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Lei Maria da Penha e as atribuições conferidas ao Ministério Público para a sua aplicação

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01/06/2014 às 19:02
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2.Enfim a Lei n° 11.340/2006

Injustificável a falta de consciência do legislador de que a violência intrafamiliar merecia um tratamento diferenciado (DIAS, 2010, p.27).

Anteriormente à edição da Lei Maria da Penha, a grande maioria dos casos de violência doméstica e familiar tramitava nos Juizados Especiais, por amoldarem-se ao conceito legal de infrações de menor potencial ofensivo [4].

A Lei dos Juizados Especiais trouxe considerável avanço ao sistema jurídico brasileiro, entretanto, no caso específico da violência intrafamiliar, a aplicação dos institutos despenalizadores característicos dessa lei deixavam no ar uma sensação de impunidade. Por exemplo, mesmo que a vítima representasse contra o seu agressor era permitido ao membro do Ministério Público transacionar a aplicação de multa ou de pena restritiva de direitos, e sendo aceita a proposta o crime não seria computado para fins de reincidência, não constaria na certidão de antecedentes e nem mesmo geraria responsabilidade civil (DIAS, 2010, p. 28).

Em meio a esse contexto, a recomendação da OEA ao Brasil - para que tomasse efetivas providências a respeito dos casos de violência doméstica – começava a dar esperança às vítimas desse desrespeito aos direitos humanos.

Paralelamente à tramitação da denúncia de violência doméstica na Comissão Interamericana de Direito Humanos, diversas ONG’s iniciaram um movimento com repercussão internacional, o qual se intensificou ainda mais quando o Brasil foi condenado, em abril de 2001.

Acerca disso Cavalcanti (2007, p. 174) ensina que:

(...) a partir daí as organizações não-governamentais brasileiras e estrangeiras com sede no Brasil iniciaram discussões entre si e com representantes da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, com finalidade de elaborar o texto da proposta de lei que incluísse políticas públicas de gênero, medidas de proteção para as mulheres vítimas e punição mais rigorosa para os agressores

Em novembro de 2004 o Projeto de Lei n.° 4.559, de iniciativa do Poder Executivo, foi apresentado ao Congresso Nacional para ser aprovado na Câmara dos Deputados e depois no Senado, onde passou a tramitar como PLC n.° 37/06.

Após todo o trâmite legislativo, nasceu finalmente em 7 de agosto de 2006 a Lei n.° 11.340, publicada no Diário Oficial da União de 8 de agosto do mesmo ano e passando a vigorar a partir de 22 de setembro de 2006.

Em sua obra Dias (2010, p. 17) cita as palavras proferidas pelo à época Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, quando assinou a Lei Maria da Penha: “esta mulher renasceu das cinzas para se transformar em um símbolo da luta contra a violência doméstica no nosso país”.

Conforme a própria ementa do ordenamento legal, a Lei Maria da Penha se propõe a coibir a violência doméstica e familiar, nos moldes do § 8°, do artigo 226, da Constituição Federal de 1988, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; prevê punição mais rigorosa aos agressores, mecanismos de prevenção à violência, meios de assistência às vítimas e políticas públicas a serem adotadas.

O artigo 5° da lei em comento traz louvável direcionamento do conceito e abrangência da violência doméstica e familiar contra a mulher, considerando-a na ocorrência de qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto, independentemente da orientação sexual dos envolvidos.

Adiante, o artigo 7° da mesma lei delimita as formas de manifestação da violência, a saber, a física, a psicológica, a sexual, a patrimonial e a moral, exemplificando as possibilidades de ocorrência:

São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

Dentre as diversas melhorias advindas da Lei n.° 11.340/2006 uma que merece real destaque é a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgão especialmente designado para o processo, o julgamento e a execução desses casos, com competência cível e criminal, atuando em parceria com uma equipe de atendimento multidisciplinar, a ser integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde. 

Observando os aspectos positivos da Lei, Pereira (2007, p. 170-171), propõe que:

(...) o aspecto que eu considero como o de maior avanço dessa lei á a possibilidade de utilização conjunta das normas civis e penais, tanto materiais como processuais. Afirmo que é um avanço porque rompe com um dos mais antigos dogmas que mantemos na ciência do Direito: a compartimentalização do Direito. O dogma que se mantém nas dicotomias: público x privado, civil x penal, processo civil x processo penal. Essa lei, na minha opinião, vai ao encontro do que existe de mais contemporâneo na ciência do Direito, que é o estudo do Direito por problemas e não o estudo do Direito por áreas. A mulher, vítima de violência no âmbito das relações domesticas ou de família, vive um grande problema familiar que, apesar de complexo, para ela é um só, mas, pela nossa tradicional organização judiciária, essa mulher acaba forcada a ver seu problema pulverizado em diversos processos judiciais, em diversos órgãos judiciários, em diversas Promotorias de Justiça. Isso não e só dificultar o acesso a Justiça, é praticamente negar a essa mulher o acesso a Justiça, porque essa mulher não vai conseguir ver chegar ao fim seus diversos processos. Se chegar com vida, ela não mais terá mais qualquer estrutura para acompanhar tantos processos em tantos órgãos judiciários diferentes. Acredito que essa lei avançou muito ao permitir que o mesmo órgão judiciário possa aplicar as normas de direito civil e direito penal, as normas de processo civil e processo penal, e também as normas do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Estatuto do Idoso, quando for o caso.

