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A participação do administrado como limite à discricionariedade das agências reguladoras

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08/07/2014 às 13:13
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Analisa-se a limitação imposta pela participação popular à discricionariedade exercida pelas agências reguladoras na normatização dos setores por elas regulados.

Sumário: INTRODUÇÃO. I - O REGIME JURÍDICO DAS AGÊNCIAS REGULAORAS.  II - PREVISÕES CONSTITUCIONAIS E INFRACONSTITUCIONAIS DA PARTICIPAÇÃO POPULAR.  III – A DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA.  IV – A PARTICIPAÇÃO POPULAR E AS QUESTÕES DE ALTA COMPLEXIDADE TÉCNICA.  V- CONCLUSÃO.  REFERÊNCIAS


Introdução

O presente estudo tem como mote analisar as limitações impostas pela participação popular na edição de atos normativos expedidos pelas agências reguladoras, dando-se ênfase à proibição imposta ao regulador de alterar ou mesmo relativizar, no caso concreto, os critérios definidos em abstrato para a regulação de determinada matéria.

A análise pretende enumerar as diversas definições e conceitos trazidos à baila pela doutrina acerca da discricionariedade técnica e da discricionariedade administrativa, a fim de se saber se ambas são distintas ou se uma está contida na outra.

Pretende-se demonstrar que a existência dos institutos de participação popular e, mais especificamente, de participação dos administrados na discussão e elaboração dos regulamentos expedidos pelas agências é válida, alçando o ordenamento jurídico brasileiro, pelo menos no tocante a esses institutos, entre os mais avançados e garantidores.

Todavia, a singela previsão desses institutos no ordenamento não faz com que a participação popular se efetive de forma plena. Por ouro lado, por mais deficiente que a participação popular possa ser na atualidade, não há que se olvidar que tal requisito impede que as agências reguladoras afastem casuisticamente as resoluções por elas adotadas em abstrato com auxílio, efetivo ou não, da participação popular.

Desta forma, a análise acerca da problemática ora proposta terá início com a verificação dos dispositivos constitucionais e legais que contemplam o princípio da participação popular, seja sob viés geral, previsão da participação popular “lato sensu”, seja em relação aos usuários do serviço público de telecomunicação.

Após, serão analisados os fundamentos da discricionariedade, seu conceito e sua diferenciação da vinculação, as teorias acerca dos conceitos jurídicos indeterminados e o questionamento se o seu uso pela norma gera discricionariedade, bem como sua estrutura lógico-normativa. Após, será realizada análise acerca da existência de diferenças entre a discricionariedade administrativa e a discricionariedade técnica, para, então, analisar-se a limitação da discricionariedade das agências pelo exercício de suas competências discricionárias e pela participação popular.

Feita tal digressão, passar-se-á à análise das razões pelas quais não se consideram efetivos, no Brasil, os meios colocados à disposição dos usuários de telecomunicação para participarem da construção e discussão dos diplomas reguladores setoriais expedidos pelas agências reguladoras.

Assim, estudar a participação popular na discussão e elaboração dos diplomas reguladores expedidos pelas agências reguladoras é de suma relevância para o aprimoramento da Administração Pública e, por decorrência lógica, do próprio Estado Democrático de Direito. Estudar a efetividade dos meios de participação, ademais, tende a aclarar se os institutos postos à disposição pelo ordenamento para a efetiva participação dos cidadãos no processo normativo das agências reguladoras é apenas em abstrato algo garantidor da intervenção popular na Administração Pública, considerando-se principalmente o alto grau de tecnicidade envolvido nas questões regulatórias e o real estágio apresentado pelo Brasil no tocante à participação cívica consciente da população nos chamados “assuntos de Estado”.


I - O regime jurídico das agências reguladoras

O regime jurídico das autarquias é composto por normas e princípios específicos que o diferenciam dos demais institutos do Direito Administrativo, caracterizando-se por conter princípios que lhe são peculiares e que são diferenciados por possuírem uma lógica de unidade e coerência.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello,

Princípio é, pois, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata compreensão e inteligência delas, exatamente porque define a lógica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá sentido harmônico. Eis porque: violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.[1]

Tem-se, pois, que princípio é mandamento nuclear de qualquer sistema jurídico, não sendo exceção, portanto, o sistema atinente às autarquias e, em especial, às agências reguladoras.

