedade de quem nunca a teve” (REsp 1.147.589/RS – negrito ausente no original).
Do mesmo modo, se por equívoco ou deficiência técnica na demarcação a União invade terras particulares, por ter o ato apenas natureza declaratória, não constitui propriedade sua, o que nunca foi dela. Nem ela se torna dona de uma área alodial pelos simples fato de haver cadastrado o seu proprietário como ocupante de terreno de marinha. Noutro dizer: ao demarcar terras alheias como se suas fossem, ou ao cadastrar como ocupantes proprietários de terras alodiais, ela não passa a ter domínio sobre elas por força de tais procedimentos.
Não se argumente que o entendimento aqui exposto instauraria o caos, a insegurança jurídica. A segurança jurídica assegurada na Constituição é primordialmente em favor do cidadão. E, no caso, insegurança jurídica existe para os supostos ocupantes de terrenos de marinha, não para a União.
Em terceiro lugar, porque, em se tratando de demarcação da LPM sem notificação pessoal do ocupante conhecido (= cujo imóvel está registrado no Cartório do Registro de Imóveis ou inscrito na SPU), inevitável estabelecer-se um paralelo entre tal hipótese e a que enseja o ajuizamento da ação declaratória de inexistência de relação jurídica (querela nullitatis insanabilis), em caso de ausência de citação válida.
Quanto à ação supracitada, é pacífico, tanto na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal quanto na do Superior Tribunal de Justiça, o entendimento de que ela é imprescritível. Confira-se (negritos da transcrição):
8. No caso específico dos autos, em que a ação principal tramitou sem que houvesse citação válida do litisconsórcio passivo necessário, não se formou a relação processual em ângulo. Há, assim, vício que atinge a eficácia do processo em relação ao réu e a validade dos atos processuais subsequentes, por afrontar o princípio do contraditório. Em virtude disto, aquela decisão que transitou em julgado não atinge aquele réu que não integrou o polo passivo da ação. Por tal razão, a nulidade por falta de citação poderá ser suscitada por meio de ação declaratória de inexistência por falta de citação, denominada querela nullitatis, que, vale ressaltar, não está sujeita a prazo para propositura, e não por meio de ação rescisória, que tem como pressuposto a existência de decisão de mérito com trânsito em julgado.
(AR 569/PE, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe 18/02/2011)
4. A nulidade absoluta insanável é vício que, por sua gravidade, pode ser reconhecido mesmo após o trânsito em julgado, mediante simples ação declaratória de inexistência de relação jurídica (querela nullitatis insanabilis), não sujeita a prazo prescricional ou decadencial e fora das hipóteses taxativas do art. 485. do CPC (ação rescisória).
(REsp 1199884/BA, SEGUNDA TURMA, DJe 08/09/2010)
PARA A HIPÓTESE PREVISTA NO ARTIGO 741, I, DO ATUAL CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - QUE É A DE FALTA OU NULIDADE DE CITAÇÃO, HAVENDO REVELIA -, PERSISTE, NO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO, A "QUERELA NULLITATIS", O QUE IMPLICA DIZER QUE A NULIDADE DA SENTENÇA, NESSE CASO, PODE SER DECLARADA EM AÇÃO DECLARATORIA DE NULIDADE, INDEPENDENTEMENTE DO PRAZO PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO RESCISÓRIA, QUE, EM RIGOR, NÃO E A CABÍVEL.
(RE 96374, Segunda Turma, DJ 11-11-1983 PP-07542 EMENT VOL-01316-04 PP-00658 RTJ VOL-00110-01 PP-00210)
E se assim é em se tratando de decisão judicial, onde o formalismo é mais acentuado, soaria estranho pretender que, em situação idêntica, o ato administrativo tivesse maior vigor do que uma sentença ou acórdão com trânsito em julgado.
Observe-se, ainda, que, na espécie, a circunstância da parte já ter se manifestado nos autos administrativos sem impugnar a ilegalidade não a impede de alegá-la posteriormente. É que incide, no caso, por analogia, o disposto no parágrafo único do art. 245. do CPC. Este dispõe que, nas hipóteses em que a nulidade deve ser decretada de ofício – e isso ficou demonstrado em linhas anteriores –, não preclui o direito do interessado arguir a ilicitude a qualquer tempo.
Nessa linha, como não poderia deixar de ser, o entendimento pretoriano:
3. O art. 245. do CPC, que impõe seja alegada a nulidade dos atos na primeira oportunidade em que couber à parte falar nos autos, não tem incidência quanto às nulidades decretáveis de ofício pelo juiz. Precedentes do STJ: REsp 161.458/MG, 2ª T., Rel. Min. Adhemar Maciel, DJ 20/10/1998; REsp 29.852/PR, 4ªT., Rel. Min. Fontes de Alencar, DJ 17/06/1996.
(REsp 615696/DF, PRIMEIRA TURMA, DJ 29/11/2004, p. 246. – negrito acrescido.)
O mesmo raciocínio se aplica aos casos em que a União decide aplicar o regime enfitêutico a terrenos localizados em determinada área e realiza, por meio de edital, o chamamento dos ocupantes para manifestarem o seu interesse em aforar a área ocupada, ao arrepio do disposto na parte final do parágrafo único do art. 104. do Decreto-lei nº 9.760/46.