Analisando a Lei Maria da Penha em todo o seu conteúdo, Cavalcanti (2007, p. 175-193) faz importante comentário acerca do estatuto:

É uma lei que tem mais o cunho educacional e de promoção de políticas públicas de assistência às vítimas que a intenção de punir mais severamente os agressores dos delitos domésticos, pois prevê em vários dispositivos medidas de proteção à mulher em situação de violência doméstica e familiar, possibilitando uma assistência mais eficiente e a salvaguarda dos direitos humanos das vítimas. (...) Cerca de 90% das determinações constantes nos artigos da lei ‘Maria da Penha’ têm cunho eminentemente educativo, ora propondo a implementação de políticas pública (sic) ora preocupada com a proteção das vítimas da violência doméstica. 

Outro ponto inovador são as Medidas Protetivas de Urgência, de natureza cautelar, que devem ser remetidas ao juízo e decididas no prazo de 48 (quarenta e oito) horas. Podem ser requeridas pela própria ofendida ou pelo Ministério Público, posteriormente possibilitando a revisão ou renovação das mesmas. As Medidas Protetivas incidem sobre o próprio agressor, obrigando-o a realizar ou não realizar determinadas condutas, sob pena de aplicação de multa diária ou decretação de prisão preventiva; sobre a vítima, nos aspectos pessoais, patrimoniais e do trabalho.


3.  Ministério Público

De modo bastante breve podemos descrever o Ministério Público dos nossos dias como: uma instituição não pertencente ao Poder Judiciário, mas que trabalha em cooperação aos seus objetivos; executante de funções diversas do advogado público e do privado, mas que tem como tarefa constitucional a tutela da sociedade.

3.1.       Origens e Funções

A maioria esmagadora da Doutrina assevera que o Ministério Público tem seu berço na França, mas há aqueles que citam civilizações mais antigas, como:

a) a dos egípcios: “o funcionário real do Egito Magiai, que possuía funções de castigar os rebeldes, reprimir os violentos e proteger os cidadãos pacíficos” (MAZZILLI, 1996 apud MORAES, 2003, p.490). Por suas atividades este funcionário ficou conhecido como a língua e os olhos do rei.

b) a dos gregos: os Éforos de Esparta que buscavam o equilíbrio entre o poder real e o poder senatorial e os thesmotetis que trabalhavam como acusadores público.

c) a dos romanos: os curadores dos bens do Imperador, os advocatus fisci e os procuratores caesaris - e outras, durante o período da Idade Média.

Entre os mais recentes estão os Procuradores da Coroa Portuguesa que marcaram as épocas das Ordenações Afonsinas, das Manuelitas e das Filipinas.

Além daqueles há os franceses, que por sua importância e maior semelhança com o Parquet atual colaboraram para a formação de um entendimento mais difundido, ao dizer que o Ministério Público foi criado na Ordenação de 25 de março de 1302, do rei Felipe IV, o Belo, a qual vedava aos Procuradores do Rei o patrocínio de outras causas, senão a do próprio rei.

O professor Mazzilli (1993, p. 3) escreve em uma de seus livros que:

(...) Felipe regulamentou o juramento e as obrigações dos procuradores do rei em termos que levam a crer que a instituição já preexistia. Menciona-se que a Revolução Francesa teria estruturado mais adequadamente o Ministério Público, enquanto instituição, ao conferir garantias aos seus integrantes; contudo, foram os textos napoleônicos que instituíram o Ministério Público que a França veio a conhecer na atualidade.

Citando as palavras de Michèle-Laure Rassat o mestre continua:

Um decreto de 1790 deu vitaliciedade aos agentes do Ministério Público; todavia, outro decreto do mesmo ano dividiu as funções do Ministério Público entre dois agentes: um comissário do rei e um acusador público. O primeiro, nomeado pelo rei e inamovível, tinha por única missão velar pela aplicação da lei e pela execução dos julgados; era ele, ainda, que recorria contra as decisões dos tribunais. O acusador público, por sua vez, era eleito pelo povo, com o só encargo de sustentar a acusação diante dos tribunais (1967 apud mazzilli, 1993, p. 3).

No Brasil, a primeira legislação a citar a existência de uma função denominada promotor de justiça foi o Alvará de 7 de março de 1609, que criou o Tribunal de Relação da Bahia. A partir daí o Ministério Público foi tomando espaço nas inúmeras Constituições nacionais, ora muito próximo de como o conhecemos hoje, ora apresentando características retrógradas.

Vejamos:

a) Constituição de 1824: em seu texto não houve menção do Ministério Público como instituição, mas somente a outorga de funções ao Procurador da Coroa e Soberania Nacional que detinha a atribuição da acusação perante o juízo, salvo a dos crimes de iniciativa da Câmara dos Deputados. Durante sua vigência, tanto o Código Criminal, de 1830, como o Código de Processo Criminal, de 1832, continham trechos designando tarefas ao promotor.

b) Constituição de 1891: seguindo a Constituição anterior o Ministério Público ficou mais uma vez sem ser referido como uma instituição. No entanto, decretos anteriores à sua inauguração - como o Decreto n.° 848, de 11 de outubro de 1890, que trata da organização da Justiça Federal e o Decreto n.° 1030, de 14 de novembro de 1890, organizador da Justiça do Distrito Federal – fizeram referência ao Procurador-Geral da República. A Constituição da época inseriu textualmente o Procurador-Geral da República no título referente ao Poder Judiciário.

c) Constituição de 1934: a partir daqui o Ministério Público ganhou status constitucional, alocado topograficamente em espaço próprio, deixou de pertencer ao Poder Judiciário para ser “órgão de cooperação nas atividades governamentais” (LENZA, 2011, p. 753), conforme a expressão do capítulo VI, artigos 95 a 98 da referida Constituição. Recebeu atribuições que lhe dão certa autonomia, como a organização por lei própria, a nomeação do Procurador-Geral da República pelo Presidente da República, o ingresso ao Parquet por meio de concurso público, a legitimação exclusiva para propor a ADI, a regra do “quinto constitucional”, dentre outras.

