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Embriaguez, trabalho e o uso judicial da noção de dignidade humana

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11/05/2014 às 13:40
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2. Dignidade Humana - a trajetória histórica. Ou: os homens sempre tiveram valor intrínseco?

Hanna Arendt já escreveu que “o mundo moderno em que vivemos surgiu com as primeiras explosões atômicas” (ARENDT, 2000, p. 14). O mesmo pode-se dizer sobre a onipresença da noção de dignidade humana no Direito. Com o final da Segunda Guerra Mundial e seus traumas, essa concepção surge com força não apenas em uma miríade de documentos da Organização das Nações Unidas (sendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos o mais famoso), como nas cerca de 40 Constituições Nacionais promulgadas desde então. É também mencionada em legislações que vão da biotecnologia ao direito do trabalho e direito internacional; em discursos políticos os mais variados e, recentemente, em decisões judiciais produzidas em países díspares como Estados Unidos, África do Sul, Austrália e Brasil.

O quase total silêncio do Direito em relação à ideia de dignidade humana antes da Segunda Guerra Mundial (e até o surgimento da ONU e seus documentos fundadores) é algo a ser explicado. Mas pode-se dizer que o modo eloquente como essa noção tem sido suscitada desde então deve-se, em grande parte, ao choque da descoberta dos campos de concentração e o morticínio e assassínio racionalizado e “industrial” que ocorreram naqueles locais (HOBSBAWM, 1995).

De todo modo, anteriormente à Segunda Grande Guerra, pelo menos fora do Direito, existia a concepção de que todo homem tem dignidade em si? A noção de dignidade humana como um valor universal, intrínseco a todos os homens, capaz de colocar a todos em pé de igualdade, tem mesmo apenas setenta anos ou sempre esteve presente no mundo das ideias das sociedades Ocidentais (e até fora do Ocidente)? E, mais importante, a dignidade humana sempre foi um fundamento moral que autoriza qualquer ser humano a exigir certos direitos?

Se fizermos essas perguntas à história, as respostas poderão ser negativas. Claro, haverá estudiosos que dirão que o entendimento de que “'a humanidadepossui uma profunda dignidade não é uma prerrogativa moderna'” e que essa noção, inclusive, aparece “em várias culturas ao redor do mundo, Leste e Oeste, e em textos teológicos do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo” (MISZTAL, 2013, p. 102).

Para esses autores, a ideia contemporânea de dignidade humana, sem dúvida uma das ideias centrais pelo menos das sociedades ocidentais nos últimos setenta anos, tem raízes históricas bastante longas.

Contudo, para muitos historiadores, as raízes não são tão longas assim: a noção de dignidade humana que temos hoje é muito diversa daquela apreendida nos documentos do Mundo Antigo, da Idade Média, do início do período Moderno e talvez mesmo em muitos documentos do século que viu nascer os direitos humanos - o século XVIII5.

Como explica Oliver Sensen (SENSEN, 2011), pode-se falar, seguramente, em pelo menos uma noção tradicional (e historicamente persistente) de dignidade humana, bem diferente da noção contemporânea de dignidade humana.

A noção contemporânea de dignidade, como já aventado, pode ser resumida como a ideia segundo a qual cada pessoa é detentora de um valor inerente e irredutível, conferido a ela por sua própria natureza humana e capaz de fundamentar a exigência de certos direitos.

A noção tradicional de dignidade humana relaciona-se à ideia antiga de dignitas. Na Roma Antiga, a dignitas não era atribuída a todos os homens. Era antes um termo aristocrático, utilizado para distinguir, para expressar “a posição elevada da classe governante” (SENSEN, 2011, p. 75). Sendo assim, a dignitas “era aplicável a poucos, por exemplo, a um cônsul ou senador” (SENSEN, 2011, pp. 75/76).

