Resumo: Desde o Alvará de abril de 1680, percebe-se o reconhecimento do direito do índio sobre as terras, sendo eles os primários e naturais senhores delas. Não sendo diferente, a Lei Maior do Estado brasileiro, preocupando-se em proteger o indígena, reconheceu-lhe o direito à organização social própria, aos costumes, línguas, crenças e tradições, mas, sobretudo, no que tange às terras que tradicionalmente ocupam. Todavia, com o aumento populacional e avanço tecnológico, o que resulta em grande devastação ambiental, o indígena depara-se com um problema central: a demarcação de suas terras. O presente trabalho visa expor, através de uma pesquisa doutrinária, legislativa e jurisprudencial, o processo de demarcação das terras indígenas e suas implicações sociais.
Quem me dera, ao menos uma vez
Como a mais bela tribo, dos mais belos índios
Não ser atacado por ser inocente.
(ÍNDIOS – Legião Urbana)
INTRODUÇÃO
Como bem consagrava o Alvará de 1° de abril de 1680, os índios são os primeiros e naturais senhores da terra, portanto, possuem o direito primário sobre esta, o qual é anterior a qualquer outro. Logo, os índios independem de um reconhecimento formal para terem direito sobre uma terra.
Analisando as Constituições brasileiras, nota-se que apenas a Constituição de 1934, fundamentada no Estado Social de Direito e com base na Constituição de Weimar de 1919, foi a que deu início na proteção constitucional aos índios, os quais eram denominados como silvícolas. Tal proteção foi mantida nos textos constitucionais seguintes, obtendo grande prospecção na Constituição Federal do Brasil de 1988, no qual os direitos indígenas foram sistematicamente enunciados.
A nossa Constituição Cidadã, como é chamada, adota o princípio supracitado, o qual reconhece os índios sendo senhores naturais da terra e, destinando o seu Título VII, Da Ordem Social, capítulo VIII, para tutela exclusiva dos direitos dos índios (abandonando-se a antiga denominação: silvícola), mostra considerável avanço em relação aos textos constitucionais anteriores.
O ordenamento jurídico brasileiro também recepciona a Lei infraconstitucional n° 6.001/73, que dispõe sobre o estatuto do índio, e está incumbida, mediante seu artigo 19, de ter a iniciativa e a condução do processo de demarcação de terras indígenas.
Além disso, outra proteção aos índios pode ser constatada até mesmo em Pactos Internacionais, como bem mostra o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos que foi adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966. Tal Pacto entrou em vigor, para o Brasil, em 1992, no qual o artigo 27 impede que minorias étnicas, religiosas ou linguísticas sejam privadas do direito de ter sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua.
Contudo, mesmo com tais garantias, o que se nota é que o maior problema enfrentado pelo indígena, atualmente, é no tocante ao reconhecimento às suas terras tradicionais e sua respectiva demarcação. Portanto, este artigo visa trazer uma noção sobre o processo de demarcação de terras e o posicionamento jurisprudencial, sobretudo do STF, chamado de “guardião da Constituição”.
CONCEITO DE ÍNDIO
Em busca de uma acepção rápida e direta para a palavra, De Plácito e Silva diz: “Índio é o nome dado ao habitante das terras americanas ao chegarem os descobridores/exploradores europeus.” (2012. p.734). Contudo, acredito que tal definição não expressa bem o significado da palavra.
O Índio seria aquele ser pertencente a uma comunidade indígena, sendo esta, segundo a Constituição da República Federativa do Brasil, um grupo local pertencente a um povo que se considera segmento distinto da sociedade nacional, por conta da consciência de sua continuidade histórica em sociedades pré-coloniais.
Sobre essa questão, o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro definiu o indígena como:
Aquela parcela da população brasileira que apresenta problemas de inadaptação à sociedade brasileira, motivados pela conservação de costumes, hábitos ou meras lealdades que a vinculam a uma tradição pré-colombiana. Ou, ainda mais amplamente: índio é todo o indivíduo reconhecido como membro por uma comunidade pré-colombiana que se identifica etnicamente diversa da nacional e é considerada indígena pela população brasileira com quem está em contato. (FUNAI, 2013)
Existem dois elementos que buscam uma definição sobre o conceito de índio: auto identificação e de hetero identificação, no qual o grupo precisa considerar-se como distinto da sociedade que os cerca e, da mesma forma, ser percebido pela sociedade envolvente como distintos.
A Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) que trata sobre povos indígenas e tribais, em seu artigo 1° traz um conceito normativo que vincula grande parte do ordenamento jurídico nacional, pois esta entrou em vigência em 2004.
Segundo o artigo 1°, da Parte I, da Política Geral, ipsis litteris:
Artigo I
1. A presente convenção aplica-se:
b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.
2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção. (Grifos nosso)
Destarte, percebe-se como uma consciência de sua identidade indígena é de suma importância, haja vista sendo exposta pela supracitada Convenção como sendo critério fundamental.
O PROCESSO DE DEMARCAÇÃO DE TERRAS
Por todo o exposto, apenas na definição do índio, percebe-se também o quão é de extrema importância o papel da terra. A terra dá identidade ao índio. Sendo assim, esta tem um valor de sobrevivência física e cultural.
