Artigo Destaque dos editores

Lei Maria da Penha e as atribuições conferidas ao Ministério Público para a sua aplicação

Exibindo página 1 de 3
01/06/2014 às 19:02
Leia nesta página:

O MP, considerando ser uma instituição reconhecida pela Constituição Federal, alvo de designações legais da Lei Maria da Penha e dotada da confiança da sociedade, deve utilizar todos os meios necessários, judiciais e extrajudiciais, para contribuir com a erradicação e a prevenção da violência doméstica; para exterminar de uma vez por todas a cultura machista e egoísta preservada por alguns.

“Todavia, nem o homem é sem a mulher, nem a mulher sem o homem, no Senhor. Porque, como a mulher provém do homem, assim também o homem provém da mulher, mas tudo vem de Deus.”

 Bíblia Sagrada - I Coríntios 11:11-12

RESUMO: Há muito tempo a mulher é vítima de atos de violência e discriminação nos mais diversos ambientes em que convive. Esta realidade provocou na sociedade atual, através da ciência jurídica, o despertar para a busca pela igualdade de direitos entre os sexos. A Lei Maria da Penha é o resultado nacional, dentre outras medidas tomadas pelo governo brasileiro, na tentativa de proteger de modo mais eficaz os direitos humanos relacionados à mulher. No entanto nunca foi e nunca será possível que a simples edição de uma lei mude um fato socialmente evidente, antes é preciso que a lei seja cumprida e que seu espírito seja compreendido pela sociedade e pelos agentes governamentais e não-governamentais determinados por ela. Através de pesquisa bibliográfica nos propomos a estudar, entender e expor o surgimento da Lei Maria da Penha e a atuação do Ministério Público brasileiro para cumpri-la, destacando as áreas administrativa, institucional e judicial, além do papel exercido pelo Ministério Público do Estado de Roraima. Com isso, como operadores do Direito e como cidadãos, estaremos mais aptos a agir contra a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Palavras-chaves: Mulher. Direitos Humanos. Lei Maria da Penha. Ministério Público.

SUMÁRIO:INTRODUÇÃO.1. Projeção Histórica.1.1. Ação Internacional..1.1.1. Declaração Universal dos Direitos Humanos...1.1.2. Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres....1.1.3. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – “Convenção de Belém do Pará”.1.1.4. Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento “Cairo” e Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher “Beijing”.1.2. Desenvolvimento Legislativo Brasileiro.1.2.1. Legislação Infraconstitucional.1.2.2. Constituição da República de 1988.1.3. O Caso Maria da Penha perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos .2. Enfim a Lei n° 11.340/2006.3. Ministério Público.3.1. Origens e Funções.3.2. O Ministério Público e a Constituição Federal de 1988.3.3. A Atuação do Ministério Público na Lei Maria da Penha.3.3.1. Atuação Institucional.3.3.2. Atuação Administrativa..3.3.3. Atuação Judicial.3.4. O Ministério Público do Estado de Roraima e a Lei Maria da Penha.CONSIDERAÇÕES FINAIS.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.ANEXO A – Reportagem do Jornal Folha de Boa Vista, versão online, sobre a I Marcha pelo Fim da Violência Contra a Mulher.ANEXO B - Reportagem do Jornal Folha de Boa Vista, versão online, sobre AS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA RECEBIDAS PELO JUIZADO ESPECIALIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER DE RORAIMA.ANEXO C – Notícia extraída do site do Ministério Público do Estado de Roraima sobre as ações governamentais conjuntas para combater a violência doméstica.


INTRODUÇÃO

O presente trabalho, intitulado de Lei Maria da Penha e as atribuições conferidas ao Ministério Público para a sua aplicação, tem como principal objetivo estudar e compreender as funções outorgadas ao Parquet para efetivar os comandos legais da Lei n.° 11340/2006 - Lei Maria da Penha - e destacar as ações do Ministério Público local quanto ao tema.