A noção romana de dignitas, na esteira do que escreve o filósofo Oliver Sensen, é bastante complexa. Ela abrange ideias de classe, de posição social elevada e também de estima, valor ou excelência (ainda que a excelência, estima ou valor não sejam tão importantes quanto à ideia mesma de posição elevada):

No Império Romano tardio, existia a notitia dignitatum, uma lista classificando os mais altos cargos oficiais no império. Ter dignidade, nesse sentido, não pressupunha excelência ou alta estima. Era necessário apenas que se possuísse o cargo, que era concedido pelo imperador. O componente essencial era que dignidade expressava uma relação, uma posição elevada de algo sobre outra coisa. (SENSEN, 2011, p. 76 - grifei).

Assim, a noção romana de dignidade implica que esse valor poderia muito bem ser perdido ou ser ganho, “por mérito, nascimento ou riqueza” (SENSEN, 2011, p. 76). Ou seja, a noção romana diferencia-se da noção contemporânea, porque a dignidade, então, não era democrática, muito menos intrínseca ou não-relacional, como a entendemos hoje. Ela era um valor, aristocrático e relacional, pois expressava o sentido de algo (ou alguém) elevando-se sobre outra coisa (ou outros).

Cícero é que seria o encarregado de 'democratizar' a noção romana de dignitas, na medida em que a utilizou para “expressar a ideia de um lugar elevado para os seres humanos no universo” (SENSEN, 2011, p. 76). Mas isso não ‘aproximou’ tanto a noção antiga de dignidade da noção contemporânea, como se poderia esperar. É que ao perceber todos os homens (e não apenas alguns homens) dotados de dignidade, colocando-os a todos em posição mais elevada que os animais, Cícero afirma também que “'viver uma vida de prazer é algo indigno da posição elevada que os seres humanos ocupam. Nossa superioridade e elevada posição demandam uma vida na qual nossos desejos mais baixos devem ser governados de acordo com a razão'” (Cícero apud SENSEN, 2011, p. 77).

A implicação dessas conclusões de Cícero é que no sentido tradicional, embora todos os homens pudessem, a princípio, ser dignos (pois, comparados a outros animais, são todos dotados de razão), a dignidade, então, não era um valor intrínseco, capaz de fundamentar a exigência de certos direitos. Pelo contrário, a dignidade que possuíam era fundamento de deveres e poderia ser perdida.

Observe-se, novamente, que na noção contemporânea, a dignidade humana implica a propriedade de um valor intrínseco e não relacional, fundamento de direitos. Em Cícero, transparece a noção tradicional de dignidade humana: ela é relacional (o homem é digno, pois está em uma posição superior se comparado a outros animais) e ela é fundamento de deveres (os homens devem se esforçar para se manter em um certo nível, devem permanecer acima dos brutos).

Ou seja, na noção de Cícero, os homens possuem um valor especial, pois detêm uma certa capacidade, no caso a razão. Mas estar elevado ou ser digno, nessa concepção, implica “o dever de se comportar de uma certa maneira, que faça jus a essa dignidade” (SENSEN, 2010, p. 78).

Também J. Habermas percebe, na história da noção de dignidade humana, uma “modificação de perspectiva entre deveres morais e reivindicações legais”, afirmando mesmo que os “direitos subjetivos, ao invés dos deveres, constituem o ponto inicial da construção dos sistemas legais modernos” (HABERMAS, 2010, p. 471). Essa construção ele percebe concomitante a outro processo: “a generalização paradoxal do conceito de dignidade que, originalmente, não estava equipado para qualquer distribuição igualitária de dignidade, mas para diferenciações de status” (HABERMAS, 2010, p. 471).

Em seu interessante estudo, Oliver Sensen nota essas características da noção tradicional de dignidade (ela é relacional e gera deveres que devem ser cumpridos para sua própria manutenção) não apenas na obra de Cícero, mas, com algumas nuances, nas obras de pensadores como Papa Leão I (nesse caso, a alma – e não a razão – é que nos eleva acima dos demais animais, conferindo-nos dignidade) e Pico della Mirandola (a dignidade está na capacidade do homem de escolher o lugar em que deseja estar na ordem universal: mais próximo de Deus ou mais próximo dos animais mais baixos).

Poderíamos ainda adicionar à lista de Sensen dois outros pensadores cristãos: Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Para Agostinho, a dignidade do homem localiza-se em sua alma trina, composta de memória, intelecto e vontade. Mas “até o intelecto e a vontade poderiam ser bons ou ruins, dependendo do modo como fossem exercidos; bons, se direcionados à Divindade, e maus caso não fossem” (LEWIS, 2007, p. 94).