d) Constituição de 1937: considerando o momento histórico da ditadura imposta por Getúlio Vargas, o Ministério Público foi novamente incluído no capítulo do Poder Judiciário, fato que contribuiu para o retrocesso de algumas regras, enquanto instituição.

e) Constituição de 1946: trazendo ao país novamente a democracia esta Constituição fixou o Ministério Público em título exclusivo, separando-o dos demais Poderes, prevendo a organização do Ministério Público da União e do Ministério Público dos Estados, além de conceder aos seus membros as garantias da estabilidade e da inamovibilidade.

f) Constituição de 1967: a maioria das previsões da Constituição passada permaneceu, salvo a desvinculação do Ministério Público dos demais Poderes, resultando em nova inserção no capítulo referente ao Poder Judiciário.

g) Emenda Constitucional n.° 1, de 1969: analisando as vedações, as garantias e as regras instituídas outrora não houve grandes mudanças, salvo duas que ganharam destaque. A primeira foi a inclusão do Ministério Público como órgão pertencente ao Poder Executivo. A segunda referente à Emenda Constitucional n.° 7, de 1977, que modificou a previsão inicial de que o Ministério Público Estadual seria organizado por lei estadual para lei complementar federal, de iniciativa do Presidente da República, estabelecedora de normas gerais. 

h) Constituição de 1988: o órgão foi mais uma vez afastado dos três Poderes, desta vez dividindo espaço, num capítulo denominado das funções essenciais à Justiça, com a Advocacia Pública, a Advocacia Particular e a Defensoria Pública.

3.2.        O Ministério Público e a Constituição Federal de 1988

A atual Constituição da República inovou radicalmente o cenário jurídico por ter sido a primeira a disciplinar “de forma harmônica e orgânica a instituição e as principais atribuições do Ministério Público” (MAZZILLI, 1993, p. 54).

O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Sepúlveda Pertence, explica que:

(...) a posição do Ministério Público entre os Poderes do Estado, desvinculado do seu compromisso original com a defesa judicial do Erário e a defesa dos atos governamentais aos laços de confiança do Executivo, está agora cercado de contraforte de independência e autonomia que o credenciam ao efetivo desempenho de uma magistratura ativa de defesa impessoal da ordem jurídica democrática, dos direitos coletivos e dos direitos da cidadania [5].

Abrindo a seção I (do Ministério Público), do capítulo IV (das funções essenciais à Justiça), do título IV (da organização dos poderes), o caput do artigo 127 da CF/88 oferece um conceito, nos seguintes termos:

o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Como instituição permanente o Parquet é um dos meios de expressão estatal, sendo um dos órgãos pelos quais o Estado exprime sua vontade na pessoa de seus agentes, os membros ministeriais[6]. No entanto há de se notar que esta instituição está dotada de uma finalidade constitucional de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e dos individuais indisponíveis. (MAZZILLI, 1993, p. 59).

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Neste sentido, ao defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e os individuais indisponíveis, o Ministério Público nada mais faz além de zelar pelo interesse público, mas não um interesse voltado à concretização da vontade da Administração, mas um que vise o bem comum geral, isto é, o interesse da sociedade ou da coletividade (MAZZILLI, 1993, p. 60).

Mazzilli (1993, p. 65), ainda sobre a questão do interesse público e de modo bastante apropriado, expõe que:

Em suma, o objeto da atenção do Ministério Público se resume nesta tríade: a) ou zela para que não haja disposição alguma de um interesse que a lei considera indisponível; b) ou, nos casos em que a indisponibilidade é apenas relativa, zela para que a disposição daquele interesse seja feita conforme as exigências da lei; c) ou zela pela prevalência do bem comum, nos casos em que não haja indisponibilidade do interesse, nem absoluta nem relativa, mas esteja presente o interesse da coletividade como um todo na solução do problema. 

É indiscutível que a Constituição da República de 1988 conferiu ao Ministério Público não somente um status constitucional (ao mencioná-lo como essencial à função jurisdicional do Estado), mas o tornou “um verdadeiro defensor da sociedade” (MORAES, 2003, p. 498), tanto na esfera criminal quanto na cível, outorgando-lhe garantias, vedações e funções institucionais que permitem a livre atuação de seus membros.

A fim de concentrar o exposto até o momento sobre atuação ministerial, quanto às hipóteses que merecem a sua intervenção, trazemos um pequeno trecho da obra de Mazzilli (1993, p. 151):

Em doutrina, tem-se procurado sintetizar em três as causas interventivas da instituição ministerial em juízo: a) defesa de hipossuficientes, quando visa a compensar o desequilíbrio das partes (acidentados do trabalho, favelados); b) defesa de interesses indisponíveis (ligados de forma absoluta ou relativa, a uma pessoa ou a uma relação jurídica); c) defesa do interesse público ou de interesses difusos ou coletivos (ação penal, ações ambientais ou grande parcela de consumidores).

As funções institucionais do Ministério Público devem ser iluminadas pelo zelo de um interesse social ou individual indisponível, ou então, pelo zelo de um interesse difuso ou coletivo. Sua atuação processual dependerá ora da natureza do objeto jurídico da demanda, ora se ligará à qualidade de uma das partes, porque: a) de seus interesses não possam estas dispor, de forma absoluta ou limitada; b) os titulares de seus interesses em litígio padeçam de alguma forma de acentuada deficiência, que justifique a intervenção protetiva ministerial.