A desigualdade de tratamento entre os sexos, que se transformou gradualmente no que hoje compreendemos como violência doméstica, é um fato existente há muito tempo. Fato que está arraigado inconscientemente em nós mesmos devido à sociedade que construímos, ao grau de importância que concedemos a uns em detrimento de outros e da excessiva valorização da força bruta, naturalmente encontrada nos homens.

Apesar de a violência familiar, sobretudo contra a mulher, fazer parte do nosso cotidiano (bem verdade que na maioria das vezes acobertada) ela ganhou força como fenômeno social a partir dos anos 70, com os grupos feministas. Embora aparentemente contraditório pode-se dizer que a violência nos lares é democrática, uma vez que não escolhe nacionalidade, cor, sexo, idade e nem classe social.

Em meio a um contexto histórico um pouco diferente das demais leis ordinárias nacionais, a Lei Maria da Penha foi o resultado de movimentos sociais dentro e fora do Brasil que culminaram numa condenação perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, devido à negligência política e da Justiça brasileira nos casos de violência doméstica e familiar. Baseada nos direitos humanos da mulher, a Lei Maria da Penha é produto de ações afirmativas do governo em prol de um grupo (o gênero feminino) carente de maior defesa pela ordem jurídica.

Apesar do evidente esforço dos governos federal, estaduais e municipais de extirpar a violência intrafamiliar dos lares brasileiros, com a propagação da existência de leis e programas específicos, muitos são os que ainda desconhecem a Lei n.º 11340/2006 ou por não a compreenderem não acreditam na eficácia de suas medidas. Em recente pesquisa realizada pelo Instituto AVON em parceria com o grupo IPSOS - considerando um universo de 1800 (um mil e oitocentos) entrevistados, entre homens e mulheres a partir dos 16 (dezesseis) anos de idade, em 70 (setenta) municípios brasileiros (nas cinco regiões), no período de 30 de janeiro a 10 de fevereiro de 2011 - foi possível constatar que:

a)        Apenas 2 (dois) % das pessoas afirmaram saber muito a respeito da Lei Maria da Penha;

b)        36 (trinta e seis) % confessaram já terem ouvido falar, mas admitem não saber quase nada a respeito;

c)        54 (cinqüenta e quatro) % das pessoas, dentre homens e mulheres, disseram que não confiam na proteção jurídica e policial descrita na Lei. 

Após a edição da Lei Maria da Penha foi lançado um novo desafio que a cada dia precisa ser vencido pelo Poder Judiciário, a Defensoria Pública, o Ministério Público e os demais agentes participantes na luta contra a erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher: o de buscar a plena efetivação da lei.

Entender sobre o tema é importante não somente para os operadores do Direito, mas também para a sociedade em geral, já que a mesma é a fiscalizadora das ações governamentais e ao mesmo tempo objeto da atuação estatal. De modo mais prático, saber o que o Ministério Público tem realizado ou aquilo que intenta fazer é um meio do cidadão conhecer os seus próprios direitos e de participar positivamente na construção de uma sociedade mais justa e solidária.

Através do método de pesquisa bibliográfica e considerando todo o exposto pretendemos realizar o trabalho monográfico com base na seguinte questão: Por qual motivo a popularmente conhecida como Lei Maria da Penha outorgou ao Ministério Público “poderes” mais singulares e talvez abrangentes em defesa das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar que os ofertados constitucionalmente ao Parquet, e quais são eles?

E para respondê-la a contento formulamos as seguintes hipóteses:

a) a Lei Maria da Penha deu ao Ministério Público atribuições além das ordinárias em razão do contexto histórico em que foi formada e do objeto de sua proteção, a mulher violentada dentro do seu próprio lar;

b) por opção legislativa, o Brasil, através da edição da Lei Maria da Penha, usou a oportunidade para inovar e acrescentar o papel do Ministério Público diante da sociedade, permitindo ser mais ousado e atuante ao lhe conferir outros mecanismos de atuação.