Tomás de Aquino, diferentemente de Leão I e Agostinho, localiza a dignidade humana na natureza. Para ele o ser humano é naturalmente livre. Mas sua dignidade “é perdida quando um pecado é cometido. O ser humano racional então assume o status de uma besta não racional” (LEWIS, 2007, p. 94).

A despeito das disparidades entre os pensadores citados, podemos ver em todos eles, de alguma maneira, a noção de dignidade humana mais relacionada a deveres e a exigências de autoaperfeiçoamento do que como fundamento de direitos.

No que diz respeito a Immanuel Kant, Sensen ainda vê sua noção de dignidade humana como geradora mais de deveres do que de direitos, sendo o Imperativo Categórico a premissa normativa que se pode perceber no lugar “da concepção teleológica da natureza que Cícero emprega” (SENSEN, 2011, p. 83). Nesse sentido, o autor destoa de muitos estudiosos do conceito de dignidade humana, que apontam Immanuel Kant como o pensador que justamente rompe com a noção tradicional e começa a construir a noção contemporânea de dignidade humana.

Habermas, por exemplo, afirma que, embora “o conceito de dignidade humana não tenha adquirido nenhuma importância sistemática em Kant” (HABERMAS, 2010, p. 474), em sua obra os “direitos humanos derivam seu conteúdo moral (…) de uma concepção de dignidade humana universalista e individualista” (HABERMAS, p. 475).

De todo modo, o que importa aqui é deixar claro que existem, historicamente, ao menos duas noções de dignidade humana: a contemporânea, vastamente exteriorizada em inúmeros documentos da ONU e em legislações do mundo inteiro, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial, e a tradicional - que remonta à dignitas romana.

Admitir a existência dessas duas concepções não significa, contudo, como conclui Oliver Sense, que a noção contemporânea de dignidade humana “não tem o suporte de uma longa história”, pois, segundo ele, essa teria no máximo, 60 a 70 anos, ou seja, historicamente apenas nasce com o fim da Segunda Guerra Mundial, com a descoberta dos campos de concentração e com o nascimento da ONU (SENSEN, 2011, p. 85).

De fato, como já se aventou, é apenas a partir do fim da Segunda Guerra que a noção de dignidade passa a ser “moeda corrente” no Direito e a estar presente nas Constituições e sistemas legais de dezenas de países. Contudo, pensamos aqui, junto com J. Habermas, que a noção contemporânea de dignidade humana tem uma história um pouco mais longa do que defende Sensen, podendo ser estendida até pelo menos à filosofia de Kant e ao século XVIII (não coincidentemente, o século que viu nascer a Declaração dos direitos do homem e do cidadão).

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Habermas, aliás, admite a prevalência do conceito de dignidade humana nos textos legais da segunda metade do século XX, mas aponta exceções anteriores, como um artigo da Constituição Alemã de março de 1849 (artigo 139) que, justificando a abolição da pena de morte e das punições corporais, afirma que “'Um povo livre deve respeitar a dignidade humana, mesmo no caso de um criminoso'” (HABERMAS, 2010, p. 466). Também cita a Constituição da República de Weimer, de 1919, que, em seu artigo 151, “fala em 'alcançar uma vida digna para todos'”, acrescentando que, nesse caso, “o conceito de dignidade humana permanece encoberto pelo uso adjetivo de uma expressão coloquial” (HABERMAS, 2010, p. 468).

Ademais, fora dos textos legais, o tema da dignidade humana (em sua concepção moderna) é suscitado nas obras de vários escritores e pensadores dos séculos XVIII e XIX. Mary Wollstonecraft, por exemplo, o utiliza para reivindicar direitos para as mulheres; F. Lassalle, em uma de suas obras, chegou a argumentar que “'o Estado deveria assegurar que os trabalhadores (…) vivessem vidas realmente dignas'” (LASSALLE apud MISZTAL, 2012, p. 102). Subjacente ao movimento abolicionista que se espalhou por diversos países escravocratas no século XIX sem dúvida estava o tema da dignidade humana, ainda que nem sempre explicitado.

