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Orçamento público e proteção ambiental.

Custos do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado

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2. O DIREITO SUBJETIVO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO E O MÍNIMO EXISTENCIAL ECOLOGICO

No Brasil, o legislador constituinte prescreveu no caput do art. 225 da Carta Magna a fruição de adequadas condições de vida em um ambiente “ecologicamente equilibrado”, com a eficácia jurídica de norma garantidora da dignidade humana[61]

Em outros termos, trata-se do direito à qualidade de vida em um ambiente saudável, uma vez que “A vida digna com qualidade representa, certamente, o fim maior a ser colimado pelo direito em benefício do ser humano [...]”[62]. Tal fruição é destinada às presentes e futuras gerações: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

O equilíbrio referido na norma jurídica significa a manutenção da sustentabilidade ambiental, a qual, conforme a definição da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, consiste no desenvolvimento:

[...] “que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades”, podendo também ser empregado com o significado de “melhorar a qualidade de vida humana dentro dos limites das capacidades de suporte dos ecossistemas”[63].

Nessa esteira, sustentabilidade ambiental significa, principalmente, a partir do advento do Estado Social – verdadeiro marco para a proteção de direitos sociais e coletivos, como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – que crescimento econômico e proteção ambiental não são bens antagônicos, ou mutuamente excludentes, mas que devem ser valorados conjuntamente na consecução do direito à qualidade de vida[64].

Desse modo, o objetivo do desenvolvimento sustentável é melhorar a qualidade de vida dos seres humanos, “permitindo que as pessoas realizem o seu potencial e vivam com dignidade, com acesso à educação, com liberdade política, com garantia de direitos humanos e ausência de violência. O desenvolvimento só é real se o padrão de vida melhorar em todos esses aspectos. [...]”[65].

Existem, então, duas precondições para o desenvolvimento da sustentabilidade: a existência da capacidade natural de suporte (recursos naturais) e a capacidade de sustentação, consistindo esta nas atividades da sociedade efetuadas em seu próprio benefício, através da política, da economia e demais atividades sociais.

A observância da sustentabilidade enquanto direito humano fundamental é enfoque novo na legislação brasileira no sentido de que só a partir da Constituição Federal de 1988 é que um marco constitucional brasileiro dedicou um capítulo ao meio ambiente[66].

A partir do artigo 225 da Constituição encontramos a consagração de um direito, no sentido de situação jurídica que expressa uma pretensão da coletividade a comportamentos do Estado visando a manutenção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, classificado como bem de uso comum do povo, essencial à qualidade de vida, interligando-se nesta medida com o próprio direito à vida e à saúde.

Daí que se reconhece uma dupla dimensão da proteção ambiental no sistema jurídico brasileiro: trata-se de uma objetivo do Estado, um dever fundamental seu e da coletividade, mas também um direito justiciável (mínimo existencial ecológico justiciável[67]), apesar das peculiaridades de sua natureza difusa.

A Constituição, com isso, segue, e até ultrapassa, as Constituições mais recentes (Bulgária, art. 31, ex URSS, art. 18, Portugal, art. 66, Espanha, art. 45) na proteção do meio ambiente. Toma consciência de que a “qualidade do meio ambiente se transformara num bem, num patrimônio, num valor mesmo, cuja preservação, recuperação e revitalização se tornaram num imperativo do Poder Público, para assegurar a saúde, o bem-estar do homem e as condições de seu desenvolvimento. Em verdade, para assegurar o direito fundamental à vida”. [...] Compreendeu que ele é um valor preponderante, que há de estar acima de quaisquer considerações de desenvolvimento, como as de respeito ao direito de propriedade, como as da iniciativa privada. Também estes são garantidos no texto constitucional, mas, a toda evidência, não podem primar sobre o direito fundamental à vida, que está em jogo quando se discute a tutela da qualidade  do meio ambiente, que é instrumental no sentido de que, através dessa tutela, o que se protege é um valor maior: a qualidade da vida humana[68].

Assim, o Poder Público e a coletividade são os destinatários da obrigação de efetivar tais preceitos normativos constitucionais por meio de políticas públicas.

As políticas públicas exercem importante papel, uma vez que equivalem a programas de ação do Poder Público que definem quais as áreas e interesses públicos que merecem prioridade na aplicação de recursos, de modo que, as autoridades competentes, possam dirigir os planos, as metas e as ações com racionalidade e critério. É a partir da definição de políticas públicas que o Poder Público estabelece os planos, metas e ações a serem cumpridos. Os planos devem incluir o planejamento econômico e orçamentário, as condições de efetivação, o que será realizado pela via legislativa e o que ficará sob responsabilidade de concretização do Poder Executivo[69].

No caso do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado a própria Constituição Federal apresenta no §1º do art. 225 um catálogo de políticas públicas a serem implementados para dar concretude ao direito em questão. Vejamos:

§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;

II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;

III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;

IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;

V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;

VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

Trata-se, deveras, de prestações bem definidas que irão consubstanciar aquilo que a doutrina passou a chamar de mínimo existencial ecológico.