Por ora, quanto ao desenvolvimento do tema, nos limitaremos a expor que os capítulos estão dispostos em uma lógica seqüencial, do mais extendido ao mais particular, sendo que o primeiro deles trata dos aspectos históricos, desde os primórdios da civilização clássica até o reconhecimento da violência contra a mulher como forma de violação aos direitos humanos; o segundo aborda especificamente a chegada da Lei Maria da Penha, resumindo-a e destacando algumas inovações; o derradeiro capítulo, o terceiro, apresenta o Ministério Público fazendo menção às suas origens e ao seu desenvolvimento nas Constituições brasileiras, além de, finalmente, enumerar e explicar a atuação do MP brasileiro e do local (Ministério Público do Estado de Roraima) no contexto da Lei Maria da Penha.


1. Projeção Histórica

A história é a mãe da verdade, “êmula do tempo, depositária das ações, testemunha do passado, exemplo e anúncio do presente, advertência para o futuro” (Dom Quixote de La Mancha, por Miguel de Cervantes y Saavedra).

O melhor modo de se entender o que ocorre nos nossos dias é conhecer e compreender o vivido no passado. Não seria diferente com a questão da mulher, violência tão específica que foi e ainda é realidade em muitos lares do Brasil e do mundo.

Através dos registros históricos percebemos que desde os tempos mais longínquos, ainda durante a Antiguidade Clássica - com as civilizações dos gregos e dos romanos - a mulher era relegada à situação de mera parte integrante de seu pai ou de seu esposo, nas questões religiosas e civis; a filha, diferentemente do filho, não era considerada herdeira necessária das propriedades da família, devendo ser indicada em testamento para poder receber parte menor que a metade da herança do pai; o casamento, cerimônia eminentemente religiosa, tinha o fim maior de perpetuar a descendência familiar, que caso fosse impossibilitada pela infertilidade da esposa poderia ser desfeito, baseado no direito do homem de repudiar a mulher; o direito à liberdade sexual e à formação dos vínculos afetivos não havia, uma vez que era possível o casamento entre irmãos de mães diferentes (pelo falecimento prematuro do pai comum), o matrimônio com o parente mais próximo (geralmente o tio, que se casado deveria se divorciar para casar-se com a sobrinha, que se fosse casada deveria fazer o mesmo), na hipótese do pai da filha única falecer e a instituição de um tutor ou um segundo marido àquela que se tornava viúva (COULANGES, 1987).    

1.1.       Ação Internacional

A Lei n.° 11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, é o símbolo de uma luta em favor do reconhecimento da igualdade de direitos entre homens e mulheres e a proteção destas contra a violência nos seus mais diversos aspectos. No entanto, até a promulgação desta Lei, largos passos precisaram ser dados mundo a fora.

O anteparo legal à mulher não surgiu como um direito isolado, mas das questões relativas aos direitos humanos.

Apesar da instituição do Direito Internacional dos Direitos Humanos ser recente, as ideias básicas que o formaram são antigas. Os direitos humanos são fruto dos mais diversos pensamentos e tempos, recebendo influência da história das civilizações, da filosofia, do direito natural e da religião, seguimentos que, conjuntamente, entendiam a necessidade de limitar e controlar os atos estatais e das autoridades constituídas por eles próprios, assim como elevar a igualdade e a legalidade em nível de princípios regentes do Estado moderno e contemporâneo (MORAES, 2007).

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Moraes (2007, p. 20) conceitua a expressão direitos humanos fundamentais como:

O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal, e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana (grifo nosso).

A dignidade é um elemento intrínseco a qualquer ser humano, refere-se às necessidades básicas e ao respeito à própria existência e desenvolvimento de cada indivíduo não podendo ser desassociada dos direitos fundamentais [1] (CAVALCANTI, 2010).

Desta forma, considerando que a regulamentação legal da proteção à mulher violentada existe para resguardar a sua dignidade como ser humano, e que a dignidade não pode ser apartada dos direitos humanos fundamentais a qualquer indivíduo, a conclusão adequada somente pode ser uma, a mesma expressada pelo artigo 6º da Lei Maria da Penha, ou seja, a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos.