Além dessa primeira crítica ao texto de Sensen, que diz respeito à antiguidade do conceito contemporâneo de dignidade humana (achamos que suas raízes vão até pelo menos as revoluções liberais do século XVIII), pode-se também fazer uma outra: em sua visão, o nascimento da noção contemporânea dá-se sem maiores ligações com a noção tradicional de dignidade humana. É como se não houvesse continuidade alguma entre as duas concepções, quase como se tivessem existências completamente independentes.

Para começar, as ideias em geral nascem de outras ideias, seja como continuidade ou como ruptura. Nesse sentido, há que se lembrar que as duas noções dotam o homem de um valor especial, embora com implicações diversas.

Mas isso será discutido posteriormente. Por agora, resta salientar que há autores que divergem ainda mais de Oliver Sensen, pois defendem que a noção de dignidade humana atual remonta até mesmo aos primórdios do Judaísmo e do Cristianismo(MISZTAL, 2012).

Essa visão de uma história extremamente longa do conceito, por sua vez, padece de certa monotonia, o que é algo incomum quando se lida com história das ideias. Não leva em conta que diferentes épocas tendem a entender de diferentes modos certos conceitos. Não leva em consideração, inclusive, a existência de religiões e tradições de pensamento que simplesmente desprezaram a noção de dignidade humana.

Mas, por outro lado, como não notar uma certa concepção de dignidade humana fundamentando, por exemplo, a Regra de Ouro enunciada tanto por Cristo quanto presente no Talmude? Contudo, nesses casos, a noção de dignidade humana parece mais com a tradicional: o homem tem um valor especial que lhe confere deveres e a obrigação de se autoaperfeiçoar. Faça aos outros o que gostaria que fizessem a você implica dever e autoaperfeiçoamento, mais do que direitos.

Ademais, se para o pensamento cristão o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, lembremos que, de acordo com Tomás de Aquino, sua dignidade sempre pode ser perdida em razão do pecado.

Dessa forma, não se entende aqui, por exemplo, que a Bíblia seja fundamento direto para a noção contemporânea de dignidade, pois ali há inclusive uma visão bastante pessimista da natureza humana. A Bíblia diz mais sobre a redenção do homem do que sobre sua dignidade.

A ideia de dignidade humana, em resumo, teve variações ao longo da história e, na esteira do que escreveu Oliver Sensen, pode-se falar ao menos de uma concepção tradicional e de uma noção contemporânea. No entanto, como já aventado, a concepção contemporânea não tem raízes tão curtas como quer o autor norte-americano, pois remonta até pelo menos o século XVIII.

Ademais, acredita-se que as duas noções de dignidade humana, historicamente, conviveram e ainda convivem, ao menos desde o século XVIII, no universo das ideias, havendo rupturas, mas também continuidades entre elas. Ainda que em um longo período uma tenha preponderado e, nos últimos setenta anos, outra prepondere, talvez seja impossível explicar o surgimento da ideia atual sem se reportar à noção tradicional de dignidade humana, que, afinal, também dotou os homens de um valor especial - ainda que sem lhes conferir as prerrogativas que hoje acreditamos que eles detêm.

2.1. Do conceito de honra ao conceito de dignidade humana

A história do conceito de dignidade humana pode ser vista também como a história do declínio da noção de honra.

O mérito dessa perspectiva é apontar não apenas as rupturas entre uma noção e outra - noção tradicional de dignidade (ou honra) e noção contemporânea de dignidade -, mas também as continuidades entre uma e outra concepção.

Além disso, tal perspectiva evidencia melhor o processo mesmo que levou ao engendramento da ideia atual de dignidade humana.

A honra é uma espécie de valor, uma “dignidade conferida pela observância de certos princípios socialmente estipulados” (HOUAISS, 2009). Ou seja, de forma análoga à noção tradicional de dignidade humana, o conceito de honra traz em seu bojo a ideia de cumprimento de deveres (observação de princípios) que têm um fundamento social (os princípios são socialmente estipulados).

