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Gênero, cárcere e família: estudo etnográfico sobre a experiência das mulheres no tráfico de drogas

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11/08/2014 às 12:13
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UM PRESÍDIO PARA HOMENS

Como aponta Foucault (apud STELLA, 2001), na história das punições sociais, a prisão foi construída por e para homens, com o objetivo de ser um aparelho que transformasse homens. Marginais e ladrões, depois de devidamente treinados e disciplinados, seriam docilmente reintegrados à sociedade como homens de bem, prontos para serem úteis a si e à nação. Foucault apenas cita que, ao longo da história, mulheres e crianças também estiveram presas, não discutindo, porém, a especificidade do cárcere feminino.

Julita Lemgruber (2001:374), no artigo A mulher e o Sistema de Justiça Criminal: algumas notas, expõe que “as prisões são basicamente planejadas e desenhadas para homens e suas regras são definidas por homens. Na medida em que o número de mulheres presas é menor que o de homens, elas são, em muitos países, incluindo o Brasil, frequentemente alojadas em unidades pertencentes a um complexo prisional masculino, estando sujeitas as regras que não dão conta das suas necessidades específicas.

A partir da Constituição da República de 1988 tornou-se imperativa a observância das orientações humanitárias, para além de recepcionarem a legislação especial até então vigente  – assegurando, assim, enquanto opção política adotada – autonomia política e soberania popular – o caráter fundamental de direitos individuais das mulheres que eventualmente devam cumprir sanções penais. Isto é, muito além da necessidade de estabelecimentos distintos, particularmente em razão do sexo, observa-se que especificamente às mulheres encarceradas foram asseguradas condições especiais.

A legislação penal , seguindo os passos dados pelo texto constitucional, assim dispõe: “o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade (sentença ou pela lei), impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral”. Segundo Aníbal Bruno (apud DEMERCIAN e MALULY, 2012:714), “é no tratamento penitenciário que se realiza a verdadeira individualização da pena e se adotam os processos que a moderna Penalogia  preconiza”. Diz este autor que:

Quando se passa à execução da medida penal, o crime ficou para trás. O que o estabelecimento penitenciário recebe é o homem, que o crime contribuiu para definir, mas cuja personalidade complexa excede à manifestação do fato punível. A esse homem real, na sua íntima natureza, como a observação de todos os dias irá revelar, é que deverá ajustar-se o tratamento ressocializador que a execução da pena representa.

A Carta Constitucional  estabelece que a pena seja cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado, ou seja, mulheres em estabelecimentos femininos e homens nos masculinos, porque na verdade não existe, originariamente, um estabelecimento penal misto. Os presídios masculinos acabam por se transformar em mistos quando o Estado coloca mulheres para neles cumprirem suas penas.

As mulheres são submetidas a regime especial  para a execução da pena privativa de liberdade. Assim, esta será cumprida em estabelecimento próprio, observando-se os deveres e direitos inerentes à sua condição pessoal.

Ao se referir a estabelecimento “adequado à sua condição pessoal”, a lei quer dizer que devem ser levados em consideração o sexo, as condições fisiológicas e psicológicas da mulher.

Quando as mulheres não são colocadas num estabelecimento adequado a elas e sim em presídios masculinos, esses direitos a que a lei se refere não são atendidos, como o exercício da maternidade pela falta da creche, o direito de amamentar seu filho. A liberdade já restrita em razão da condenação fica ainda mais cerceada, já que elas não podem transitar em lugares onde estão os homens, ficando impedidas de ingressar em determinados espaços.

A mulher e o maior de 60 (sessenta) anos, separadamente, serão recolhidos a estabelecimento próprio e adequado à sua condição pessoal .  O mesmo conjunto arquitetônico poderá abrigar estabelecimentos de destinação diversa desde que devidamente isolados. Esta permissão decorre da previsão de eventuais dificuldades materiais na construção de centros penitenciários distintos em sítios diversos.

As Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros , da ONU, estabelecem que as diferentes categorias de presos deverão ser mantidas em estabelecimentos prisionais separados ou em diferentes zonas de um mesmo estabelecimento prisional, levando-se em consideração seu sexo e idade, seus antecedentes, as razões da detenção e o tratamento que lhes deve ser aplicado.

Assim sendo, quando for possível, homens e mulheres deverão ser detidos em estabelecimentos separados; em estabelecimentos que recebam homens e mulheres, o conjunto dos locais destinados às mulheres deverá estar completamente separado.

A Constituição Federal , com o objetivo de atender aos direitos fundamentais das mulheres, dispõe também que às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação.

Para que essa garantia constitucional seja atendida, a lei ordinária  passou a prever que os estabelecimentos penais destinados as mulheres sejam dotados de berçário, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo, até seis meses de idade. Assim, a penitenciária feminina deve ser dotada de seção para gestante e parturiente e de creche para abrigar crianças maiores de seis meses e menores de sete anos .

Destinam-se essas instalações à prestação de assistência ao filho desamparado da mulher encarcerada. Como se sabe, a execução da pena atinge, (in)diretamente, os filhos das condenadas e se torna indispensável que sejam eles assistidos, ao menos enquanto estiverem na idade de dependência estreita com a mãe. Não há obrigatoriedade da existência de tais instalações, mas não há dúvida de que são necessárias.

Tais alterações vieram ao encontro dos tratados e acordos internacionais de que o Brasil faz parte, em que os Estados signatários se comprometem a fazer com que as presas tenham uma forma digna de cumprimento da pena que lhes foi imposta, não permitindo que seus laços familiares sejam rompidos, principalmente com seus filhos menores e/ou recém-nascidos.

O período de amamentação, além de fundamental para o recém-nascido, também evita a depressão pós-parto, uma vez que não rompe com os laços entre mãe e filho. Como se percebe, sem muito esforço, a mulher encarcerada, tal como outra mãe, apega-se ao seu filho, e se puder dispensar-lhe os cuidados necessários, isso fará com que o cumprimento da pena seja menos traumático.

Rogério Greco (2012) assevera, sobre o assunto, que por mais que alguns digam que, na verdade, essas regras implicarão na “prisão” da criança, que se vê obrigada a acompanhar o cumprimento da pena da sua mãe, em muitas situações, essas crianças são “jogadas” na casa de familiares que, mesmo contra a vontade, são obrigados a dispensar os cuidados necessários ao desenvolvimento delas.

Nesta sucinta análise da legislação, podemos observar que não há qualquer previsão, pelo menos expressa, da colocação de mulheres em presídios masculinos. Até então, o que existe é a possibilidade de homens e mulheres serem colocados em prédios distintos de um mesmo conjunto arquitetônico. Observa-se, também, que apesar de a Constituição trazer um novo pensamento no que diz respeito ao encarceramento de mulheres, essas ideias ainda não foram colocadas em prática.

É sabido que o sistema prisional brasileiro está aquém do ideal em relação às questões estruturais e logísticas. Em relação à condição da mulher, é ainda mais grave, pois a elas é destinado o que é possível fazer (adaptar) dentro desse sistema prisional masculino.

Nas condições em que as mulheres são colocadas nos presídios masculinos o que se observa é que os direitos delas, que na verdade são mais do que direitos, são garantias individuais constitucionais violadas pelo Estado, transformam a execução da pena em uma punição ainda maior.Apesar do crescimento significativo de mulheres encarceradas, o Estado não faz novos investimentos de forma a atender as especificidades dessa população.  O que se vê é o improviso, como o que aconteceu em Bagé, onde o ambulatório foi transformado em “cela” feminina, ou seja, são colocadas em espaços que não passam de apêndices do estabelecimento masculino. Os prédios construídos para prisões masculinas acabam por serem readaptados para comportar o aprisionamento de mulheres. 