1.1.1.   Declaração Universal dos Direitos Humanos

Terminada a Segunda Guerra Mundial, - ambiente de terríveis atrocidades cometidas por agentes desrespeitadores dos direitos fundamentais dos homens - em 1948 nasceu o primeiro dos grandes Tratados sobre Direitos Humanos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos[2], aprovada pela Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), a qual traz em seu preâmbulo e artigos não somente a intenção de cuidar e proteger os povos, mas de cada indivíduo como um ser único:

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,  

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum, Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão,   

Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações,   

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,   

Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e liberdades,   Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso,   

A Assembléia  Geral proclama 

A presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.

(...)

Artigo II - Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua,  religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição (grifos nosso).

Foi com a fundação da Organização das Nações Unidas, em 1945, que o ramo do Direito Internacional Público passou a ter maior preocupação com o tema dos direitos humanos (REZEK, 2008), deixando alguns tratados avulsos que anteriormente cuidara para assinar “a mais importante conquista dos direitos humanos fundamentais em nível internacional”, segundo Moraes (2007, p. 17).

 A partir de então se formava um “sistema normativo global de proteção dos direitos e liberdades fundamentais, no âmbito das Nações Unidas” (CAVALCANTI, 2007, p. 88), o qual se ramifica em ações gerais, destinadas a toda e qualquer pessoa, e ações especiais, voltadas a um grupo específico imerso em situações peculiares, de acordo com as especificações dos sujeitos de direito.

Para efetivar as ações deste segundo braço foram criados sistemas regionais, que são autônomos entre si, mas harmonicamente baseados nos princípios emanados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pelos Pactos Internacionais das Nações Unidas. Entre eles há o sistema regional americano, representado pela OEA (Organização dos Estados Americanos), sendo membros todos os 35 (trinta e cinco) países independentes das Américas.

1.1.2.   Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres

No ano de 1975, no México, aconteceu a I Conferência Mundial sobre a Mulher, da qual nasceu, em 1979, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW).

A CEDAW, que objetivava promover a igualdade entre os gêneros e reprimir qualquer forma de discriminação contra a mulher, foi o primeiro instrumento internacional que tratou diretamente sobre o direitos da mulher, falando de questões do trabalho, da saúde, da educação, dos direitos civis e políticos, da família e outros, mas perdendo a oportunidade de mencionar a violência doméstica e sexual. Tal omissão tem reflexos até hoje com a proposta de complementar a CEDAW com a adoção de um Protocolo Opcional para incorporar a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará.

Além de recomendar aos Estados participantes a edição de legislação especial para a proteção da mulher e a prestação jurisdicional baseada na igualdade de direitos entre os gêneros, a CEDAW definiu a expressão discriminação contra a mulher:

Artigo 1º. Para os fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra a mulher" significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.

Em 1981, ratificando em 1984, o Brasil assinou a Convenção com algumas reservas relativas à família, haja vista o ordenamento jurídico nacional existente à época. Após a Constituição de 1988, em 1994, o Brasil retirou as reservas ratificando totalmente a CEDAW e dando-lhe força de lei ordinária.

1.1.3.   Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – “Convenção de Belém do Pará”

A Convenção em comento foi aprovada pela Assembleia Geral da OEA em 6 de junho de 1995, ratificando e ampliando a Declaração e o Programa de Ação da Conferência Mundial de Direitos Humanos, ocorrida em 1993, em Viena.

A Convenção de Belém delimitou e conceituou a violência física, sexual e psicológica contra a mulher, além de garantir em seu artigo 3° que toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, tanto no âmbito público como no privado.

Desde então, nos moldes do artigo 12 da anteriormente citada convenção, qualquer pessoa, ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental pode peticionar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos denunciando casos de violência contra a mulher.