2.1 O mínimo existencial ecológico.

O conceito de mínimo existencial foi construído pela doutrina e jurisprudência alemãs no sentido do reconhecimento de um direito fundamental não escrito aos recursos materiais necessários a uma existência digna[70].

E da compreensão visceral da relevância e da sindicabilidade do direito ao meio ambiente equilibrado é que se passa a compreender a qualidade ambiental como parte do conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana. Configurado estaria nessa conjuntura um mínimo existencial ecológico, repousado na premissa de que a dignidade humana, além de uma dimensão social, possui uma dimensão ecológica.

Com isso, ao lado dos direitos a moradia digna, saúde básica, saneamento básico, educação fundamental, renda mínima, assistência social, alimentação adequada e acesso à justiça – comumente citados como possíveis integrantes do conteúdo da dignidade da pessoa humana – passa a figurar a qualidade ambiental como componente do mínimo existencial.

O mínimo existencial encontra fundamento no liberalismo, funcionando, sob os auspícios do Estado Social de Direito, como garantia da própria liberdade. Nesse sentido, Rawls[71] defende que a justiça de uma sociedade seria aferida conforme fossem distribuídos os direitos e deveres fundamentais, bem como as oportunidades econômicas e sociais. Com isso, a elevação de relações igualitárias vem a favorecer, no mais alto grau, o que Rawls[72] denomina “um mínimo social” que se baseia na ideia de reciprocidade, para garantir uma vida humana decente, em termos biológicos, psicológicos, sociais e políticos. E, por que não, em termos ambientais?

Noutro plano teórico, porém, o mínimo existencial também encontra base. À luz das premissas do Estado Social o princípio da dignidade humana corresponde a um “imperativo categórico da intangibilidade da vida humana”[73], de modo a atribuir ao Estado brasileiro “[...] uma obrigação inescusável, como dever decorrente dos direitos fundamentais, de implementar as prestações sociais mínimas para garantir a dignidade humana, a liberdade, a igualdade de chances, a exclusão da miséria e da marginalização”[74].

Indo mais além, há quem defenda a configuração do direito ao mínimo existencial ecológico sob o paradigma de um Estado de Direito Ambiental, ou Socioambiental conforme se prefira nomear, que constitui

[...] um conceito de cunho téorico-abstrato que abrange elementos jurídicos, sociais e políticos na persecução de uma condição ambiental capaz de favorecer a harmonia entre os ecossistemas e, consequentemente, garantir a plena satisfação da dignidade para além do ser humano [...][75].

No contexto do Estado de Direito Ambiental o mínimo existencial ecológico se apresenta “direito fundamental como um todo”[76] e refere-se às seguintes situações jurídicas:

[...] ao direito do Estado: a) de se omitir de intervir no meio ambiente (direito de defesa); b) de proteger o cidadão contra terceiros que causem danos ao meio ambiente (direito de proteção); c) de permitir a participação dos cidadãos nos processos relativos à tomada de decisões que envolvam o meio ambiente (direito ao procedimento); e, por fim, d) de realizar medidas fáticas que visem a melhorar as condições ecológicas (direito de prestações de fato) [77].

Nesse sentido, verifica-se um dever fundamental para o Estado e para o cidadão, enquanto instrumento auxiliar da vida em comunidade, “[...] facilitando a sua organização e, por si só, devem ser respeitados e cumpridos”[78].

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Explicando melhor,

[...] todos os deveres fundamentais estão ao serviço de valores comunitários, de valores que, ainda que dirigidos directamente à realização de específicos direitos fundamentais dos próprios destinatários dos deveres ou de terceiros, são assumidos pela comunidade nacional como valores seus, constituindo assim, ao menos de um modo directo ou imediato, deveres para com a comunidade estadual. E nesta medida, o estado é o titular activo número um de todos os deveres fundamentais[79].

No plano pragmático, esta visão tem sido considerada cada dia com mais frequência e a jurisprudência dos tribunais pátrios vem reconhecendo também esse direito subjetivo – pretensão – ao mínimo existencial ecológico, com a correlata imposição de obrigações de fazer ao Estado. Observe-se:

ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - OBRAS DE RECUPERAÇÃO EM PROL DO MEIO AMBIENTE - ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO. 1. Na atualidade, a Administração Pública está submetida ao império da lei, inclusive quanto à conveniência e oportunidade do ato administrativo. 2. Comprovado tecnicamente ser imprescindível, para o meio ambiente, a realização de obras de recuperação do solo, tem o Ministério Público legitimidade para exigi-la. 3. O Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de moralidade e razoabilidade. 4. Outorga de tutela específica para que a Administração destine do orçamento verba própria para cumpri-la. 5. Recurso especial provido. (STJ, SEGUNDA TURMA, REsp 429570 / GO ; Rel. Min. ELIANA CALMON, DJ 22.03.2004 p. 277 RSTJ vol. 187 p. 219). Grifou-se.