Em suma, já deixamos claro que, desde que haja alguma característica de indisponibilidade parcial ou absoluta de um interesse, ou desde que a defesa de qualquer interesse, disponível ou não, convenha à coletividade como um todo, aí será exigível a iniciativa ou a intervenção do Ministério Público junto ao Poder Judiciário.

Quanto às garantias do Ministério Público, podem ser divididas em garantias institucionais, garantias dos membros e vedações ou impedimentos aos membros.

Vejamos:

a) as primeiras referem-se à autonomia funcional, à administrativa e à financeira, as quais foram concedidas pelo legislador constituinte a fim de que o Parquet, como instituição, exercesse com liberdade a sua essencialidade à função jurisdicional;

b) as segundas, expressadas pelas características de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios, foram conferidas aos agentes ministeriais não por sua pessoa, mas em razão da importância da função que exercem. Tanto o é que o artigo 85, II, da atual Constituição Federal entende como crime de responsabilidade do Presidente da República a prática de qualquer ato atentatório contra o livre exercício do Ministério Público;

c) as vedações, que proíbem o recebimento de qualquer valor além do subsídio, o exercício da advocacia, a participação em sociedade comercial, o exercício de qualquer outra função pública, salvo uma de magistério, o exercício da atividade política e o recebimento de qualquer auxílio ou contribuição, foram estabelecidas para que imperasse a imparcialidade no exercício das funções dos membros ministeriais.

Na intenção de colocar em prática o estatuído no caput do artigo 127, da Constituição da República, isto é, a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, a mesma Constituição, desta vez no artigo 129, expôs rol exemplificativo das funções institucionais do Ministério Público: 

São funções institucionais do Ministério Público:

I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

IV – promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição;

V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;

VI – expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva;

VII – exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;

VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;

IX – exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com a sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.

§1º - A legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei.

§2º - As funções do Ministério Público só podem ser exercidas por integrantes da carreira, que deverão residir na comarca da respectiva lotação, salvo autorização do chefe da instituição.

§3º - O ingresso na carreira do Ministério Público far-se-á mediante concurso público de provas e títulos, assegura a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em sua realização, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica e observando-se, nas nomeações, a ordem de classificação.   

§4º - Aplica-se ao Ministério Público, no que couber, o disposto no art. 93.

§5º - A distribuição de processos no Ministério Público será imediata. (grifo nosso)

Cabe lembrar que a atuação ministerial pode ocorrer tanto na seara penal quanto na cível, destacando-se naquela a posição de dominus litis da ação penal pública, isto é o exclusivo dono da ação, o formulador da acusação, mas também o vigilante dos direitos do acusado. Na área cível, ou extrapenal, o Ministério Público tem a possibilidade de trabalhar, por exemplo, como promovedor do inquérito civil e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, como interventor em prol da defesa dos incapazes, como controlador externo da atividade policial, como administrador público de interesses privados nos casos de habilitação matrimonial, de fiscalização de fundações, de aprovação de acordos extrajudiciais e na tomada de compromisso de ajustamento, dentre outras possibilidades estabelecidas em lei. 

Ainda, segundo a posição da doutrina clássica, a atuação ministerial no âmbito do processo civil brasileiro pode se dividir em parte do processo[7] e fiscal da lei (custos legis). Os doutrinadores mais modernos criticam tal divisão, pois atualmente vislumbra-se que não é absoluta, ou seja, nada impede que agindo como parte do processo o Ministério Público possa fiscalizar a aplicação da lei, e nem mesmo intervindo como fiscal da lei possa deixar de ser parte.

Mazzilli (2007, p. 32, 33) apresenta duas classificações distintas, uma baseada na forma da atuação e outra na causa da atuação ministerial. Na primeira, o MP pode se apresentar como legitimado ordinário, como autor; como substituto processual, legitimado extraordinário; como interveniente devido à natureza que a lide apresenta, por exemplo, em processos que envolvem o estado das pessoas; como interveniente em razão da qualidade da parte, por exemplo, em função da situação de vulnerabilidade da mulher vítima de violência doméstica; e como réu, excepcionalmente, por exemplo, ajuizando ação rescisória de sentença proferida em ação civil pública movida pelo Ministério Público.

A segunda classificação, admitida pelo STF no julgamento do RE n.º 248.869/SP, leva em consideração a causa da atuação ministerial, podendo o órgão intervir quando se tratar de interesse indisponível da pessoa, por exemplo, no caso de haver incapaz figurando em um dos pólos da ação; de interesse indisponível da relação jurídica; e de questões de grande repercussão social.

3.3.       A Atuação do Ministério Público na Lei Maria da Penha

Visando a obediência aos ditames constitucionais ao Ministério Público – quanto à defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis – a Lei n.° 11340/2006 previu em seu texto a participação efetiva deste órgão das mais diversas formas.

Conforme Santana a ação ministerial se funda nos mesmos motivos de vivência da Lei Maria da Penha, que são o Estado Democrático de Direito, os Direitos Humanos e os Direitos e Garantias Fundamentais, tendo a lei específica buscado justificar a sua existência no sistema jurídico brasileiro. (2010)

A professora Dias (2010, p. 101) divide a atuação ministerial, no contexto da Lei Maria da Penha, em três esferas: institucional, administrativa e judicial.

Antes de esmiuçar as esferas citadas acima é importante explicar sobre a justificativa da participação do Ministério Público nos casos de violência doméstica, já que a primeira vista trata-se da causa de um indivíduo, apenas, o que distanciaria a intervenção ministerial.

Pois bem, vejamos.