Conforme ensina Cavalcanti (2007, p. 93):

A simples possibilidade de submeter casos de violações de direitos humanos das mulheres ao conhecimento da comunidade internacional já impõe ao Estado violador uma condenação política e moral. A visibilidade e a publicidade das violações trazem o risco do constrangimento político e moral do Estado violador, que será compelido a apresentar justificativas de sua prática no fórum da opinião internacional. Além do constrangimento do Estado, a Comissão Interamericana poderá condená-lo pela afronta a direitos fundamentais assegurados às mulheres, determinando a adoção de medidas cabíveis, como por exemplo, a investigação e a punição dos agentes perpetradores da violência, a fixação de indenização aos familiares da vítima etc. A Comissão Interamericana, contudo não é órgão judicial. Suas decisões não apresentam natureza jurídica normativa. A Corte Interamericana de Direitos Humanos é que constitui o órgão jurisdicional no plano da OEA, tendo suas decisões força normativa obrigatória e vinculante.

Foi por este dispositivo que a cearense Maria da Penha Maia Fernandes pode representar contra o Brasil que se omitiu na resolução dos casos de violência contra ela cometidos por seu esposo, à época dos fatos.

1.1.4.   Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento “Cairo” e Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher “Beijing”

Em setembro de 1994, no Egito, mais de 180 nações reuniram-se para fixar quatro plataformas para qualquer programa de população e desenvolvimento, onde o elemento central, pela primeira vez, foi a saúde reprodutiva e sexual e os direitos da mulher.

Aos Estados participantes foi recomendado que:

a) se estabelecessem mecanismos para que a mulher tenha igual participação e representação em todos os níveis do processo político e da vida pública;

b) se esforçassem para promover a educação, o trabalho e a capacitação da mulher;

c) fosse eliminada toda prática discriminatória.

A IV Conferência Mundial da Mulher, organizada e realizada pela ONU, em Beijing, China, em 1995, aprovou uma Declaração e uma Plataforma de Ação focando a questão da violência doméstica, as medidas punitivas e preventivas, além de meios que apõem a vítima e sua família, bem como a reabilitação dos agressores.

Tais acordos internacionais fomentaram as ações no campo global de proteção dos direitos humanos quanto à proteção da mulher, restando à OEA, representante do sistema regional de direitos humanos da mulher, a edição de um documento específico.

1.2.       Desenvolvimento Legislativo Brasileiro

Até a chegada da Lei Maria da Penha o caminho legislativo brasileiro foi lento e demorado, alterando artigos, retirando outros do ordenamento jurídico e ampliando a proteção já existente. Leis infraconstitucionais precisaram ser criadas e a Constituição de 1988 necessitou se adequar ao ambiente de proteção das liberdades e dos direitos humanos propagado por todo o mundo.

Tudo isso ocorreu pela necessidade de trazer à realidade social a igualdade material entre homens e mulheres, e não somente a igualdade formal já positivada em alguns diplomas legais (VELLASCO, 2007).

1.2.1.   Legislação Infraconstitucional

A primeira das modificações foi a trazida pela Lei n.° 10.455, de 13 de maio de 2002, a qual alterou o parágrafo único do artigo 69 da Lei n.° 9.099 [3], de 26 de setembro de 1995 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais). O novo parágrafo, que vigora até hoje, diz que o autor do fato, no caso de violência doméstica, pode ser, como medida cautelar, afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima.

No ano seguinte, em 2003, por meio da Lei n.° 10.714, o Poder Executivo foi autorizado a disponibilizar nacionalmente, de modo gratuito, um número telefônico operado pelas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, para atender as denúncias de violência contra a mulher.

Com relação ao controle dos atendimentos nos serviços de saúde pública e privada, foi promulgada a Lei n.° 10.778, de 24 de novembro de 2003, a qual estabelece a notificação compulsória, em todo o território nacional. Esta lei aproveita e conceitua, em sede de instrumento normativo nacional, o que se entende por violência contra a mulher, além de estender que para seus efeitos devem ser observadas as convenções e acordos internacionais assinados pelo Brasil.

Por meio do Decreto n.° 5030, de 31 de março de 2004, nasceu o Grupo de Trabalho Interministerial, o qual tinha a tarefa, de em sessenta dias prorrogáveis por mais trinta dias, a partir da publicação da portaria de designação de seus membros, apresentar propostas de medida legislativa e outros instrumentos para coibir a violência doméstica e familiar.