O regime jurídico das agências reguladoras é composto na sua integralidade por regras de pelo menos três origens diferentes: a) regras que decorrem do regime jurídico-administrativo pelo fato de as agências, no Brasil, serem autarquias; b) regras derivadas do chamado regime especial das agências; c) regras pertencentes ao patamar normativo particular de cada agência reguladora.[2]

Desta forma, o regime jurídico das agências reguladoras é composto, primeiramente, pelas regras que decorrem do regime jurídico-administrativo, vez que as agências reguladoras são autarquias.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello o regime jurídico-administrativo possui como base os princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos. Fazem parte desse regime, ainda, os seguintes princípios: legalidade, finalidade, razoabilidade, proporcionalidade, motivação, impessoalidade, publicidade, moralidade administrativa, devido processo legal e a ampla defesa, controle judicial dos atos administrativos, responsabilidade do Estado por atos administrativos e, por fim, eficiência.

Em segundo lugar, o regime jurídico das agências reguladoras é composto pelas regras derivados do regime especial das agências. Há que se ressaltar que este regime especial diferencia-se do regime aplicável às demais autarquias apenas pela fixidez e investidura dos mandatos de seus dirigentes, pois características como a independência administrativa, autonomia funcional e a autonomia patrimonial e da gestão de recursos humanos são características comuns a todas as autarquias.

Ora, ‘independência administrativa’ ou ‘autonomia administrativa’, ‘autonomia financeira’, ‘autonomia funcional’ e ‘patrimonial e da gestão de recursos humanos’ ou de quaisquer outros que lhes pertençam, ‘autonomia nas suas decisões técnicas’, ‘ausência de subordinação hierárquica’, são elementos intrínsecos à natureza de toda e qualquer autarquia, nada acrescentando ao que lhes é inerente. Nisto, pois, não ha peculiaridade alguma; o que pode ocorrer é um grau mais ou menos intenso destes caracteres.

Assim, o único ponto realmente peculiar em relação à generalidade das autarquias está nas disposições atinentes à investidura e fixidez do mandato dos dirigentes destas pessoas [...].[3]

Por fim, o regime jurídico das agências é composto por regras pertencentes ao patamar normativo particular de cada agência reguladora, que serão, no tocante à participação popular, destacadas no próximo capítulo.

Conclui-se, assim, que as agências reguladoras são autarquias submetidas a um regime especial, instituídas com o fulcro de disciplinar e controlar determinadas atividades tais como os serviços públicos (ANEEL, ANATEL, ANTT, ANTAQ e ANAQ), as atividades de fomento e fiscalização de atividades privadas (ANCINE), atividades do uso de bem público (ANA), dentre outras.

Surgiram com a relevante missão de regular os assuntos atinentes ao seu campo específico de atuação sem invadirem o campo da competência legislativa. Isso porque, como é amplamente sabido, apenas o Poder Legislativo tem competência constitucional para inovar originariamente na ordem jurídica brasileira em função da previsão do princípio da legalidade. Desta forma, pode-se afirmar que as agências reguladoras ao disciplinarem os assuntos atinentes a sua esfera de atuação têm de restringir-se a normatizar os aspectos estritamente técnicos da atividade regulada, sob pena de violarem o princípio da legalidade. Assim, conforme ensina Celso Antônio Bandeira de Mello:

Em suma: cabe-lhes expedir normas que se encontrem abrangidas pelo campo da chamada ‘supremacia especial’.