Daniel Sarmento afirma que essas comunidades possuem a terra como importantíssimo meio para manter a união do grupo, permitindo, dessa forma, a sua continuidade ao longo do tempo, assim como a preservação da cultura, dos valores e de seu modo particular de vida dentro da comunidade1.
O Constituinte de 1988 buscou cercar de todas as formas esse direito fundamental dos índios e, para tanto, ex vi do artigo 231, declarou que os índios possuem direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, ipsis litteris:
São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. (Grifos nosso)
O processo de demarcação de terras, que se desenrola em vários momentos, é um processo administrativo que possui a iniciativa e orientação da FUNAI (órgão federal vinculado ao Ministério da Justiça, com fins de assistência ao índio). Para demarcação das terras, o momento inicial é o da chamada identificação, segundo o Decreto 1.775/96.
É nessa identificação que um grupo determinado busca o reconhecimento de sua presença histórica em determinada área e, ainda, o reconhecimento da identidade indígena. Após esse momento, a FUNAI, juntamente com grupo técnico de trabalho composto por técnicos do seu órgão - do INCRA e/ou da secretaria estadual de terras da localização do imóvel - farão estudos etnohistoriográficos, demográficos e sociológicos, além de levantamento cartográfico e fundiário da região onde se encontram, ou seja, são realizados estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais que fundamentam a delimitação da terra indígena.
Ciente dessas informações, a FUNAI elaborará propostas de criação da área indígena, no qual um grupo técnico, criado pela mesma, irá apresentar relatório apontando o que caracteriza a terra indígena a ser demarcada. Esses são os momentos de identificação e delimitação.
Se o presidente da FUNAI aprovar o relatório, então o mesmo será destinado à publicação, com o respectivo memorial e mapa da área.
Depois de publicado o relatório de identificação e delimitação da terra indígena, qualquer interessado, conforme os princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa, poderá ingressar, no prazo de 90 dias, contestações para a FUNAI, explicitando as razões pelas quais discorda das conclusões do grupo técnico ou pleitear indenizações que achar conveniente.
Vale ressaltar que o instrumento que contiver a manifestação deve conter documento probatório pertinente, assim sendo: títulos dominais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas.
Após apreciar as alegações de terceiros interessados, a FUNAI elaborará parecer e encaminhará a proposta de demarcação para o Ministro da Justiça. Se este aprovar os trabalhos apresentados, então, expede-se Portaria que declarará a área de demarcação indígena e a obrigação de demarcar com a colocação física de sinais de delimitação. É neste momento que a FUNAI deve proceder ao reassentamento dos ocupantes não índios.
Depois de tudo isso vem a chamada homologação, quando ocorre a ratificação formal do processo de demarcação e dos limites da área indígena pelo Presidente da República através de decreto.
Após a homologação, é feito então o registro (como propriedade da União), em livro próprio da Secretaria do Patrimônio e no cartório da comarca em que se localizar.
Por fim, é feito uma regularização fundiária, na qual a FUNAI irá averiguar a “desintrusão” da terra indígena da presença de ocupantes não índios, bem como solucionar possíveis pendências judiciais envolvendo títulos de propriedade incidentes sobre as áreas indígenas e ações possessórias por terceiros.
Sobre o tema, a Suprema Corte brasileira atenta para a seriedade, legitimidade e veracidade do processo administrativo de demarcação de terras, o qual, após homologação pelo Presidente da República, passa a se revestir de natureza declaratória e auto executoriedade.
Em correta posição, a mesma Corte destaca a garantia de direitos aos índios. Em seu julgado:
A Carta Política, com a outorga dominial atribuída à União, criou, para esta, uma propriedade vinculada ou reservada, que se destina a garantir aos índios o exercício dos direitos que lhes foram reconhecidos constitucionalmente (CF, art. 231, §§ 2º, 3º e 7º), visando, desse modo, a proporcionar às comunidades indígenas bem-estar e condições necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. A disputa pela posse permanente e pela riqueza das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios constitui o núcleo fundamental da questão indígena no Brasil.2
A mesma Corte ainda aduz que:
A tutela constitucional do grupo indígena, que visa a proteger, além da posse e usufruto das terras originariamente dos índios, a respectiva identidade cultural, se estende ao indivíduo que o compõe, quanto à remoção de suas terras, que é sempre ato de opção, de vontade própria, não podendo se apresentar como imposição, salvo hipóteses excepcionais [...] Donde a necessidade de adoção de cautelas tendentes a assegurar que não haja agressão aos seus usos, costumes e tradições.3
O estudo para sua demarcação, portanto, leva em conta todo o território utilizado pelo índio para sobreviver e para manter suas crenças, em respeito à Constituição Federal.
COMPETÊNCIA PARA DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS
Conforme bem preceitua o caput do artigo 231 da nossa Constituição Federal, compete à União demarcar as terras dos índios, protegê-las e fazer respeitar todos os seus bens. Esse fato é corroborado pelo artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a qual expressa que a União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.