Enfim houve uma modificação mais expressiva na zona de atividade do direito penal, quando em 17 de junho de 2004, a Lei n.° 10.886 acrescentou ao artigo 129 do Código Penal dois parágrafos. Os novos parágrafos, 9° e 10, respectivamente, trouxeram o tipo penal especial denominado violência doméstica e um aumento de pena de 1/3 (um terço) para os casos de lesão corporal de natureza grave, gravíssima e seguida de morte que ocorressem nas circunstâncias indicadas no §9° do mesmo artigo.

A Lei Complementar n.° 119, de 19 de outubro de 2005, acrescentou o inciso XIV ao artigo 3° da Lei Complementar n° 79, de 7 de janeiro de 1994, incluindo a manutenção, pelo Fundo Penitenciário Nacional, o FUNPEN, de casas de abrigo destinadas a acolher vítimas de violência doméstica.

Em 26 de outubro de 2006, o Decreto n.° 5948 aprovou a Política Nacional de Enfrentamento ao tráfico de pessoas e instituiu um Grupo de Trabalho Interministerial aos quais, respectivamente, cabia estabelecer princípios, diretrizes e ações de prevenção e repressão ao tráfico de pessoas e de atendimento às vítimas e elaborar a proposta de atuação do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Cabe ressaltar que o Grupo de Trabalho seria integrado, dentre outros, por representantes da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.

Por derradeiro, mas não menos importante, pelo contrário, um marco legislativo nacional, em 7 de agosto de 2006 surge a Lei n.° 11.340 (Lei Maria da Penha).  De acordo com a própria letra da lei sua intenção é a de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §8° do art. 226 da Constituição Federal, da CEDAW e da Convenção de Belém do Pará; dispor sobre a criação dos JEspVDF c/ Mulher; alterar dispositivos do Código de Processo Penal, do Código Penal e da Lei de Execução Penal; além de dar outras providências sobre o tema.

1.2.2.   Constituição da República de 1988

Conforme os textos até agora exposto e segundo a literalidade do Preâmbulo da Convenção do Pará (1995): “a violência contra a mulher constitui uma violação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais (...)”.

Abrindo um novo tempo no nosso sistema jurídico, seguindo a corrente internacional de proteção dos direitos humanos, veio a Constituição Federal de 1988, trazendo a ideia de um Estado Democrático de Direito e não deixando a oportunidade de registrar em seus primeiros artigos a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República e a promoção do bem de todos, sem preconceito de raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação como um dos objetivos do País.

Uma vez que a Constituição positivou a preocupação nacional com a dignidade da pessoa, essa “norma-princípio, dotada de cogência e força vinculante em relação ao poder público e particulares” (CAVALCANTI, 2010, p. 82) irradiou sobre todo o ordenamento jurídico nacional.

Diferentes das Constituições passadas, os instrumentos internacionais, principalmente os que tratam de direitos humanos, ganharam importante relevância.

Sobre isso ensina Cavalcanti (2007, p. 96):

A nova Constituição, além disso, seguindo a tendência do constitucionalismo contemporâneo, deu um grande passo rumo à abertura do sistema jurídico brasileiro ao sistema internacional de proteção de direitos, quando, no §2° do seu art. 5°, deixou estatuído que ‘os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte’. Assim, as normas de direitos humanos constantes nos tratados ratificados pelo Brasil têm atualmente status de lei federal e devem ser respeitados e aplicados em sua integralidade pelo Estado brasileiro.

Ademais, no capítulo referente à família, à criança, ao adolescente e ao idoso, a CF/88, de modo expresso, demonstra a responsabilidade do Estado em criar mecanismos para coibir a violência doméstica (artigo 226, §8°).

1.3.       O Caso Maria da Penha perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos

Criada em 1959, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos é um órgão da OEA, com sede atual em Washington (EUA). Dentre suas diversas atribuições a principal é, segundo Zadoná e Baretto (2010, p.3):

Promover a observância e a defesa dos direitos humanos (...) mediante o estímulo à consciência dos direitos humanos, a formulação de recomendações aos governos dos Estados Membros sobre políticas em prol dos direitos humanos, da análise de petições e outras comunicações sobre violação de direitos humanos e da publicação de relatórios com informações pertinentes aos direitos humanos levantadas durante certo período de tempo ou após a decisão do mérito de um caso concreto.