O reconhecimento do direito foi tal que levou o judiciário a imiscuir-se na decisão política de destinar verbas para consecução das obras de recuperação. No julgado a seguir, sob o fundamento do risco para a sociedade, também se concedeu tutela para obrigar o Estado a adequar as condições de um lixão:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LIXÃO. ADEQUAÇÃO. DANO AMBIENTAL. PREVALÊNCIA DO INTERESSE DIFUSO. REQUISITOS AUTORIZADORES DA CONCESSÃO PRESENTES.1. O princípio da prevalência do meio ambiente deve ser observado em face de outros porque matéria de ordem pública. 2. A concessão da liminar, assim, há de ser sopesada pelo julgador, pois que permanente o risco suportado pela sociedade, princípios observados no caso em testilha.3. Considerando que o Poder Público é quem, com primazia, tem o dever de orientar-se segundo as normas ambientais constitucionais, por essa mesma razão é que se impõe a obrigação de adequação de suas providências. Agravo de Instrumento desprovido.

(874468 PR Agravo de Instrumento - 0087446-8, Relator: Rosene Arão de Cristo Pereira, Data de Julgamento: 18/10/2000, 6ª Câmara Cível)

Ainda mais incisiva foi a posição do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao afirmar, no julgado abaixo, a questão orçamentária como uma questão menor em tema de promoção dos direitos fundamentais à saúde e ao meio ambiente de qualidade. Observe-se:

DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LOTEAMENTO IRREGULAR. PARQUE PINHEIRO MACHADO. REDE DE ESGOTO. RESPONSABILIDADE.

O dever de garantir infra-estrutura digna aos moradores do loteamento Parque Pinheiro Machado é do Município de Santa Maria, pois deixou de providenciar a rede de esgoto cloacal no local, circunstância que afetou o meio ambiente, comprometeu a saúde pública e violou a dignidade da pessoa humana. Implantação da rede de esgoto e recuperação ambiental corretamente impostas ao apelante, que teve concedido prazo razoável ¿ dois anos ¿ para a execução da obra. Questões orçamentárias que não podem servir para eximir o Município de tarefa tão essencial à dignidade de seus habitantes. Prazo para conclusão da obra e fixação de multa bem dimensionados na origem. Precedentes desta Corte. APELAÇÃO IMPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70011759842, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nelson Antônio Monteiro Pacheco, Julgado em 01/12/2005). Grifou-se.

Entretanto, em que pese a importância teórica e pragmática reconhecida neste estudo ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, especialmente na sua formulação de mínimo existencial ecológico, inclusive sua sindicabilidade frente ao Estado, posições que colocam a questão orçamentária como uma questão menor da eficácia dos direitos fundamentais atingem gravemente o caráter autopoiético e homogêneo do sistema do direito positivo. Do mesmo modo, ignoram a pragmática questão dos custos dos direitos e da reserva do possível numa sociedade solidária, onde os direitos fundamentais são financiados por todos. Posições assim suscitam ainda debates em torno da legitimidade do poder judiciário na concretização de políticas públicas, mas não nos deteremos neste aspecto neste estudo.

De toda sorte, um ponto que merece ser destacado nesta reflexão é fato de que hoje um estágio da modernidade em que os efeitos da atuação humana ganham amplitude planetária, constituindo ameaça à sobrevivência da espécie humana: vivemos na sociedade de risco[80]. Isto porque a crise ambiental desencadeada pode levar à escassez dos recursos ambientais e catástrofes de porte global. 

Os conceitos de risco e sociedade de risco combinam conceitos mutuamente excludentes em outras épocas: sociedade e natureza, ciências sociais e ciências exatas, construção discursiva do risco e materialização das ameaças[81].

A principal marca desta sociedade é a incerteza, dado que a complexidade dos riscos já não se deixa abarcar pelos pressupostos científicos da modernidade clássica, em virtude da imprevisibilidade e mutabilidade das ameaças[82].  Com isso, temos que o risco global é hoje o maior problema da ordem internacional[83].

Considerando a amplidão de tais danos é que a prevenção dos riscos ganha destaque. Mais importante que responsabilizar determinado Estado ou indivíduo por um dano ambiental de improvável ou impossível recuperação, é preveni-lo, evitar que ocorra[84], uma vez que o que está em jogo é a própria vida dos seres humanos, dependente das condições do meio ambiente que habita[85].

Nesse sentido, deve ser combatida a irresponsabilidade organizada[86], consistente na tentativa de minoração da problemática dos riscos, através da distorção/ocultação de informações ou sua aceitação como circunstância inevitável ao progresso econômico, técnico e científico.

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Sobre a autora
Fernanda Karoline Oliveira Calixto

Mestra em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL, Pós-graduada em Direito Administrativo pela Faculdade Wenceslaw-Brás, Advogada do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Estácio de Alagoas, Professora no Centro Universitáro CESMAC e na Faculdade Raimundo Marinho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CALIXTO, Fernanda Karoline Oliveira. Orçamento público e proteção ambiental.: Custos do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4024, 8 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28674. Acesso em: 19 abr. 2024.

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