Isso porque também aí está em jogo o direito de propriedade. Os ocupantes de terrenos de marinha que não manifestarem seu interessem em aforá-lo, no tempo fixado em lei, perdem a preferência ao aforamento gratuito, vale dizer, o domínio útil do imóvel sem pagar por ele. Isso estando a área em terreno de marinha. Porque não estando, ou mesmo estando e já tendo passado para o domínio privado, a perda será do domínio pleno.
Em quarto lugar, não é nenhum exagero equiparar-se uma demarcação equivocada, fundada em leitura inadequada de plantas, de resultados de medições etc. ao erro material, justificador de revisão do decidido, sem prazo para tanto.
No processo judicial – e o regramento deve ser analogicamente aplicado ao processo administrativo –, o erro material é corrigível mesmo depois do trânsito em julgado da sentença ou acórdão, até no momento de sua execução. Veja-se:
[...] ERRO MATERIAL. CORREÇÃO. ART. 463, I, DO CPC. OFENSA À COISA JULGADA. NÃO OCORRÊNCIA.
[...]
- Erro material pode ser sanado a qualquer tempo, nos termos do art. 463, I, do CPC, sem implicar ofensa à coisa julgada.
(AgRg no REsp 1223157/RS, SEGUNDA TURMA, DJe 10/08/2012 – negritos acrescidos.)
Exemplo prático da hipótese se deu em demarcações da LPM na Ilha de Vitória. Em boa parte do trabalho demarcatório valeram-se os técnicos da SPU de uma planta desenhada no final do Século XIX, onde constam as áreas úmidas.
Ocorre que o autor da planta especifica que ali estão os brejos (umidade decorrente de água doce) e os mangues (até onde chegava a água do mar). Nos primeiros, que não sofriam a influência das marés, impossível a existência dos terrenos de marinha.
Os servidores encarregados da demarcação da LPM, entretanto, não atentaram para o fato e sem se valerem de outros parâmetros indicados em lei, consideraram toda a área como se de terrenos de marinha fosse. Não levaram em conta, ainda, a possível inexatidão dos limites das áreas úmidas ali traçados. Nem que, pela própria topografia do local, mesmo que ali se fizesse sentir a influência das marés, certamente a média das enchentes não chegaria até onde se demarcou a LPM.
No caso, houve, portanto, evidente erro material. Verificável sem maiores indagações. Erro que a própria SPU deveria corrigir de ofício, a qualquer tempo em que detectado.
Esclareça-se, por oportuno, que mesmo antes do advento da Lei nº 9.784/99, o Direito Administrativo Brasileiro já admitia a revisão do ato administrativo a qualquer tempo. Isso quando se verificasse que, em virtude de fatos e circunstâncias posteriormente vindos a lume, se conhecidos quando de sua prática, a decisão, obediente ao princípio da legalidade, teria sido outra.
Trata-se do art. 174. da Lei nº 8.112/90, que cuida de hipótese algo diversa da aqui discutida, mas que se inspira no mesmo princípio. Ei-lo:
Art. 174. O processo disciplinar poderá ser revisto, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando se aduzirem fatos novos ou circunstâncias suscetíveis de justificar a inocência do punido ou a inadequação da penalidade aplicada (destaque acrescido).
E, em quinto e último lugar, porque o prazo prescricional estabelecido pelo Decreto nº 20.910/32 não se aplica às ações reais. Isso está bem claro em seu texto, que se reporta a “dívidas passivas” (= créditos/ação pessoal) e a “qualquer direito ou ação contra a Fazenda” (= face financeira do estado – destaque da transcrição).
Ocorre, entretanto, que Superior Tribunal de Justiça estabeleceu, na voz da hoje aposentada Min. Eliana Calmon, que
A ação declaratória de nulidade dos atos administrativos (inscrição de imóvel como terreno de marinha) não tem natureza de direito real. Aplicável a norma contida no art. 1º do Decreto 20.910/32, contando-se o prazo prescricional a partir da conclusão do procedimento administrativo que ultima a demarcação (REsp 201000472906).
Inobstante o respeito de que são credores a Corte e a Ministra, não se pode concordar com a afirmação. Evidente que a demarcação e o cadastramento, que transferem, na prática, o imóvel antes tido como de domínio privado para o da União, é ato de que resultam relações jurídicas de direito real.
E a ação ajuizada em face da União, ainda que declaratória de inexistência de relação jurídica que a autorizasse a praticar aqueles atos, tem por finalidade estabelecer a certeza da inexistência de relação jurídica (de direito real) por eles (supostamente) criada. É, pois, ação de natureza real.
O que se deseja com a ação não é a simples anulação do ato, por efeito da declaração de inexistência de relação jurídica que autorizasse a União a praticá-lo, mas a retomada do bem ilicitamente expropriado. A restauração do statu quo ante.
Não por acaso, disse o Min. Luiz Fux, nos autos da ADI 4264 MC-PE, reportando-se ao procedimento de demarcação da LPM:
O procedimento in foco, sem obediência do devido processo administrativo, pode resultar, em inúmeros casos na expropriação da propriedade privada e na alteração do título de dominus que passará a ser considerado mero ocupante, com os consectários legais da nova categorização jurídica de seu ius in re (negrito da transcrição).
Não há dúvida, pois, de que o prazo prescricional de que trata o Decreto nº 20.910/32 não se aplica à impugnação das demarcações da LPM e dos cadastramentos de ocupação de terrenos de marinha.
Anote-se, finalizando este texto, que o referido DL se aplica, no caso, apenas aos efeitos financeiros do ato anulatório da demarcação ou do cadastramento, representados pelo dever de restituição dos valores indevidamente pagos.