Noutra oportunidade reescrevemos as lições (MAZZILLI, 1993, p. 151) quanto às causas interventivas do Ministério Público em juízo, das quais gostaríamos de realçar a hipossuficiência das partes, isto é, baseado na qualidade deficitária de uma das partes (no caso em apreço, a mulher vitimada) o agente ministerial atua para igualá-la à outra parte.

Para compreender melhor podemos utilizar as lições do Direito Consumerista, que teve como base para a confecção de uma lei especial de tratamento (Lei n° 8078, de 11 de setembro de 1990 – Código de Defesa do Consumidor) a situação de vulnerabilidade do consumidor. Sergio Cavalieri Filho (ALMEIDA, 2000 apud CAVALIERI FILHO, 2009, p. 38) ensina que:

(...) essa é a espinha dorsal da proteção do consumidor, sobre o que se assenta toda a filosofia do movimento. Reconhecendo-se a desigualdade existente, busca-se estabelecer uma igualdade real entre as partes nas relações de consumo. Logo, o princípio da vulnerabilidade, expresso no art. 4°, I, do CDC, é também um princípio estruturante do seu sistema, na verdade o elemento informador da Política Nacional de Relações de Consumo. As normas do CDC estão sistematizadas a partir dessa idéia básica de proteção de um determinado sujeito: o consumidor, por ser ele vulnerável.

Portanto, da mesma forma ocorre no âmbito da proteção da mulher agredida, a qual muitas vezes está subjugada econômica, física, psicológica e/ou sentimentalmente ao seu agressor e por isso necessita da intervenção ministerial.

Dada a notória participação do Ministério Público, a Lei Maria da Penha o destacou em capítulo especial, além de outras disposições esparsas no mesmo diploma legal.

3.3.1.   Atuação Institucional

Conforme preconizam os primeiros artigos da Lei Maria da Penha, o Poder Público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares, as quais serão efetivadas através de um conjunto articulado de ações entre os entes governamentais (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e os não-governamentais.

Especial destaque merece a atuação ministerial no que diz respeito à efetivação das políticas públicas, as quais gozam do compromisso do Estado brasileiro perante a comunidade internacional quando, ratificou os diversos instrumentos supra-estatais anteriormente mencionados, vinculando-se a garantir os direitos humanos das mulheres.

O livro Políticas Públicas: Conceito e Práticas, editado pelo SEBRAE de Minas Gerais, conceitua Política Pública como “(...) a totalidade de ações, metas e planos que os governos (nacionais, estaduais ou municipais) traçam para alcançar o bem-estar da sociedade e o interesse público.” (CALDAS, 2008, p. 5).

Luís Roberto Barroso citado por Maria Berenice Dias (sem ano apud 2010, p. 197) escreve que é “necessária a existência de órgãos, instrumentos e procedimentos capazes de fazer com que as normas jurídicas se transformem de exigências abstratas dirigidas à vontade humana em ações concretas”. Não bastam o planejamento e a positivação de pretensões estatais para o bem estar da sociedade, é imprescindível a movimentação em prol da realização de tais ações.

É neste contexto que o MP está inserido e deve agir. A partir da edição da Lei n.° 7345/85, que disciplina a Ação Civil Pública, e da Constituição Federal de 1988 o órgão ganhou relevância neste ponto, inclusive por ter sido chamado de defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. As políticas públicas são “instrumentos e diretrizes com eficácia suficiente para atingir aquilo que o Poder Constituinte reputou como objetivos elementares de um Estado Democrático de Direito” (FERRARESI, 2009, p. 64).

A Lei Maria da Penha contém um grande número de mandamentos legais[8] que abordam a questão das políticas públicas, direcionados aos mais diversos agentes colaboradores da luta pela erradicação da violência doméstica, dos quais faz parte o Ministério Público.

Assim age o Parquet para a aplicação da lei, integrando-se operacionalmente com o Poder Judiciário, a Defensoria Pública e as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação (artigo 8°, I, Lei n° 11.340/2006).

Também, celebrando convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entre estes e entidades não-governamentais, tendo por objetivo a implementação de programas de erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher (artigo 8°,VI, Lei n° 11.340/2006).

Cunha e Pinto (2008, p. 68 e 69), discorrendo sobre a integração operacional, afirmam que a ausência desse pensamento uno (a integração entre os órgãos) é o maior responsável pelo fracasso do combate à criminalidade. A divisão entre os seguimentos da segurança pública, entre Poder Judiciário e Ministério Público, é fator determinante para impedir a eficácia do serviço público que prestam. A Lei Maria da Penha intentou, através da imposição de comunhão, fazer com que os agentes governamentais e não-governamentais se unissem em prol do combate à violência intrafamiliar.

Pereira (2007) cita que, além das atribuições em sede processual, o Ministério Público, dentro do seu novo perfil constitucional, deve dar cada vez mais atenção às atividades extraprocessuais, por exemplo, reunindo com Delegados e com equipes técnicas, buscando instrumentalizar o caminho e os meios necessários para a efetivação das medidas protetivas de urgência, fiscalizando a instalação e a estruturação das casas-abrigo, as casas de passagem, etc.

À autoridade policial cabe, quando no atendimento às vítimas, além de outras providências, comunicar de imediato o agente ministerial (artigo 11, I, Lei n.° 11.340/2006), bem como remeter a ele os autos do inquérito policial (artigo 12, VII, Lei n.° 11.340/2006).

Em sede de Medidas Protetivas de Urgência, ao juiz foi determinado, após o recebimento do expediente com o pedido da ofendida, comunicar o fato ao Ministério Público para que este adote as medidas recomendáveis (artigo 18, III, Lei n.° 11.340/2006).