De toda sorte, ditas providências, em quaisquer hipóteses, sobre deverem estar amparadas em fundamento legal, jamais poderão contravir o que esteja estabelecido em alguma lei ou por qualquer maneira distorcer-lhe o sentido, maiormente para agravar a posição jurídica dos destinatários da regra ou de terceiros; assim como não poderão também ferir princípios jurídicos acolhidos em nosso sistema, sendo aceitáveis apenas quando indispensáveis, na extensão e intensidade requeridas para o atendimento do bem jurídico que legitimamente possam curar e obsequiosas à razoabilidade.[4]

Nota-se, portanto, que não se está a negar às agências reguladoras a competência para normatizar os assuntos atinentes ao seu campo de atuação, o que seria esvaziar por completo a sua função atual, impedindo-as de alcançarem seus objetivos legais e para os quais foram instituídas. O que se está a dizer é que as agências reguladoras não cumprem o mesmo papel do Poder Legislativo e não podem arvorar as competências reservadas constitucionalmente aos parlamentares.

O poder normativo concedido às agências busca, segundo Dinorá Adelaide Musetti Grotti, “assegurar uma regulação imparcial, decisões mais técnicas, dotadas de maior proteção contras as ingerências meramente políticas, que poderiam prejudicar o funcionamento ideal de um modelo competitivo”.[5]Portanto, as agências reguladoras têm de cingir-se a regular os aspectos estritamente técnicos da atividade objeto da regulação, respeitando os parâmetros legais existentes. Necessariamente precisam respeitar os princípios e normas jurídicas que compõem o sistema jurídico pátrio.


II - Previsões constitucionais e infraconstitucionais da participação popular

Nas palavras de Dinorá Adelaide Musetti Grotti “o princípio da participação popular na gestão e no controle da Administração Pública é inerente à ideia de Estado Democrático de Direito”.[6]De fato, não há como se conceber Estado Democrático de Direito sem que esse disponha de instrumentos efetivos de participação popular na Administração Pública. A participação direta do cidadão na Administração Pública é fator sine qua non para a caracterização do Estado como Democrático, já que a impossibilidade de participação popular na organização, gestão e fiscalização da Administração amesquinha e impede a realização plena da democracia.[7]

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O princípio da participação democrática, como dito, é inerente à ideia de Estado Democrático de Direito e está insculpido no preâmbulo e no art. 1º da Constituição Federal, tendo sido, ainda, contemplado em diversos dispositivos constitucionais, notadamente na disciplina da ordem social.

Para Marcos Augusto Perez os institutos jurídicos de participação popular na Administração podem ser definidos

como instrumentos legalmente previstos que possibilitem aos administrados, diretamente, ou através de representantes escolhidos especificamente para este fim, tomar parte na deliberação, na execução ou no controle das atividades desenvolvidas pela Administração Pública, com o objetivo de tornar mais eficiente a atuação administrativa e dar efetividade aos direitos fundamentais, por meio da colaboração entre a sociedade e a Administração, da busca da adesão, do consentimento e do consenso dos administrados e, afinal, da abertura e transparência dos processos decisórios.[8]

A seguir, serão analisados os dispositivos constitucionais e infraconstitucionais que contemplam a participação popular na discussão e elaboração das normas regulamentares expedidas pelas agências reguladoras.

Inicialmente, há que se destacar a previsão da participação popular no Título II da Constituição de 1988, destinado aos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, estando presente na garantia de acesso de todos à informação (art. 5º, XIV), inclusive às informações provenientes dos órgãos públicos e que sejam de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral (art. 5º, XXXIII). Está presente, ainda, no “direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”, bem como no direito de obter “certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimentos de situações de interesse pessoal” (at. 5ª, XXXIV), na garantia do devido processo legal na esfera administrativa (art. 5º, LV).

Consta, também, do art. 29, CF, que disciplina a organização dos Municípios, mais especificamente no inciso XII, que prevê a “cooperação das associações representativas no planejamento municipal”. Tal previsão possibilita a participação democrática da população por meio das associações representativas em todas as questões atinentes ao planejamento municipal, direcionando “genericamente a adoção de institutos de participação popular pela Administração Pública nos Municípios”.[9]

Outro exemplo encontra-se no art. 187 da Constituição Federal que estabelece que “a política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes”.

No Título VIII da Constituição Federal, que trata da ordem social, encontram-se dispositivos de suma importância para a concreção da participação do usuário na Administração Pública. Assim é que o inciso VII do art. 194 da Constituição Federal estabelece ser da competência do Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, objetivando o “caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados”. Insta ressaltar que a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação é, nos termos do art. 10, direito fundamental.