Para Julian Pitt-Rivers, citado por Thereza Cristina Gosdal, honra “‘é o valor que uma pessoa tem a seus próprios olhos, mas também aos olhos da sociedade. É a sua apreciação do quanto vale, da sua pretensão a orgulho, mas é também o reconhecimento dessa pretensão, a admissão pela sociedade da sua excelência, do seu direito ao orgulho’” (PITT-RIVERS apud GOSDAL, 2006, p. 154 - grifei).

Segundo o sociólogo Peter Berger, a honra é um conceito aristocrático ou ao menos “associado com uma ordem hierárquica de sociedade”. As noções ocidentais de honra são antigas, mas foram fortalecidas, sobretudo, pelos “códigos medievais de cavalheirismo, enraizados nas estruturas sociais do feudalismo” (BERGER, 1983, p. 174). Tais noções sobrevivem até hoje, principalmente em grupos que têm uma visão “hierárquica da sociedade, como a nobreza, os militares” e mesmo em certas profissões,como aquelas relacionadas ao Direito e à Medicina. Em tais grupos, “honra é uma expressão direta de status, uma fonte de solidariedade entre iguais e uma linha de demarcação contra os inferiores” (BERGER, 1983, p. 174).

Em sociedade hierarquicamente ordenada, como a feudal, a etiqueta da vida cotidiana consiste “em transações contínuas de honra, de acordo com o princípio do 'A cada um segundo seu merecimento'” (BERGER, 1983, p. 174). Ainda de acordo com o estudioso, aqueles que detêm um alto...

… status na comunidade, têm obrigações particulares de honra, mas mesmo os que se encontram em posição mais baixa são diferenciados em termos de honra e desonra. Em geral, os homens devem exibir virilidade e as mulheres, recato e vergonha (...).

No mais, a honra provê a ligação, não apenas do self com a comunidade, mas entre o self e normas idealizadas pela comunidade. A honra, considerada como a posse, por homens e mulheres, de certas qualidades, é a tentativa de relacionar a existência a certos padrões arquetípicos de comportamento. (BERGER, 1983, p. 174 - grifei)

Além disso, em um mundo de honra, “o indivíduo é o símbolo social que está em seu brasão. O verdadeiro self do cavaleiro é revelado enquanto ele corre para a batalha”. Nesse mundo, “o homem nu em uma cama com uma mulher representa uma realidade menor do self”. (BERGER, 1983, p. 177).

Por outro lado, em um mundo de dignidade, “o brasão esconde o verdadeiro self. É precisamente o homem nu (…), expressando sua sexualidade, que representa a si de modo mais verdadeiro” (BERGER, 1983, p. 177).

Em outras palavras (e ainda de acordo com o autor), o conceito de honra implica que a identidade está essencialmente ligada aos papéis institucionais: no mundo da honra “o indivíduo descobre sua verdadeira identidade nos seus papéis e afastar-se de seus papéis é afastar-se de si mesmo” (BERGER, 1983, p. 177). O moderno conceito de dignidade, por contraste, implica que a identidade é “essencialmente independente dos papéis institucionais” (BERGER, 1983, p. 177).

No mundo da honra, portanto, homens e mulheres “têm obrigações particulares” e suas identidades “estruturam-se com base nos papéis institucionais que desempenham” e que a sociedade lhes confere. No mundo da dignidade, o “homem deve emancipar-se dos papéis socialmente impostos” para descobrir a dignidade intrínseca de sua “verdadeira identidade” (BERGER, 1986, p. 177). As instituições, por sua vez, são vistas como “fluidas e não confiáveis” (BERGER, 1983, p. 178).

No Ocidente, segundo Berger, é válido ver esse tipo de cultura (a cultura da honra) como “essencialmente pré-moderna”. Mas, pensa-se aqui, há permanências dessa cultura até hoje - não apenas as permanências concretas que o autor sugere (citadas acima), mas outras que, se não se relacionam mais à construção da própria identidade do indivíduo, concernem ao menos à esfera mais superficial dos comportamentos. Por exemplo, as exigências de autocontrole e de disciplina no mundo do trabalho talvez sejam permanências da cultura da honra, não se devem apenas a fenômenos históricos mais recentes, como o fordismo.