Por derradeiro, ao tratar da equipe de atendimento multidisciplinar, além de outras atribuições, a lei dispõe que a ela cabe fornecer subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência.

3.3.2.    Atuação Administrativa

Ainda como meio de efetivação das políticas garantidoras dos direitos humanos das mulheres, os entes governamentais (estando entre eles o Ministério Público) precisam promover estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às causas, às conseqüências e à freqüência da violência doméstica e familiar contra a mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente, e a avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas (artigo 8°, II, Lei n.° 11.340/2006).

Aos órgãos oficiais do Sistema de Justiça e Segurança foi instituída a inclusão de estatísticas sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher em suas bases de dados, a fim de subsidiar o sistema nacional de dados e informações relativos às mulheres (artigo 38, caput, Lei n.° 11.340/2006), contudo, apesar de tal disposição, a Lei apontou individualmente ao Parquet a tarefa de cadastrar os casos de violência doméstica que chegam ao seu conhecimento através de Inquéritos Policiais (artigo 26, III, Lei n.° 11.340/2006).

Quanto à formação de cadastros e estatísticas, Pereira (2007) analisa a questão e expõe que a obrigação ministerial em manter tais dados não significa ter um controle de antecedentes criminais dos agressores, mas criar e manter um perfil dos agressores, das vítimas e do tipo de relação familiar com incidência de casos de violência doméstica, no intuito de melhor atuar nas políticas públicas.

A segunda vertente da atuação administrativa é a fiscalização de estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à vítima, bem como a adoção de medidas administrativas ou judiciais cabíveis para sanar quaisquer irregularidades constatadas (artigo 26, II, Lei n.° 11.340/2006). A Lei Maria da Penha foi bastante genérica neste mandamento não especificando qualquer procedimento. No entanto, o artigo 13, permite aplicação subsidiária do Estatuto do Idoso e do Estatuto da Criança e do Adolescente, além de outros, o que oportuniza a utilização das normas relativas à fiscalização dos estabelecimentos e à apuração das irregularidades dos mesmos.

O procedimento de apuração das irregularidades, nos dois Estatutos, é bastante parecido, podendo ser sintetizado da seguinte forma: é possível ocorrer em entidades governamentais e não-governamentais; pode ser iniciado por representação do Ministério Público, dentre outros legitimados; havendo motivo grave o dirigente da entidade pode ser afastado liminarmente, por decisão judicial fundamentada; o dirigente da entidade deverá apresentar resposta em 10 (dez) dias e havendo necessidade será marcada audiência de instrução e julgamento; salvo manifestação em audiência, as partes e o Ministério Público possuirão 5 (cinco) dias para apresentação de alegações finais, devendo a autoridade judicial decidir em igual prazo; caso seja decidido pelo afastamento, provisório ou definitivo, do dirigente da entidade, o juiz fixará prazo para a imediata substituição; antes de qualquer medida o magistrado poderá optar pela remoção das irregularidades encontradas, as quais, se sanadas, ensejarão a extinção do processo, sem julgamento de mérito; serão impostas ao dirigente da entidade ou ao responsável pelo programa de atendimento a multa e a advertência.

Como ato finalizador da atuação administrativa está a requisição de serviços. Cabe ao Ministério Público, quando necessário, requisitar força policial e serviços públicos de saúde, de educação, de assistência social e de segurança, entre outros (artigo 26, Lei n.° 11.340/2006).

Inicialmente esta disposição parece bastante atrativa e até mesmo respeitadora da intenção de ação conjunta entre os órgãos governamentais e não-governamentais, contudo não é perfeita, uma vez que o vocábulo requisitar, em Direito, tem sentido de ordenar, exigir, o que não seria possível ao Ministério Público, pelo menos diretamente, em face dos serviços de saúde, de educação, de assistência social e de segurança. Há ressalva, em termos de requisição, quanto à força policial a fim de proceder a condução coercitiva, ato que é possibilitado por previsão expressa na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (artigo 26, I, a, Lei n.° 8625/1993).

Cunha e Pinto (2008, p. 164 e 165) tecem crítica bastante ponderada sobre o inciso da Lei Maria da Penha:

(...) explicar a possibilidade do Ministério Público requisitar “serviços públicos de saúde, de educação, de assistência social e de segurança, entre outros”, como quer a lei, é tarefa impossível. Pode até o parquet, em tese, ajuizar ação civil pública, a fim de compelir o Estado, por exemplo, a instalar os equipamentos sociais que a lei prevê, como “centro de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres, casas-abrigos” etc. (art. 35 da lei). Mas jamais ordenar ao poder público que adote tais medidas, sob pena de indevida ingerência na esfera do Poder Executivo, capaz de subverter todo o sistema no qual se funda o pacto federativo. Trata-se, portanto, de dispositivo que carece do mínimo rigor lógico e sistemático que se espera de uma lei, fadado, por isso mesmo, a não gerar qualquer consequência de ordem prática.  

3.3.3.   Atuação Judicial

A última das atuações do Ministério Público - segundo a divisão de Maria Berenice Dias - é a judicial, pela qual pode agir tanto na seara penal quanto na cível, como parte do processo ou como fiscal da lei, independentemente da vítima ser maior de idade e capaz ou estar acompanhada de advogado, sempre em função da vulnerabilidade da mulher (artigo 25, Lei n.° 11.340/2006).