Referido Título ainda contém dispositivos que prestigiam a participação popular na Administração Pública. É o caso do art. 198, que estabelece que as “ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único”, organizado de acordo com três diretrizes, sendo uma delas a participação da comunidade (art. 198, III). Também nesse sentido é a disposição do art. 227, §1º, que determina a realização pelo Estado de programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, com a participação de entidades não governamentais.

A participação da comunidade também é assegurada nas diretrizes dos sistemas de assistência social, de educação e de cultura. Nota-se, assim, que o art. 204 determina que “as ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social” e organizadas com base na participação da população na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis, por meio de organizações representativas (art. 204, II).

A participação da comunidade é assegurada, ainda, nas diretrizes do sistema de educação, na medida em que os arts. 205 e 206, VI, estabelecem que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, devendo ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, com vistas ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, sendo princípio expresso da educação a gestão democrática do ensino público, na forma da lei. Não há que se olvidar, por fim, do quanto estabelecido pelo art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que “estabelece que o poder público desenvolverá esforços, com a mobilização de todos os setores organizados da sociedade, para eliminar o analfabetismo e universalizar o ensino fundamental”.[10]

Por fim, há que se destacar a participação popular no que atine à cultura. A Constituição Federal, no art. 216, §1º, é clara ao determinar que “o Poder Público, com colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”.

A Emenda Constitucional nº 45, de 8/12/04, foi responsável pela inclusão de dois dispositivos constitucionais que trazem em seu bojo a possibilidade de participação da comunidade por meio das ouvidorias. Assim, o art. 103-B, §7º, estabelece o dever da União de criar ouvidorias “competentes para receber reclamações e denúncias de qualquer interessado contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, ou contra seus serviços auxiliares, representando diretamente ao Conselho Nacional de Justiça”. Imbuído do mesmo espírito, o art. 130-A, §3º, I  determina a criação de ouvidorias para “receber reclamações e denúncias de qualquer interessado, relativas aos membros do Ministério Público e dos seus serviços auxiliares”.

A participação do usuário na Administração Pública também possui tratamento constitucional. A Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998, alterou a redação do caput e do §3º do art. 37[11](bem como dos incisos I, II, V, VII, X, XI, XIII, XIV, XV, XVI, XVII e XIX), fazendo constar que “a lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviço de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços, bem como o acesso dos usuários a registros administrativos e informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII” e “a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública”.[12]

Em relação aos concessionários e permissionários de serviços públicos insta destacar a previsão implícita de participação dos usuários na execução e prestação do serviço público contida no art. 175, parágrafo único, II, da CF, que estabelece que a lei disporá sobre os direitos dos usuários. Assim, como afirmado anteriormente, os direitos dos usuários estão previstos em diversos diplomas legislativos, dentre eles na Lei nº 8.987/95, em diversos dispositivos que ora disciplinam a fiscalização e controle dos serviços outorgados, ora disciplinam a cooperação do usuário.

Participar de decisões de interesse público é tanto ou, por vezes, mais importante para a vida democrática do que a participação, pelo voto, da escolha de mandatários políticos. O sufrágio eleitoral é modalidade de participação destinada a legitimar a representação popular, quanto às demais formas de participação, diretas e semidiretas, visam a legitimar decisões públicas que, conforme a hipótese de que se tratar, poderá ter alcance muito mais amplo sobre os interesses da sociedade. Na linha do que de mais atualizado há em Direito Público, a Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, busca aproximar, o mais possível, o público usuário das prestações dos serviços públicos, com vistas a que estas lhe sejam cada vez mais úteis e de modo a que todos se vejam cada vez mais compelidos a zelar pelo equipamento público e a exigir qualidade dos serviços prestados.[13]

No plano infraconstitucional a legislação que disciplina a participação do usuário na Administração Pública e, em especial, nas atividades das agências reguladoras é farta. Os diplomas normativos das agências possuem em seu bojo previsões que privilegiam a participação do cidadão, tais como a instituição de audiências e consultas públicas, criação de Conselhos, de ouvidorias, dentre outras.