Mas intui-se aqui que mesmo em um nível individual, psicológico, essas duas noções talvez estejam presentes na vida do homem contemporâneo - que ora pode retirar algum amor próprio da noção de que, afinal, é um ser humano e merece consideração mínima como todos os outros; ora pode se defrontar com a dura realidade de seus limites, oriundos de sua posição no mundo.

Podemos, ainda, localizar algumas permanências da noção de honra – ou ao menos uma espécie de nostalgia em relação a ela - no campo do imaginário coletivo. Essa nostalgia em relação a um mundo há muito findo é incontavelmente expressa pelo cinema, pela literatura, por títulos de videogame, pelos quadrinhos e outras formas de expressão.

Mas além dessas permanências, como o próprio Berger lembra, existem as “constantes antropológicas”: o homem moderno “não é uma inovação total ou uma mutação da espécie. Por isso ele compartilha, com qualquer versão arcaica sua, tanto a sociabilidade intrínseca, quanto os processos recíprocos pelos quais suas várias identidades são formadas” (BERGER, 1983, pp. 177/178).

Feitas essas considerações acerca das continuidades entre uma e outra noção, há que se dizer que o mundo da honra começa a entrar em lento declínio no século XV, processo que se acelera a partir do século XVIII.

Há inúmeros fatores ‘materiais’ que acompanharam essa decadência e que, aliás, comumente são citados por estudiosos como explicadores gerais do fim das sociedades atomizadas pré-industriais no Ocidente: esvaziamento do campo, advento da “tecnologia e industrialização, crescimento da urbanização, crescimento populacional sem precedentes, aumento da burocracia, o vasto aumento nas comunicações entre vários grupos humanos, mobilidade social, pluralização dos mundos sociais”... (BERGER, 1983, p. 178).

Esse enfraquecimento da noção de honra, contudo, por certo que se deu em várias etapas, pelo que o declínio dos códigos medievais não levou diretamente à situação atual, em que a noção de honra, de acordo com Berger, é inexistente6 (ou quase marginal).

Houve, por exemplo, o período, em fins do século XVIII, de 'aburguesamento' da ideia de honra e depois, sim, o lento processo pelo qual ela foi saindo do centro do palco. Ou, alternativamente, o lento processo pelo qual o conceito de dignidade humana atribuiu “um status de nobre ao homem comum” (WALDRON apud WHITE, 2011, p. 8).

De todo modo, um personagem simbólico do declínio do mundo da honra, ainda no início desse processo, seria, segundo Berger, o Falstaff de Shakespeare (dramaturgo que, não por acaso, foi considerado o “inventor do humano” por Harold Bloom). O catecismo de Falstaff expressa a ideia de que a “honra é um mero brasão”. É a consciência moderna que desmascara, que “'desencanta' (…) até mostrar a honra como nada além de um artefato pintado”. Por trás da honra “há a face de um homem moderno – um homem sem a consolação de protótipos – o homem sozinho” (BERGER, 1983, p. 175).

Pode-se dizer que Hanna Arendt também alude a esse processo de ensimesmamento do homem ao falar da vitória do animal laborans na contemporaneidade: nela o homem foi “lançado à interioridade fechada da introspecção, na qual suas mais elevadas experiências são os processos vazios do cálculo da mente, o jogo da mente consigo mesma” (ARENDT, 2000, p. 334).

De todo modo, é importante “entender que é precisamente esse self solitário que a consciência moderna percebe como dotado de dignidade humana” (BERGER, pp. 175/176). Ou seja, a desintegração da noção de honra deu-se concomitante à compreensão cada vez maior de que, sob o peso dos papéis e deveres sociais, há o homem e sua humanidade e sua solidão.

Foi saindo do mundo da honra que os homens foram capazes de atribuir dignidade a sua própria humanidade – e não apenas ao exercício de algum papel ou dever social. Talvez essa atribuição os tenha levado a acreditar na existência de certos direitos, cuja proteção preserva tal dignidade (provavelmente mais frágil e fugidia, pensa-se aqui, justamente porque despossuída daquela base social que fundamenta a honra).

Dessa forma, do que até agora visto, percebe-se que a honra (ou a noção tradicional de dignidade humana) possui fundamento social (está relacionada ao cumprimento de certos papéis sociais), implica o cumprimento de certos deveres e é relacional (pois eleva aquele que a possui em relação aos demais).

Já a noção de dignidade humana contemporânea não possui fundamento social (o homem é digno em virtude de sua própria humanidade); dá ao homem certas prerrogativas e é não relacional (todos os homens, afinal, possuem dignidade).

Luiz R. Cardoso de Oliveira afirma que...

... a honra do período anterior se transformou em dignidade na modernidade. Não estava mais ligada à vinculação do indivíduo a um determinado grupo ou classe, como ocorria, por exemplo, com os cavaleiros, os nobres e o clero na Idade Média, mas à atividade laboral do homem. A dignidade passou a compreender condições mínimas de existência, o que importa o acesso a bens e serviços e a possibilidade de ser proprietário pelo menos de sua força de trabalho, que é ‘livremente vendida’ no mercado. Dentro do contexto de formação do pensamento moderno e do capitalismo, no qual se insere também o desenvolvimento dos direitos humanos em geral e do reconhecimento da dignidade da pessoa humana, necessário ainda tratar do papel das grandes revoluções ocorridas no século XVIII. (CARDOSO apud GOSDAL, Thereza Cristina, 2006 p. 65 - grifei)

Os primeiros documentos estabelecendo direitos humanos, no século XVIII7, foram influenciados pela doutrina jusnaturalista, segundo a qual os homens detêm prerrogativas anteriores ao surgimento do próprio Estado (liberdade, propriedade, direito de lutar contra a humilhação e a opressão, etc.).

Mas, como defende J. Habermas, tais documentos também já estavam moralmente carregados pela ideia (contemporânea) de dignidade humana. Assim escreve o filósofo alemão:

…  há um admirável deslocamento temporal entre a história dos direitos humanos, que remontam ao século dezessete, e ao uso relativamente recente do conceito de dignidade humana nas codificações nacionais e internacionais de Direito e na administração da justiça, na segunda metade do século passado.

…   Eu gostaria de defender a tese de que uma íntima, ainda que inicialmente apenas implícita, conexão conceitual já existia desde o início. Nossa intuição nos diz, de qualquer forma, que os direitos humanos sempre foram o produto da resistência ao despotismo, à opressão e à humilhação. Hoje, ninguém pode proferir esses veneráveis artigos – por exemplo, a proposição de que 'Ninguém será sujeito à tortura ou a punição ou tratamento cruel, desumano ou degradante' (Artigo 5 da Declaração Universal) – sem ouvir os ecos do clamor de incontáveis criaturas humanas torturadas e assassinadas que ressoam neles. O apelo dos direitos humanos alimenta-se do insulto dos humilhados ante a violação de sua dignidade humana. Se é isso que forma o ponto inicial histórico, traços de uma conexão conceitual entre dignidade humana e direitos humanos deveriam ser evidentes desde o início do desenvolvimento da lei em si (HABERMAS, 2010, p. 466 - grifei)

Para Habermas, é importante a conexão entre a ideia de dignidade humana e de direitos humanos, pois, de outra forma, esses últimos poderiam ser entendidos por meio de concepções meramente políticas, que acabariam por retirar deles sua carga moral. Ou seja, sem a noção de dignidade humana, sem essa carga moral, os direitos humanos deixam de ser direitos “que cada pessoa deve possuir em função mesmo de sua natureza humana” (HABERMAS, 2010, p. 478).

A esse respeito, o filósofo alemão ainda escreve o seguinte:

O investimento da lei com uma carga moral é um legado das revoluções constitucionais do século dezoito. Neutralizar essas tensões seria abandonar o entendimento dinâmico que faz dos cidadãos, das nossas próprias e quase liberais sociedades, abertos a uma compreensão ainda mais exaustiva dos direitos existentes e do perigo sempre presente de sua erosão (HABERMAS, 2010, p. 479 - grifei).

Dessa maneira, como se viu, o declínio do mundo da honra (ou o enfraquecimento da noção tradicional de dignidade humana) trouxe-nos, em sua esteira, o entendimento, fixado de vez no universo jurídico e político após o fim da Segunda Guerra Mundial, de que todo homem tem um valor intrínseco e irredutível – valor que é também fundamento moral de certos direitos.

Não se acredita com isso, por óbvio, que os homens e as mulheres de três séculos atrás fossem incapazes de sentimentos de injustiça. Certamente sofriam quando uma grande humilhação se abatia sobre eles. Entretanto, é muito provável que não pensavam deter a prerrogativa de não serem humilhados em virtude de sua dignidade intrínseca – ideia que é tributária das revoluções liberais do século XVIII.

A desintegração do mundo da honra trouxe consigo um ganho fundamental, que foi o engendramento da noção de dignidade humana.

Mas é pertinente lembrar que também trouxe certas perdas. Sobre essa questão – e para finalizar a presente discussão - é interessante citar, mais uma vez, o sociólogo Peter Berger:

… Nós afirmaríamos aqui que as duas perspectivas – a liberação mítica da 'esquerda' e a nostalgia da 'direita' por um mundo intacto – não fazem jus às dimensões antropológicas e na verdade éticas do problema.

Parece-nos claro que o entusiasmo sem restrição pela liberação total da 'repressão' das instituições é falha, pois não leva em consideração certas necessidades fundamentais do homem, notavelmente aquelas relacionadas à ordem – aquela ordem institucional da sociedade sem a qual tanto as coletividades, quanto os indivíduos, podem decair a um caos desumanizador. Em outras palavras, o desaparecimento da honra deu-se com um alto custo a ser pago por qualquer que sejam as liberdades que o homem moderno tenha alcançado.

Por outro lado, a denúncia da constelação contemporânea de instituições e de identidades falha ao não perceber os vastos ganhos morais tornados possíveis exatamente pela existência dessa constelação – sobretudo a descoberta do indivíduo autônomo, cuja dignidade deriva de seu próprio ser e que está além e acima de qualquer identificação social. Qualquer um que denuncie o mundo moderno tout court deveria fazer uma pausa e questionar se quer incluir nessa denúncia as descobertas modernas da dignidade e dos direitos humanos.

A convicção de que até os membros mais fracos da sociedade têm direito inerente à proteção e dignidade; o banimento da escravidão em todas as suas formas e a proibição à opressão racial e étnica; a desconcertante descoberta da dignidade e dos direitos da criança; o surgimento de novas sensibilidades contra a crueldade, desde a repulsa à tortura até a codificação dos crimes de genocídio (…); o reconhecimento novo da responsabilidade do indivíduo por todos os seus atos, mesmo aqueles que lhe são exigidos em virtude de certos papéis institucionais – um reconhecimento que obteve a força da lei em Nuremberg; todos esses – e outros – são ganhos morais que seriam impensáveis sem as constelações peculiares do mundo moderno.

(...)

É permitido, contudo, especular se a redescoberta da honra, em um futuro desenvolvimento da sociedade moderna, é empiricamente plausível e moralmente desejável. Desnecessário dizer que dificilmente tal redescobrimento tomaria a forma de um regresso aos códigos tradicionais. Mas o humor contemporâneo anti-institucionalista dificilmente durará, como Anton Zijderveld afirma. A constituição fundamental do homem é tal que ele inevitavelmente construirá, novamente, instituições que possam lhe oferecer uma realidade ordenada. Um retorno às instituições será, ipso facto, um retorno à honra. (…). A questão ética, claro, é como serão essas instituições. Especificamente, o teste ético de quaisquer futuras instituições, e dos códigos de honra a elas vinculadas, consistirá no sucesso que elas terão em incorporar e estabilizar as descobertas da dignidade humana, uma das principais façanhas do homem moderno (BERGER, 1983, pp. 180/181).

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Sobre a autora
Raquel Veras Franco

Pós-Graduada em Direito do Trabalho do Centro Universitário Instituto de Educação Superior de Brasília

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRANCO, Raquel Veras. Embriaguez, trabalho e o uso judicial da noção de dignidade humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3966, 11 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28178. Acesso em: 23 abr. 2024.

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