A representação, nos delitos que ensejarem ação penal pública condicionada à representação da ofendida, uma vez adquirida, somente poderá ser renunciada na presença da autoridade judicial, em audiência designada para tanto, antes de recebida a denúncia por ventura oferecida pelo Ministério Público e com a oitiva deste (artigo 16, Lei n.° 11.340/2006). A importância na oitiva do Ministério Público existe porque a representação é condição de procedibilidade, portanto, interfere diretamente na instauração do processo (AVENA, 2009, p. 157-158).

No capítulo referente às Medidas Protetivas de Urgência o artigo 18 da Lei menciona que assim que o juiz receber o expediente com o pedido de medidas protetivas, requeridas pela vítima, tem 48 (quarenta e oito) horas para tomar providências, sendo uma delas a comunicação ao Ministério Público.

Observa-se que, apesar das medidas protetivas também poderem ser requeridas pelo Ministério Público, conforme veremos adiante, para a tomada da decisão o juiz não precisa ouvir previamente o órgão, tão somente comunicando-o a respeito do ocorrido. Isso se justifica pela necessidade de celeridade processual e garantia de imediato atendimento à vítima da violência doméstica (CAVALCANTI, 2007, p. 191).

Em continuidade, quanto às medidas protetivas, o artigo 19 da Lei ensina que, agindo como substituto processual, na função de parte no processo, o Ministério Público pode requerer ao juiz a concessão das medidas, inclusive para renovar ou rever outras já outorgadas, devendo, quando se tratar de renovação ou revisão, o Parquet ser ouvido.

As medidas protetivas se dividem em dois tipos, aquelas que obrigam o agressor e as relativas à ofendida. O artigo 22, que trata essencialmente das medidas que obrigam o agressor, especificamente no § 1°, apresenta a possibilidade da aplicação de outras medidas não previstas na Lei Maria da Penha, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo o Ministério Público ser comunicado. 

Quanto à privação da liberdade do agressor, em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, a autoridade judicial pode decretar de ofício, a requerimento da autoridade policial ou do agente ministerial, a prisão preventiva (artigo 20, Lei n.° 11.340/2006 e a nova redação do artigo 313, II, do Código de Processo Penal). Além disso, é possível o requerimento da prisão temporária, nos moldes da Lei n.° 7960/1989, da quebra do sigilo bancário, do telefônico e da interceptação telefônica, tanto na fase do inquérito policial como da instrução criminal, segundo a Lei n.° 9296/1996, artigo 3°, II.

No capítulo específico da atuação ministerial, o artigo 26, II, trata da fiscalização dos estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em situação de violência doméstica, que conforme já vimos faz parte da atuação administrativa do Ministério Público, embora não somente desta, tratando-se também de atuação judicial, já que a segunda parte do inciso incumbe ao Ministério Público, na qualidade de fiscal da lei, a adoção de medidas judiciais cabíveis no tocante às irregularidades constatadas.

Por fim, no artigo 37, a Lei Maria da Penha reafirma a atuação do agente ministerial em defesa dos interesses e direitos transindividuais[9], concorrentemente com associação atuante na área.

A doutrina clássica divide os interesses em duas categorias, interesse público, subdividido em primário e secundário, e o interesse privado. Aquele envolve o Estado em um dos pólos e o indivíduo noutro, enquanto este compreende dois indivíduos, sejam pessoas físicas ou jurídicas, predominando a vontade dos particulares. Entretanto, com o passar dos tempos e das relações sociais, apesar da existência anterior, no início da década de 1970, foi reconhecida a presença de um novo grupo de interesses, os interesses transindividuais ou metaindividuais.

Os interesses transindividuais, a partir de alguns critérios, se dividem em:

a) interesses difusos: se de natureza indivisível, são comuns a um grupo, classe ou categoria de indivíduos indeterminável e compartilham de uma mesma situação de fato (por exemplo, interesse por um meio ambiente sadio.);

b) interesses coletivos: também de natureza indivisível, porém pertencem a um grupo, classe ou categoria de indivíduos divisíveis ou determináveis, compartilhando de uma mesma relação jurídica (por exemplo, indivíduos específicos assinam um contrato de adesão que contem uma cláusula abusiva, sendo que todos são alvo de tal cláusula.);

c) interesses individuais homogêneos: tem natureza divisível, envolvem um grupo, classe ou categoria de indivíduos determinável e estão reunidos por uma lesão de direito de origem comum a todos (por exemplo, consumidores destacáveis adquirem certo produto que foi produzido com defeito, sendo que todos os lesados terão direito a reparação, individualmente).

Pela leitura do artigo 37 da Lei Maria da Penha, compreendemos que o legislador confirmou a possibilidade do Ministério Público - utilizando a legitimação extraordinária[10], isto é, agindo excepcionalmente em nome próprio para salvaguardar direito alheio – ajuizar a ação civil pública ou ação coletiva, na intenção de forçar o Estado a implementar as políticas públicas pertinentes e a tomar as providências necessárias à defesa da mulher vítima de violência doméstica.

3.4.        O Ministério Público do Estado de Roraima e a Lei Maria da Penha

O estado de Roraima possui ao todo oito Comarcas, sendo uma na capital Boa Vista e as demais instaladas nos municípios de Mucajaí, de Caracaraí, de Rorainópolis, de São Luiz do Anauá, de Bonfim, de Pacaraima e de Alto Alegre. Em todas as Comarcas do interior a competência é única, isto é, todos os feitos são processados e julgados pela Vara Única, composta por apenas um Juiz de Direito.

Assim, no âmbito do Ministério Público, nas Comarcas do interior, encontram-se instaladas Promotorias de Justiça que possuem atribuições para todas as áreas, cuja execução está a cargo de um Promotor de Justiça. Dessa forma, os feitos envolvendo violência doméstica ou familiar, quer sejam inquéritos, ações penais ou medidas protetivas de urgência, são processados e julgados conjuntamente com todas as demais espécies de processos, devendo ser garantida a prioridade no processamento das medidas protetivas, bem como a aplicação da Lei n.º 11340/2006, conforme o parágrafo único do artigo 33:

Art. 33.  Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente.

Parágrafo único.  Será garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para o processo e o julgamento das causas referidas no caput (grifo nosso).

Embora a Lei Maria da Penha estabeleça em seu artigo 14 a possibilidade da criação de Juizados Especializados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência cível e criminal, é forçoso reconhecer que a instalação desses juizados acaba ocorrendo somente nas capitais e em grandes centros urbanos, em face da grande demanda populacional, de inquéritos e de processos judiciais. Por outro lado, nas cidades menores e com pouca demanda, dificilmente os Tribunais criam os juizados especializados, os quais, por força de lei, devem possuir uma estrutura multidisciplinar, exigindo o aumento do quadro de pessoal e do espaço físico.

Em Roraima, no dia em que a Lei Maria da Penha passou a viger, em 22 de setembro de 2006, o Tribunal de Justiça, por meio de sua Corregedoria Geral, editou a Portaria CGJ n.º 065/2006, de 22 de setembro de 2006, publicada no DJE n.º 3454, páginas 04 e 05, do dia 23 de setembro de 2006, atribuindo a competência criminal e cível, dos feitos relativos à violência doméstica e familiar a 2ª Vara Criminal.

Posteriormente, com a edição da Lei Complementar Estadual n.° 154, de 30 de dezembro de 2009 que alterou o Código de Organização Judiciária do Estado de Roraima, a Lei Complementar n.º 002/1993, a competência para o processo e julgamento dos feitos relativos à Lei Maria da Penha foi atribuída a 8ª Vara Criminal.

Entretanto, embora criada a 8ª Vara Criminal pela lei, a mesma nunca foi instalada. Em razão disso, foi editada pelo Tribunal de Justiça do Estado de Roraima a Resolução n.º 08, de 24 de fevereiro de 2010, publicada no DJE n.º 4268, de 04 de março de 2010, páginas 03 e 04, atribuindo a 6ª Vara Criminal, até a instalação da 8ª Vara Criminal, a competência para o processo e julgamento dos feitos relativos à violência doméstica.

Por meio da Lei Complementar n.° 163, de 19 de maio de 2010, o COJERR foi novamente alterado, criando-se o Juizado Especializado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, atendendo a Recomendação n.º 9, do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, publicada no dia 08 de março de 2010.

A instalação dessa unidade jurisdicional ocorreu no dia 17 de junho de 2010, nas dependências das Faculdades Cathedral, que cedeu espaço físico para o funcionamento do JEsp VDF c/ Mulher, da Promotoria de Justiça e da Defensoria Pública. O Tribunal também designou para atuar no juizado uma Juíza de Direito, Dra. Caroline da Silva Braz, que foi a responsável pelas primeiras ações voltadas para o atendimento e acolhimento da mulher num ambiente multidisciplinar.

O juizado, à época, recebeu da 6ª Vara Criminal cerca de três mil processos, entre medidas protetivas, ações penais e inquéritos policiais.

No âmbito do Ministério Público, formalmente ainda não houve a criação de uma Promotoria Especializada para agir nos casos de violência doméstica e familiar, contudo desde a edição da Lei Maria da Penha sempre houve membros do Ministério Público atuando, de acordo com suas atribuições junto às varas criminais que anteriormente à criação do juizado possuíam competência para tal.

Com a instalação do juizado foram designadas para atuar junto à nova unidade jurisdicional as Promotoras de Justiça Carla Cristiane Pipa e Ilaine Aparecida Pagliarini, conforme Portaria de n.º 281, de 17 de junho de 2010, publicada no DJE n.º 4338, de 18 de junho de 2010, página 99, as quais permanecem respondendo até os dias atuais.

A criação formal de uma Promotoria de Justiça Especializada na área de violência doméstica e familiar, via Resolução do Procurador Geral de Justiça, é uma necessidade imperiosa, tendo em vista que a atuação do Parquet deve ser das mais amplas, não somente se atendo ao aspecto judicial, mas também, devido à grande relevância, às atribuições administrativas e institucionais. A realidade atual é entrave ao completo cumprimento das atribuições ministeriais, haja vista que os membros designados cumulam atividades das Promotorias de Justiça de origem, sobrecarregando-os de afazeres, bem como ficam limitados aos termos da Portaria que os estabeleceu.

Com apenas 5 (cinco) anos de Lei Maria da Penha, pouco mais de 1 (um) ano da criação do JEsp VDF c/ Mulher em Roraima e atuando em aproximadamente 6000 processos judiciais o Ministério Público local, por meio de seus agentes e servidores, tem trilhado o caminho para o alcance da real proteção à mulher vitimada. Mesmo em meio às dificuldades - como o desencontro de dados no âmbito estadual e nacional, a falta de um sistema unificado de colhimento das informações sobre os agressores, as limitações advindas da não criação formal da Promotoria de Justiça Especializada, dentre outras que podem surgir durante o labor diário – o MP tem buscado, por meio do exercício de atividades jurisdicionais e extrajudiciais, garantir a aplicação da Lei Maria da Penha no nosso estado.

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Sobre a autora
Suellen Pinheiro Morais

Advogada; Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Roraima; Pós-graduanda em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Brasília.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAIS, Suellen Pinheiro. Lei Maria da Penha e as atribuições conferidas ao Ministério Público para a sua aplicação . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3987, 1 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29038. Acesso em: 19 abr. 2024.

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