Assim, a previsão de realização de audiência pública aparece, por exemplo, na Lei nº 9.478/97,[14]que em seu art. 19 estabelece que “as iniciativas de projetos de lei ou de alteração de normas administrativas que impliquem afetação de direito dos agentes econômicos ou de consumidores e usuários de bens e serviços das indústrias de petróleo, de gás natural ou de biocombustíveis serão precedidas de audiência pública convocada e dirigida pela ANP”.

A audiência pública é o instituto de participação popular na Administração Pública, de caráter não vinculante, consultivo ou meramente opinativo, inserido na fase instrutória do processo decisório, consistente na realização de uma sessão pública aberta a todos os interessados e voltada ao esclarecimento e à discussão de todos os aspectos e problemas envolvidos em uma determinada decisão administrativa.[15]

A realização de audiência pública está prevista, também, nos processos decisórios da Agência Nacional de Energia Elétrica[16], que em seu art. 4º, §3º, estatui     que “o processo decisório que implicar afetação de direitos dos agentes econômicos do setor elétrico ou dos consumidores, mediante iniciativa de projeto de lei ou, quando possível, por via administrativa, será precedido de audiência pública convocada pela ANEEL”. Está presente, também, no art. 5º, da Lei Complementar 1.025/07, que transformou a Comissão de Serviços Públicos de Energia em Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo – ARSESP[17].

Já a consulta pública está contemplada, v.g., na Lei Geral de Telecomunicações,[18]que em seu art. 42 estabelece que as minutas de atos normativos da Agência serão submetidas a consulta pública. Vale ressaltar, ainda, a Lei Complementar 1.025/07 que prevê, em seu art. 4º, que a ARSESP “promoverá consultas públicas previamente à edição de quaisquer regulamentos e à aprovação de diretrizes, níveis, estruturas e revisões tarifárias, bem como nos demais casos definidos no regimento interno”.

Aparentemente inspirada na ‘enquête’, do direito francês, a consulta pública consiste em procedimento de divulgação prévia de minutas de atos normativos, para permitir que, em determinado prazo, todos os eventuais interessados ofereçam críticas, sugestões de aperfeiçoamento ou peçam informações e resolvam dúvidas a seu respeito. A Administração tem o dever de documentar todas as consultas e respondê-las publicamente, de modo a instruir e fundamentar o processo decisório. A diferença entre a consulta pública e a audiência pública está em que, na primeira, há maior possibilidade de interferência dos interessados em relação à decisão que lhes possa afetar; possibilita-se, através da consulta pública, o aprofundamento do debate em torno da decisão administrativa, tanto do ponto de vista político como do ponto de vista técnico. A Administração não é obrigada a aceitar todas as sugestões oferecidas pelos interessados, mas deve motivar a decisão que eventualmente as refutou.[19]

A criação de Conselhos com a finalidade de prestigiar a participação dos usuários é clara, por exemplo, na Lei nº 9.472/97. A Lei Geral de Telecomunicações  prevê a existência de um Conselho Consultivo, que “é o órgão de participação institucionalizada da sociedade na Agência” (art. 33). Nos termos do art. 34, “o Conselho será integrado por representantes indicados pelo Senado Federal, pela Câmara dos Deputados, pelo Poder Executivo, pelas entidades de classe das prestadoras de serviços de telecomunicações, por entidades representativas dos usuários e por entidades representativas da sociedade, nos termos do regulamento.

 Os conselhos são órgãos colegiados, ora com função deliberativa, ora com função meramente consultiva, que reúnem representantes da Administração Pública e da sociedade, com ou sem paridade de representação, e que participam do processo decisório de uma determinada área de interesses da Administração.[20]

A Lei nº 9.782/99, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária,[21]também contempla a participação dos usuários nas decisões tomadas pela Agência, dispondo que esta contará com um Conselho Consultivo, “que deverá ter, no mínimo, representantes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, dos produtores, dos comerciantes, da comunidade científica e dos usuários, na forma do regulamento” (art. 9º, parágrafo único).