Desse modo, percebe-se a competência da União para tal feitio, no qual deveria fazê-lo no prazo pré-determinado constitucionalmente, ou seja, com todo o zelo e rapidez necessários.
Vale ressaltar que o prazo previsto no artigo 67 da ADCT não é decadencial, tratando-se de prazo programático, e não peremptório, pois essa regra deve ser entendida como instrumento para se estimular a demarcação. Isso decorre, até mesmo, por que o parágrafo 4° do artigo 231 da CF/88 já assegura que as terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
Nesse sentido, o STF entendeu:
As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios incluem-se no domínio constitucional da União Federal. As áreas por elas abrangidas são inalienáveis, indisponíveis e insuscetíveis de prescrição aquisitiva. A Carta Política, com a outorga dominial atribuída à União, criou, para esta, uma propriedade vinculada ou reservada, que se destina a garantir aos índios o exercício dos direitos que lhes foram reconhecidos constitucionalmente (CF, art. 231, § 2º, § 3º e § 7º), visando, desse modo, a proporcionar às comunidades indígenas bem-estar e condições necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.” 4
Para demonstrar tal preocupação pelas terras indígenas, o Constituinte expressou no parágrafo 1° do art. 231 da CF/88 o seguinte:
São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. (Grifos nosso).
Seguindo tal dispositivo, o STF expressou o seguinte posicionamento:
Cabe à União demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios ( Caput do art. 231 da CF). Donde competir ao Presidente da República homologar tal demarcação administrativa. A manifestação do Conselho de Defesa Nacional não é requisito de validade da demarcação de terras indígenas, mesmo daquelas situadas em região de fronteira. Não há que se falar em supressão das garantias do contraditório e da ampla defesa se aos impetrantes foi dada a oportunidade de que trata o art. 9º do Decreto 1.775/1996. 5
Contudo, após o advento do decreto n° 1.775/96, as terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio (FUNAI), serão administrativamente demarcadas por este, segundo caput do art. 1° do supracitado decreto.
TÍTULOS IMOBILIÁRIOS OSTENTADOS PELOS PARTICULARES NÃO ÍNDIOS
A terra é uma questão central dos direitos constitucionais dos índios, por conta de todos os motivos aqui elencados: valor de sobrevivência física, cultural e etc. Logo, não se ampararão, segundo bem aponta José Afonso da Silva, seus direitos se não lhes assegurar a posse permanente e a riqueza das terras6.
Assim, por ser a terra o cerne da luta indígena, a sua declaração como sendo indígena acarreta impactos naqueles que não são índios e ali desenvolvem suas atividades. Para esses não índios, os imóveis foram adquiridos há muito tempo, devidamente escriturados e registrados, portanto, eles alegam que são os proprietários e possuidores da terra por direito.
Contudo, conforme bem preceitua o artigo 20 da nossa Lei Maior, tais terras são bens da União, nas precisas palavras de José Afonso da Silva:
O reconhecimento constitucional dessas terras ao domínio da União visa precisamente preservá-las e manter o vínculo que se acha embutido na norma, quando se fala que são bens da União as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, ou seja, cria-se aí uma propriedade vinculada ou propriedade reservada com o fim de garantir os direitos dos índios sobre ela. (2012. p. 858)
Sendo assim, essas terras são da União, vinculadas ao cumprimento dos direitos indígenas sobre elas, tendo a própria Constituição atribuído tais direitos como originários.
Em mais um preciso julgamento sobre o tema, o STF preceitua que:
12. DIREITOS "ORIGINÁRIOS". Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente "reconhecidos", e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de "originários", a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como "nulos e extintos" (§ 6º do art. 231 da CF). 7
O mesmo entendimento, sobre a prevalência dos direitos originários dos índios, teve o STJ, quando aduz:
3. A demarcação das terras pertencentes tradicionalmente aos índios não representa violação de direitos fundamentais dos atuais proprietários particulares dos imóveis. Pelo contrário, significa o devido cumprimento de disposições constitucionais e legais em favor dos antigos ocupantes das terras (CF/88, art. 231 e seguintes; Lei 6.001/73 e Decreto 1.775/96). 8
Ainda sobre o caráter originário dos direito às terras de ocupação tradicional, no caso Raposa Serra do Sol, o Min. Ayres de Brito afirmou: “O termo “originários” a traduzir uma situação jurídico subjetiva mais antiga do que qualquer outra, de maneira a preponderar sobre eventuais escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios.” Continua dizendo, in verbis: “O direito por continuidade histórica prevalece, conforme dito, até mesmo sobre o direito adquirido por título cartorário ou concessão estatal 9”.
Portanto, esse direito sobrepõe-se sobre pretensos direitos adquiridos por escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse, pois são direitos originários e, como o próprio nome alude, são mais antigos que qualquer outro.
Essas escrituras e títulos em favor de não índios, mediante uma interpretação sistemática do parágrafo 6° do artigo 231 da aludida Constituição, dispõe que são nulos e extintos, pois não produzirão efeitos jurídicos os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção do direito a indenização ou ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
Logo, procedida à demarcação e comprovado que os imóveis dos autores situam-se em terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, não tem os registros imobiliários nenhum efeito jurídico.