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O árduo processo de demarcação de terras indígenas

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27/04/2014 às 07:34
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POSSIBILIDADE DE EXPULSÃO DOS ÍNDIOS DE SUAS TERRAS

Conforme se verifica ex vi do art. 231 e seus respectivos parágrafos, o índio possui posse permanente sobre as terras, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ou seja, as áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia.

Posse essa que deve ser entendida conforme dispõe a Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973, quando em seu artigo 23 diz: “Considera-se posse do índio ou silvícola a ocupação efetiva da terra que, de acordo com os usos, costumes e tradições tribais, detém e onde habita ou exerce atividade indispensável à sua subsistência ou economicamente útil”. (BRASIL, 1973). Logo, não se pode igualar a posse indígena à posse civil, pois aquela é mais ampla e mais flexível.

A Constituição proíbe a remoção do grupo indígena de suas terras, conforme preleciona o início do parágrafo 5° do supracitado artigo, quando diz: “É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras [...].” (BRASIL, 1988).

No decorrer do mesmo parágrafo, o Constituinte elenca as únicas hipóteses no qual é permitido tal remoção, quais sejam: em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País. Tudo isso deve ser feito ad referendum,ou seja, desde que o Congresso Nacional, uma vez consultado, aprove. No entanto, logo que cesse o risco, deve-se garantir o imediato retorno dos índios às suas terras, conforme seu direito originário sobre elas.

Em interessante julgado, o Supremo Tribunal Federal sustenta tal posição:

CPI: intimação de indígena para prestar depoimento na condição de testemunha, fora do seu habitat: violação às normas constitucionais que conferem proteção específica aos povos indígenas (CF, arts. 215 , 216 e 231). A convocação de um índio para prestar depoimento em local diverso de suas terras constrange a sua liberdade de locomoção, na medida em que é vedada pela Constituição da República a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo exceções nela previstas (CF/1988, art. 231, § 5º). 10

Nesse mesmo sentido entendeu por unanimidade a 3° Turma do Tribunal Regional Federal da 5° Região, aludindo o seguinte:

CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE CUMULADA COM PERDAS E DANOS. ÁREA INDÍGENA. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO.

1. Conforme dicção do art. 231, § 6º, da Constituição da República, pertinente às terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, “São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenizações e ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas de ocupação de boa-fé”.

3. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios não são suscetíveis de ocupação, domínio ou posse. Por tal razão, não poderia o pretenso proprietário das mesmas pretender expulsar os indígenas que nas terras se encontrarem. (Grifos nosso)

O índio nasce com a terra e, por conseguinte, o seu direito a terra está ligado ao seu direito à vida e identidade, sendo estes direitos fundamentais, pois, como bem explica Pontes de Miranda: “Não existem conforme os cria ou regula a lei; existem a despeito das leis que os pretendam modificar ou conceituar. Não resultam das leis; precedem-nas; não têm o conteúdo que elas lhes dão, recebem-no do direito das gente” (1987, p.621).

Logo, os índios têm a terra como seu habitat natural, no qual serve de espaço de reprodução biológica e cultural, de definição e diferenciação étnica. Como bem salienta o Prof. Doutor Luciano Mariz Maia: “É condição inafastável para ser índio, viver como índio, viver entre os índios”.11


CONCLUSÃO

Sendo assim, não restam dúvidas que o texto constitucional vigente trouxera vários avanços com relação aos direitos dos índios, que se encontram mais protegidos, reconhecendo de forma expressa o direito originário sobre as terras e a exclusividade na exploração de riquezas e recursos existentes nessas áreas.

Entretanto, mesmo com tais avanços, é mais do que notório o fato de que no processo de demarcação de terras permeiam interesses político-econômicos que são alvo de discussões tanto no judiciário como nas instâncias da administração pública brasileira.

Logo, as questões suscitadas pelo processo de demarcação de terras não são poucas e muito menos fáceis de serem solucionadas, todavia, decisões do STF e efetivação de leis constitucionais e infraconstitucionais que atentem para o direito à identidade dos indígenas, são formas de tentar evitar que impasses ora discutidos se protelem sem resolução e acabem por deixar tais grupos minoritários à margem de proteção.


REFERÊNCIAS

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BRASIL. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Acesso em 08 de setembro de 2013, disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.

BRASIL. Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Acesso em 10 de setembro de 2013, disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.htm>.

BRASIL. Lei n° 1.775, de 08 de janeiro de 1996. Dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas e dá outras providências. Acesso em 10 de setembro de 2013, disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D1775.htm>.

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Publique seus artigos

BRASIL. Decreto n°592, de 06 de julho de 1992. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Acesso em 10 de setembro de 2013, disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm>.

FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 38. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

FUNAI. O Índio hoje. Acesso em 08 de setembro de 2013, disponível em < http://www.funai.gov.br/indios/conteudo.htm#SER_INDIO>.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.


Notas

1 Daniel Sarmento. A garantia do direito à posse dos remanescentes quilombolas antes da desapropriação, acesso em 08 de setembro de 2013, disponível em <www.cpisp.org.br/acoes/upload/arquivos/AGarantiadoDireitoaPosse_DanielSarmento.pdf>.

2 RE 183188, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Primeira Turma, julgado em 10/12/1996.

3 HC 80.240, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 20 – 06 – 2001.

4 RE 183.188, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 10-12-1996, Primeira Turma, DJ de 14-2-1997.

5 MS 24.045, Rel. Min. Joaquim Barbosa.

6 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 24° Ed. São Paulo: Malheiros, 2012. P.858.

7 Pet 3388, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009, DJe-181 DIVULG 24-09-2009 PUBLIC 25-09-2009 EMENT VOL-02375-01 PP-00071.

8 MS 10.994/DF, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 08/03/2006.

9 MANDADO DE SEGURANÇA N° 14.746 - DF (2009/0208885-6). Acesso em 10 de setembro de 2013, disponível em: http://stj.jurisprudencia/19154360/mandado-de-segurança-ms-1476-df-2009-0208885-6/relatorio-e-voto-19154362.

10 HC 80.240, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 20-6-2001, Primeira Turma, DJ de 14-10-2005.

11 MAIA, Luciana Mariz. Os Direitos das Minorias Étnicas. Acesso em 08 de Setembro de 2013, disponível em: < http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/lucianomaia/lmaia_minorias.html>.

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Sobre o autor
Winicius Faray da Silva

Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Winicius Faray. O árduo processo de demarcação de terras indígenas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3952, 27 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27934. Acesso em: 8 mai. 2024.

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