 Qualquer pessoa, grupo, ONG que seja reconhecida legalmente por pelo menos um Estado-participante da OEA, a vítima da violação, uma terceira pessoa, com ou sem o consentimento da vítima, podem peticionar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Maria da Penha Maia Fernandes, farmacêutica bioquímica, cearense, permaneceu casada por vários anos com o seu agressor, Marco Antonio Heredia Viveros, colombiano, professor universitário, que veio ao Brasil para fazer mestrado.

Assim que o matrimônio alcançou certa idade chegou com ela uma série de ameaças e agressões psicológicas feitas por Marco Antonio, as quais foram suportadas por Maria da Penha devido ao medo de que mal maior acontecesse a ela e às três filhas do casal.

No ano de 1983, Maria da Penha, enquanto dormia, foi alvo de uma tentativa de homicídio, arquitetada pelo então esposo, que lhe desferiu um tiro de arma de fogo, atingindo sua coluna vertebral e deixando-a paraplégica. Para disfarçar o episódio Marco Antonio simulou uma tentativa de roubo. Após meses de recuperação no hospital a cearense retornou a sua casa, no entanto, outra vez foi alvo da violência doméstica quando Marco Antonio tentou eletrocutá-la no chuveiro.

Dias (2010, p. 16) escreve sobre o caso e registra que:

(...) as investigações só começaram em junho de 1983, mas a denúncia só foi oferecida em setembro de 1984. Em 1991, o réu foi condenado pelo tribunal do júri a oito anos de prisão. Além de ter recorrido em liberdade, ele, um ano depois, teve seu julgamento anulado. Levado a novo julgamento em 1996, foi-lhe imposta a pena de dez anos e seis meses. Mais uma vez recorreu em liberdade e somente 19 anos e 6 meses após os fatos, em 2002, é que M. A. H. V. foi preso. Cumpriu apenas dois anos de prisão e foi liberado.

Devido à morosidade da justiça cearense, em 1998, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) recebeu uma denúncia conjunta pela brasileira Maria da Penha Maia Fernandes, pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e pelo Comitê Latinoamericano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM).

A posição assumida pelo Brasil foi qualificada como de total omissão, já que, por diversas vezes a CIDH incitou o país a se manifestar e este não o fez. A iniciar pela solicitação de informações em outubro de 1998, seguida pela reiteração do pedido em agosto de 1999 e a terceira tentativa em agosto de 2000, inclusive com a aplicação do artigo 39 do Regulamento da CIDH, o qual presumia serem verdadeiros os fatos narrados na denúncia, frente à inércia do Estado brasileiro em não se explicar (CUNHA; PINTO, 2008).

Em março de 2001 a CIDH enviou um relatório ao Brasil contendo recomendações que deveriam ser cumpridas em um mês, entretanto, conforme já vinha ocorrendo desde o início, o país se manteve em silêncio. Enfim, em 16 de abril de 2001, o Brasil foi condenado internacionalmente perante a Comissão, através da emissão do Relatório n.° 54 da OEA que impôs o pagamento de uma indenização na importância de 20 mil dólares, em favor de Maria da Penha, responsabilizando ainda, o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica, recomendando a adoção de medidas que simplificassem os procedimentos judiciais penais (DIAS, 2010). A Comissão entendeu que fora violada tanto a Convenção de Belém do Pará, em seu artigo 7°, quanto o Pacto de São José da Costa Rica, nos seus artigos 1°, 8° e 25.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Suellen Pinheiro Morais

Advogada; Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Roraima; Pós-graduanda em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Brasília.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAIS, Suellen Pinheiro. Lei Maria da Penha e as atribuições conferidas ao Ministério Público para a sua aplicação . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3987, 1 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29038. Acesso em: 28 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos