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A equalização fiscal

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4. A REPARTIÇAO DE RECEITA ENTRE OS ENTES FEDERATIVOS

A Constituição de 1988 consagrou um modelo fiscal e tributário de partilha de receitas no qual os estados e municípios recebem transferências federais e são autônomos para gerir suas finanças. A participação dos entes subnacionais na repartição de receita pode ocorrer de forma direta ou indireta, ou seja, ou o ente possui direito a um determinado montante arrecadado, ou a arrecadação de receita é direcionada para um fundo, e deste serão retiradas as parcelas devidas a cada ente. Deste modo, uma pessoa política da federação participa do produto da arrecadação de outra.

As transferências brasileiras intergovernamentais são divididas em três categorias: a) devolução tributária, b) transferências redistributivas e c) transferências voluntárias ou discricionárias. As duas primeiras são classificadas como transferências legais ou constitucionais, e são operacionalizadas de acordo com o aporte de recursos, sem necessidade de manifestação de autoridades. Como devolução tributária se compreende a transferência resultante da arrecadação de pessoa política de nível superior, que poderia ser realizado pelo governo local, ou seja, há a destinação do valor arrecadado por determinada unidade que detém a capacidade de instituir o tributo.24

As transferências redistributivas proporcionam aos governos subnacionais recursos que não guardam relação com as bases tributárias de sua competência. Dentre as principais transferências redistributivas do Brasil destaca-se o Fundo de Participação dos Estados – FPE25, o Fundo de Participação dos Municípios – FPM26, o Sistema Cota-Parte do ICMS, o Sistema Único de Saúde – SUS27, e o Fundef.2829

A terceira espécie de transferência são as chamadas discricionárias ou por fluxos voluntários. Estas ocorrem quando as transferências de recursos de uma unidade para a outra depende de decisões administrativas. Resultam, portanto, de negociações políticas dos governos subnacionais com o governo central, que decidem os montantes de recursos a serem transferidos.30

O mecanismo de transferências foi instituído no Brasil visando:

- Elevar o nível de oferta em setores nos quais existia interesse de complementar as ações do Governo federal com as dos governos subnacionais (tais como estradas de rodagem, energia elétrica, educação e saúde); e

-A estabilização macroeconômica e o equacionamento dos problemas fiscais em nível federal e subnacional fazem parte de um processo que deverá evoluir de forma paralela – mas não necessariamente no mesmo tempo e nos mesmos prazos – à reforma do sistema tributário.31

Na participação dos Estados e Distrito Federal, de forma direta, no produto da arrecadação de impostos federais, os entes subnacionais têm direito ao imposto de renda federal que é arrecadado na fonte sobre os vencimentos e proventos dos seus servidores da administração direta, autarquias e fundações, além do imposto de renda arrecadado na fonte sobre os rendimentos pagos, a qualquer título, pelo estado.

Aos municípios é devido o imposto de renda retido na fonte, nos mesmos moldes previstos para o estado; 50% (cinqüenta por cento) do IPVA estadual, referente aos veículos licenciados em seu território; 50% (cinqüenta por cento) do ITR federal, referente aos imóveis rurais inseridos em seu território; 25% (vinte e cinco por cento) do ICMS estadual arrecadados em sua área territorial, conforme lei emanada pelo estado, na proporção mínima de três quartos. De acordo com o art. 153, § 5º, os estados e municípios têm participação respectiva de 35% (trinta e setenta por cento) do IOF sobre o ouro, quando este for definido como ativo financeiro.

Ressalta Sacha Calmon Navarro Coêlho que o art. 160 da Constituição Federal veda à União a “negociação política” no repasse destas parcelas, sob pena de sanções legais. Para o autor, o Governo antes se utilizava das parcelas como manobra para obtenção de vantagens e benefícios políticos e econômicos, favorecendo a corrupção32. Mesmo com esta vedação, a União pode condicionar o repasse dos recursos ao pagamento dos seus créditos em face de estados e municípios. Entretanto, mesmo com a previsão de tais mecanismos de transferência, estes não se demonstram suficientes.

As transferências verticais em federações objetivam, entre outros, a redução das disparidades regionais. O Fundo de participação dos Estados é o sistema de equalização para governos estaduais na federação brasileira, e objetivava, na concepção do CTN de 1967, a distribuição de recursos de acordo com a evolução e considerando os diferentes estágios econômicos dos entes. Entretanto, em 1989, por meio da Lei Complementar nº 62, foi determinado o congelamento dos coeficientes em uma tabela de percentagens reservadas estaticamente para cada Estado.

Importante ressaltar que a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 875/2010, na qual o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade dos coeficientes de repartição do Fundo de Participação dos Estados – FPE em vigor, que ainda estão definidos na Lei Complementar nº 62/89, e que, portanto, estão defasados e não contribuem para a efetividade do mandamento constitucional de equilíbrio socioeconômico entre os estados.

Assim, em que pese as alterações ocorrida ao longo do tempo, a distribuição de recursos para os Estados se apresenta como um estático repasse de receitas do IPI e do IR. É importante a análise da distribuição da receita nas federações, como o Brasil, pois os entes subnacionais possuem capacidade legal para arrecadação e tributos e competência para a prestação de diversos serviços públicos. Deve-se considerar a arrecadação de cada esfera de governo para o cálculo da distribuição final.

De acordo com Roque Antonio Carazza, é em nome da autonomia que cada ente federativo pode estabelecer suas prioridades. Ou seja, a questão relativa a alocação dos recursos financeiros disponíveis fica a critério da própria pessoa política. São os entes quem devem decidir como realizar suas tarefas e alocar seus recursos.33

As transferências constitucionais representam uma parte das receitas arrecadadas pela União. Em tese, esta divisão da receita entre os entes tem como objetivo fundamental amenizar as desigualdades regionais. Esta partilha é de considerável importância na busca de promover o equilíbrio econômico entre os estados e municípios.

Assim, no art. 3º, incisos II e III, da Constituição Federal de 1988, são determinados como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais. O desenvolvimento nacional econômico deve ser orientado pela justa distribuição de direitos e deveres entre os estados subnacionais, pois é a adequação do ordenamento jurídico tributário quem pode propiciar tal desenvolvimento. A orientação de redução das desigualdades sociais e regionais é tida como expressão do direito fundamental ao desenvolvimento.

Porém, mesmo com a previsão constitucional de redução das desigualdades regionais compreendida como um direito fundamental, na prática o que se percebe é que o governo central ainda não apresentou soluções eficientes para a garantia de tal direito. Cabe ao poder central, com a colaboração dos entes federativos, a implementação do objetivo de redução das desigualdades regionais em território nacional.34

Ainda, na federação brasileira, segundo Sulamis Dain:

“Têm sido também negligenciados temas substantivos, ligados à necessidade de harmonização do sistema tributário ao padrão internacional, e de reconceituação do federalismo fiscal, dado que a distribuição atual de competências para a receita e para o gasto, assim como o mecanismo de equalização fiscal são rígidos e obsoletos, gerando ineficiências alocativas e distributivas de monta”.35

Segundo Ricardo Lobo Torres, a distribuição de rendas é um princípio vinculado ao valor justiça36, e, assim, está relacionado com o desenvolvimento econômico. O principio da distribuição de rendas é afeto à receita e a obrigação tributária. É uma tributação ajustada aos bens e posses do sujeito passivo, ou seja, com a capacidade contributiva. Tem como objetivo corrigir a distribuição de rendas e coibir as injustas concentrações de riqueza, que prejudicam o desenvolvimento nacional. O principio da distribuição de rendas diferencia-se do principio da redistribuição de rendas tendo em vista que este tem como desiderato a transferência de renda das camadas mais abastadas para os mais necessitados. A redistribuição de rendas diz respeito ao orçamento, e relaciona-se à justiça distributiva.

Com a determinação de um dos objetivos fundamentais da República o desenvolvimento nacional e a redução das desigualdades sociais e regionais, o desenvolvimento econômico deve ser orientado pela justa distribuição de direitos e deveres entre os estados subnacionais, e a adequação do ordenamento jurídico tributário pode propiciar tal desenvolvimento.

Neste sentido, o art. 174 da Carta Magna dispõe que a lei estabelecerá as diretrizes e bases de planejamento para o desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento. O desenvolvimento das regiões e, com isto, o desenvolvimento econômico, encontram-se diretamente relacionados aos direitos fundamentais. Quanto mais desenvolvida é determinada região, maior independência e liberdade ela possui.

No contexto atual, a partilha dos recursos entre os entes da Federação tem causado distorções em nosso sistema federativo, em razão da forma de rateio determinada constitucionalmente. Uma característica da federação brasileira é que as regras e critérios utilizados para a transferência de recursos encontram-se definidas na Constituição Federal, ou em leis complementares, o que dificulta alterações mais freqüentes, pois a rigidez e congelamento dos critérios não espelha adequadamente o equilíbrio fiscal federativo37. De acordo com Ricardo Lobo Torres:

“Os impostos passaram a ser rateados entre a União, os Estados e os Municípios, sendo que o imposto de renda e o imposto de produtos industrializados, da competência da União, geravam a transferência de 47% de sua arrecadação para os entes menores. Como as contribuições sociais não entravam na partilha tributária, seguiu-se, nos anos posteriores à Constituição, a prática de a União aumentar de preferência as contribuições, com o que evitava o repasse para Estados e Municípios, engordando apenas os seus próprios cofres.”38

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A Constituição Federal de 1988 instituiu uma nova partilha tributária que favoreceu os entes subnacionais, principalmente os municípios, em detrimento da União. Portanto, Estados e municípios obtiveram um incremento na receita disponível, contudo, também tiveram aumento em seus deveres. Entretanto, a diminuição da receita da União ficou adstrita ao Imposto de Renda e Imposto sobre Produtos Industrializados, que compõem o FPE e o FPM, deixando livre a receita federal oriunda das contribuições sociais, de significativa importância. As contribuições sociais correspondem a montante considerável da receita tributária federal.

Com efeito, os impactos diferenciadores das regras que formam o rateio dos fundos constitucionais e a repartição das demais transferências de recursos oriundos da União sobre o montante dos orçamentos estaduais e municipais, as divergências entre a disponibilidade de recursos e a natureza das responsabilidades que deveriam ser exercidas foram se ampliando, e variam em razão do “tamanho da população, do grau de desenvolvimento da região e da condição socioeconômica de suas populações.”39

Considerando-se a multiplicidade de fontes componentes dos orçamentos dos entes subnacionais, o que concorre para o modo como os recursos transferidos se distribuem geograficamente, é demonstrado que dependendo da origem dos recursos, essa distribuição ocorre da seguinte forma40:

- Fundo de Participação dos Estados – FPE: em razão direta à população e inversa à renda per capita;

- Fundo de Participação dos Municípios – FPM: em razão direta, mas decrescente ao tamanho da população;

- Em razão direta à base econômica municipal – no caso da cota-parte dos municípios no ICMS41, repartida conforme o valor adicionado, da participação dos municípios no IPVA e no ITR, e do IR na fonte sobre os servidores públicos municipais;

- FPM capitais: em razão direta à população e inversa à renda per capita;

- Em razão direta ao tamanho da população e à concentração da oferta de serviços (SUS);

- Em função do número de matrículas no ensino fundamental (Fundef);

- Em função de critérios vários inseridos em leis estaduais que regulam a entrega aos municípios de ¼ do ICMS que lhes é devido;

- Em função da importância dos estados nas exportações nacionais – Fundo de compensação nas exportações e repasses da Lei Kandir;

- Parcela dos municípios nos recursos transferida aos estados à conta de compensação das exportações: com base nos coeficientes de participação dos municípios no ICMS.

Entretanto, o auxílio que recebem estados e municípios do Governo Federal é empregado em atividades que, em tese, deveriam ser financiadas exclusivamente pelos recursos locais.42 Assim, a fim de manter hígida a autonomia local, as transferências intergovernamentais representam papel fundamental, tanto sob a forma de participação direta quanto por meio de fundos.43 Em verdade, há apenas uma autonomia relativa da pessoa política quando lhe faltam recursos para a sua manutenção autônoma, de modo que as transferências, principalmente as provenientes do governo central, tornam-se imprescindíveis.

Segue pertinente crítica de Fernando Rezende:

“Em federações marcadas por elevadas desigualdades regionais e sociais, como a brasileira, a cooperação intergovernamental no atendimento das responsabilidades do Estado requer um ajuste periódico nos mecanismos de transferência de recursos financeiros que conformam o modelo de federalismo fiscal, de forma a ajustá-los à dinâmica espacial do país. Essa não tem sido, todavia, a prática brasileira. (...)” 44

As transferências intergovernamentais devem ser entendidas como mecanismos de redistribuição de recursos e renda, respaldadas nas determinações e princípios constitucionais, e com vistas à equalização e homogeneização entre as regiões, não tendo o caráter de mero subsídio ou auxílio aos entes de menor capacidade arrecadatória.

O sistema de transferências atual, em que pese estar voltado a redução das desigualdades regionais, acaba apresentando características de programas de auxílio, o que acaba por não permitir um desenvolvimento autônomo do ente e, com isto, o alcance de uma real equalização na capacidade das pessoas políticas, objetivo último de um Estado federado.

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Sobre a autora
Grace Osvaldina Pontes de Sousa Amanajás

Advogada e concluinte do curso de Pós Graduação em Constitucionalismo, Democracia e Direitos Humanos, da Universidade Federal do Pará.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMANAJÁS, Grace Osvaldina Pontes Sousa. A equalização fiscal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3969, 14 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28437. Acesso em: 29 mar. 2024.

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