Por fim, há que se destacar as ouvidorias, previstas, por exemplo, nos arts. 8º, §1º, e 45, “caput”, da Lei nº 9.472/97.  A previsão da existência das ouvidorias pode ser vislumbrada no art. 4º, §1º, da Lei nº 9.427/97, que estabelece que “o decreto de constituição da ANEEL indicará qual dos diretores da autarquia terá a incumbência de, na qualidade de ouvidor, zelar pela qualidade do serviço público de energia elétrica, receber, apurar e solucionar as reclamações dos usuários”.

As ouvidorias foram contempladas, também, no art. 63, “caput”, da Lei nº 10.233/01, que dispõe sobre a reestruturação dos transportes aquaviário e terrestre, cria o Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte, o Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ)[22].

O art. 5º, da Lei nº 9.961/00, que criou a Agência Nacional de Saúde[23](ANS), também contemplou a existência, dentro de sua estrutura organizacional, das ouvidorias. Neste mesmo sentido, pode-se destacar a previsão da existência de ouvidorias na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que a inclui na sua estrutura organizacional, nos termos do art. 9º da Lei nº 9.782/99, na Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC)[24], que no art. 18, §1º, estabeleceu caber ao Ouvidor receber pedidos de informações, esclarecimentos, reclamações e sugestões, respondendo diretamente aos interessados e encaminhando, quando julgar necessário, seus pleitos à Diretoria da ANAC.

A Agência Nacional do Cinema (ANCINE[25]), por sua vez, prevê em sua estrutura a existência de uma Ouvidora-Geral, nos termos do art. 8º, §4º, da Medida Provisória 2.228-1.

O Decreto 97.946/89, que dispõe sobre a estrutura básica do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA[26]–, em seu art. 12, estabelece que a autarquia terá uma Ouvidoria a quem competirá receber e investigar a procedência de reclamações quanto às atividades do IBAMA e dos seus servidores, propondo ao Presidente as medidas cabíveis.

Ainda, vale destacar, a previsão da existência de ouvidora no art. 6º, da Lei Complementar 914/02, que instituiu a Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados de Transporte do Estado de São Paulo – ARTESP[27].

A Ouvidoria é órgão encarregado de produzir apreciações críticas sobre a atuação da agência, receber e responder pedidos de informações, esclarecimentos e reclamações, tendo acesso a todos os assuntos e devendo atuar com autonomia e independência.[28]

A despeito dos institutos acima citados, não há que se olvidar que as agências reguladoras ainda causam acirrados debates na doutrina administrativista. Muitos as defendem. Entretanto, há que se questionar se “o modelo das agências escapa à crítica de falta de legitimidade democrática”.[29]Assim, ao refletir acerca do modelo das agências reguladoras e a efetividade da participação dos usuários, Conrado Hübner Mendes assevera:

Notamos que a esfera com maior carência de representatividade é, definitivamente, a parcela dos usuários. A participação destes, ressalte-se, é extremamente dificultosa, eis que são leigos nos assuntos eminentemente técnicos postos na pauta decisória da agência. Para que emitam sua opinião, ao contrário dos concessionários, que possuem toda a capacitação técnica e o poder de barganha econômico para discutir, são necessárias traduções que demonstrem a essência dos problemas postos na mesa.[30]

Portanto, a questão que merece reflexão é se a participação do usuário é possível dentro de um sistema que não disponibiliza os meios técnicos necessários à efetiva participação e intervenção dos cidadãos nos serviços regulados pelas agências. A questão merece maior reflexão, com vistas a melhorar o sistema posto hodiernamente, a fim de que o usuário tenha condições isonômicas ao debater os assuntos atinentes às atividades desenvolvidas pelas agências reguladoras e será retomada mais adiante.

Daí entendermos que se o instituto participativo, em um determinado caso, não representar uma verdadeira abertura da Administração à participação de todos os seguimentos sociais igualmente interessados na política pública, que ele se direcionaria a acompanhar, executar ou deliberar, não se tratará de um verdadeiro instituto de participação popular na Administração Pública, pois inviabilizará, em boa medida, a busca de consentimento, adesão e consenso dos administrados, requisitos essenciais para sua caracterização.[31]

Insta ressaltar que cada ente federativo possui competência para disciplinar as formas de participação dos administrados na fiscalização e controle da Administração Pública, consoante o princípio da autonomia político-administrativa, previsto no art. 18 da Constituição Federal. Dessa forma, cada ente tem liberdade de disciplinar a maneira como melhor lhe aprouver, respeitados todos os direitos e garantias dos usuários, as formas de sua participação nos serviços públicos.

Para Dinorá Grotti

Tais normas merecem aplausos, na medida em que trazem para a Administração Pública brasileira não apenas a uniformização de sua atuação, mas abrem as possibilidades para um maior controle dos administrados e para um debate democrático transparente, envolvendo os sujeitos a serem atingidos por suas decisões. [...].

Portanto, a validade do ato normativo apenas deve ser reconhecida quando a participação dos interessados tenha sido provida de significado prático, o que ocorre quando tenham sido efetivamente apreciados os principais argumentos apresentados durante o procedimento de consulta pública, por uma autoridade que fundamenta sua decisão, ao acatá-los ou rejeitá-los. Procedimentos dessa espécie fornecem elementos para o controle judicial da atividade normativa da Administração e, quando convenientemente observados, fortalecem a presunção de legitimidade que deve ser atribuída ao ato normativo deles resultante, propiciando um critério adicional a ser observado pelo Judiciário no desempenho de sua atividade de controle. Deve o Judiciário, portanto, apreciar os procedimentos em si mesmos, a fim de verificar se foram eles convenientemente conduzidos, como meio de aferir a razoabilidade da decisão alcançada pela autoridade.[32]

Desta forma, pode-se afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro possui diversos instrumentos que contemplam a participação popular na Administração Pública e, em especial, na regulação exercida pelas agências reguladoras; todavia, o aumento da complexidade das relações sociais, bem como o implemento da tecnologia e a crescente demanda por decisões que envolvem assuntos cada vez mais específicos, de áreas de conhecimento específicas, faz com que determinados temas afetos às agências reguladoras contenham aspectos muitas vezes desconhecidos da grande maioria da população, demandando conhecimentos teóricos e práticos dominados apenas por detentores de determinada parte das ciências: os técnicos.

A despeito da inexistência de uma participação ativa cidadã, o que se pretende aclarar neste trabalho é a exigência imposta pela lei, como no caso da Lei Geral de Telecomunicações, da participação popular na discussão e elaboração das normas reguladoras expedidas pelas agências como requisito formal da validade da normatização efetuada.

Cabe destacar, no próximo capítulo, que as agências reguladoras possuem discricionariedade para regulamentar as esferas afetas ao seu campo de atuação, entretanto, como se tentará demonstrar, a discricionariedade das agências é apenas aparentemente maior que a discricionariedade concedida ao restante da Administração Pública. Na realidade, a discricionariedade das agências é menor que aquela observável na Administração em geral, pois quando a agência normatiza, regulamentando determinado assunto, vincula-se a essa normatização, ficando impedida de, casuisticamente e sem observação do procedimento de participação popular, alterar os critérios por ela estabelecidos.

Antes da análise dessa referida autolimitação, há que se verificar quais são os fundamentos da discricionariedade, seu conceito e sua diferenciação da vinculação, as teorias acerca dos conceitos jurídicos indeterminados e o questionamento se o seu uso pela norma gera discricionariedade, bem como sua estrutura lógico-normativa para, então, iniciar o estudo acerca da existência  de diferenças entre a discricionariedade administrativa e a chamada discricionariedade técnica, finalizando a presente análise com a limitação da discricionariedade das agências pelo exercício de suas competências discricionárias e pela participação popular.

 

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Sobre a autora
Marina Centurion Dardani

Advogada/Especialista em Direito Administrativo pela PUC/SP - Cogeae

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DARDANI, Marina Centurion. A participação do administrado como limite à discricionariedade das agências reguladoras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4024, 8 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28684. Acesso em: 4 mai. 2024.

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