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Primeiras considerações sobre o novo tratamento jurídico ofertado à criminalidade organizada no Brasil

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24/04/2014 às 15:22

Resumo:


  • A criminalidade organizada no Brasil tem gerado uma constante demanda por leis penais específicas para lidar com grupos delitivos refinados.

  • O discurso de pânico na sociedade tem levado a uma proliferação de leis penais, resultando em um emaranhado legislativo nos últimos anos.

  • A Lei 12.850/2013, que trata da criminalização da conduta de crime organizado, permite a utilização de meios excepcionais de persecução, o que levanta questões críticas sobre o sistema jurídico brasileiro.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

§4º O confronto entre os princípios democráticos de direito e a utilização de uma legislação emergencial e sacrificadora das garantias individuais para o combate do crime organizado

Claramente o legislador pátrio tem, sob o rótulo de confronto à criminalidade organizada, editado, reiteradamente, legislação sacrificadora de direitos e garantias fundamentais, devendo ser realmente debatida com seriedade a necessidade de que sejam sacrificados direitos e garantias fundamentais em nome de uma retórica proteção da sociedade contra a criminalidade organizada, cabendo ainda discutir se são necessários e eficazes os ataques promovidos aos postulados do Estado Democrático de Direito para que se satisfaça um desejo de reação penal mais rigorosa contra a criminalidade organizada.

Luiz Regis PRADO12 já observou que “a complexidade e a conflituosidade intensa são características marcantes da sociedade moderna”, de sorte que a cada dia se coloca o legislador em face a exigência de adoção de políticas públicas para equacionar os casos de conflito, porém limitando sua ação à derrubada das barreiras garantidoras das liberdades cidadãs, e com isso, promovendo o permanente incremento do poder punitivo.

Quando se funcionaliza o Direito Penal, para transformá-lo em um habilitador do ius puniendi e elemento de flexibilização dos direitos e garantias, o que se faz é migrar a estrutura jurídica para o modelo autoritário, com a geração de um instrumental intrassistêmico de afastamento das proteções constitucionais, submetendo o cidadão comum à permanente possibilidade de ser objetivizado, conforme os interesses manifestados por quem controla as estruturas de funcionamento do poder.

A verdade é que ao sistema penal democrático é vedado rebaixar o autor do delito de sua condição humana, mas deve produzir permanente limitação do ius puniendi, como maneira de salvaguardar os cidadãos e, nas hipóteses em que permitir a intervenção punitiva, fazê-lo submetendo a rigorosas regras tendentes a produção da máxima racionalização possível do conflito manifestado pelo crime.

A permanente preocupação em frear o ius puniendi estatal decorre, em grande parte, da certeza histórica, bem destacada por FERRAJOLI, de que “a história das penas é sem dúvida mais horrenda e infamante para humanidade que a própria história dos delitos.”13

Assim, a famosa enumeração de FERRAJOLI dos princípios garantistas não pode ser abandonada em nenhum item:“Nulla poena sine crimine; Nulla lex (poenalis) sine necessitate; Nulla necessitates sine iniuria; Nulla iniuria sine actione; Nulla actio sine culpa; Nulla culpa sine iudicio; Nullum iudicium sine acusatione; Nulla accusatio sine probatione; Nulla probatio sine defensione.”14

Afirma-se, com lastro nos princípios garantistas, que somente pode ser aplicada pena para alguém se este houver cometido um crime previsto em lei, que a pena somente deve existir se necessária for, ou seja, porque houve uma ofensa extrema ao bem jurídico, que somente pode ocorrer mediante ação dotada do pressuposto da culpabilidade e firmada em juízo, após regular acusação, pautada em provas e fiscalizada por efetiva defesa.

Nesse sentido, as legislações sacrificadoras dos direitos e garantias fundamentais, a pretexto do combate ao crime organizado, não são representativas do Direito Penal democrático, mas meros arcabouços de persistente geração do modelo autoritário, ainda que formalmente bem construídas, como são as legislações nazifascistas ou mesmo recentes leis do anti-terrorismo norte-americano.

Bem a propósito, Louk HULSMAN observa que “a criminalização pode ser utilizada pelo legislador como solução aparente. Frequentemente o legislador está sob a pressão da opinião pública ou de certos grupos para agir contra um fenômeno indesejável, sem que disponha de meios eficazes para fazê-lo, ou sem que esteja disposto a pagar o preço desta ação.”15

E, na mesma linha de pensamento, vale lembrar o alerta de BETTIOL, no sentido de que“se é verdade que o direito penal começa onde o terror acaba, é igualmente verdade que o reino de terror não é apenas aquele em que falta uma lei e impera o arbítrio, mas é também aquele onde a lei ultrapassa os limites de proporção, na intenção de deter as mãos do delinquente.”16

No Brasil, a atualidade da preocupação de que o afã retórico de combate ao crime represente o nascedouro de um estado de terror é particularmente importante no tema das organizações criminosas, que há muito virou o conceito de que se vale o legislador para promover justificativas para flexibilizar regras de garantia e proteção do cidadão.

A nova Lei nº 12.850/2013 nada mais é que um experimento nesse sentido, pois seguindo o já tradicional vício de valer-se de conceito abstrato para tratar do crime organizado e da pulverização de sua incidência para as mais diferentes hipóteses, ao final o que faz é referendar medidas extremas em favor dos agentes do Estado, maximizando as ferramentas punitivas.


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Notas

1 DELMAS-MARTY, Mireille apud CARVALHO, Salo. Crime e Sociedade. Curitiba: Juruá, 2001, p. 327-328.

2 Cf. LUISI, Luiz. El principio de intervencion minima. Política Criminal y Reforma Penal, 1996 registra CARRARA nominou a tal fenômeno de nomorréia penal.

3 Idem. Ibidem, p. 10.

4 HASSEMER, Winfried. Segurança Pública no estado de Direito. São Paulo: Revista de Direito Alternativo, 1994, p. 24.

5 BIITENCOURT, Cezar Roberto. Princípios Garantistas e a Delinqüência do Colarinho Branco. São Paulo: Revista Brasileira de Ciências Criminais, 1995, p. 123-124.

6 XAVIER NETO. O Combate ao Crime Organizado. Brasília: Revista Prisma, 1995, p. 7.

7 BRASIL. CP, art. 288: “Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes”.

8 MIRABETE, Julio Fabrini. Código Penal Interpretado. Segunda Edição. São Paulo: Atlas, 2001, p. 1753.

9 MINGARDI, Guaracy. O estado e o crime organizado. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 1998, p. 81.

10 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Volume 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 650.

11 http://www.rogeriogreco.com.br/?p=2179

12 PRADO, Luiz Regis. Ciência Penal: Coletânea de Estudos em homenagem a Alcides Munhoz Netto. Curitiba: JM, 1999, p. 283.

13 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal. 3.ª edição. Madrid: Trotta, 1998, p. 385.

14 FERRAJOLI, Luigi. Op. Cit., p. 92 e s..

15 HULSMAN, Louk. Descriminalização. São Paulo: Revista de Direito Penal, 1973, p. 14.

16 BETTIOL apud BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 13.

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Sobre o autor
Adel El Tasse

Professor de Direito Penal em cursos de graduação e pós-graduação, professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná e no Curso Cers, mestre e doutor em Direito Penal, coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais e do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos do Município de Curitiba.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

EL TASSE, Adel. Primeiras considerações sobre o novo tratamento jurídico ofertado à criminalidade organizada no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3949, 24 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27862. Acesso em: 23 dez. 2024.

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