Karyna Sposato (2007) ressalta que as mulheres estão expostas a padecer os sofrimentos do encarceramento de uma forma mais aguda, e não porque sejam menos adaptáveis, senão porque as condições materiais, físicas e sociais de seu confinamento são significativamente diferentes.

A mulher grávida que ganha seu filho na prisão não tem atendidas as condições para o exercício da maternidade, como, por exemplo, um espaço separado para ela permanecer com o filho até os seis meses de idade para poder amamentá-lo e cuidá-lo.

Nesse caso, em razão das alterações introduzidas no Código de Processo Penal  (CPP), o juiz tem a faculdade de colocar a mulher condenada em prisão albergue domiciliar a partir do sétimo mês de gravidez ou com gravidez de risco e, após o nascimento da criança, permanecerá por mais um mês em casa, devendo retornar à prisão após esse período para terminar de cumprir sua pena. Essas medidas mostram-se de fundamental importância para a melhor garantia dos direitos da mulher e de seu filho.

Quando falo nos direitos da mãe que está no cárcere, refiro-me também ao direito fundamental da criança à convivência familiar e ao de ser cuidada por sua família de origem, de acordo com o disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente  (ECA). Não esqueçamos que a preservação do vínculo familiar já era preocupação expressa da Convenção dos Direitos da Criança , na qual se reconhece o direito da criança separada de um ou de ambos os pais de manter regularmente relações pessoais e contatos diretos com ambos, garantindo o direito, tanto da criança quanto dos familiares, à informação sobre o paradeiro do membro familiar que teve sua liberdade restrita pelo Poder Público.

Também em razão da escassez de vagas decorrente da adaptação que é feita nos presídios masculinos, as mulheres experimentam condições piores de privação de liberdade que os homens condenados pelos mesmos delitos.

Na prática, diz Nucci:

Lamentavelmente, o Estado tem dado pouca atenção ao sistema carcerário, nas últimas décadas, deixando de lado a necessária humanização do cumprimento da pena, em especial no tocante à privativa de liberdade, permitindo que muitos presídios se tenham transformado em autênticas masmorras, bem distantes do respeito à integridade física e moral dos presos, direito constitucionalmente imposto (NUCCI, 2007:943).

Segundo o professor Luiz Antônio Bogo Chies (2011:9), “os espaços prisionais dos estabelecimentos não foram projetados para o encarceramento misto; tornaram-se mistos por pressões conjunturais e por opções político-penitenciárias. Nesses contextos, o compartilhar de alguns espaços produz situações dramáticas e que são mascaradas por ambiguidades que invisibilizam as perversidades carcerárias”. Chies (2011:9) denomina estes lugares de “estabelecimentos masculinamente mistos”. Se as prisões são, de forma inerente e inevitável, lugares ofuscados e de ofuscação para as mulheres encarceradas em presídios masculinos, os processos de invisibilização – os quais perpassam os espaços prisionais destinados e as estratégias de afetação de subjetividades, de “mortificações do Eu” (CHIES apud GOFFMAN, 1990) – avançam sobre uma dimensão que lhes deveria garantir dignidade na diferença e na igualdade; a dimensão dos direitos e das garantias judiciais.

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Sabrina Rosa Paz (2009:33), em sua dissertação de mestrado, cita o estudo realizado pelo Grupo Interdisciplinar de Trabalhos e Estudos Penitenciários, coordenado pelo Prof. Dr. Luiz Antônio Bogo Chies, que observou que a prática do encarceramento de mulheres em presídios projetados para homens amplia a invisibilidade da mulher presa, bem como aumenta as perversidades do encarceramento em virtude das sobrecargas de punições dirigidas àquelas que nele são inseridas, tais como: o rompimento dos vínculos e das relações sócio-afetivas; privações materiais; afetação da identidade e da autoestima; rótulos e estigmas; violação de direitos, que iremos abordar no próximo capítulo.

Embora a mulher pareça invisível ao sistema penal pela sua representatividade, considerando as estatísticas, o sistema penal e, especificamente a prisão, podem lhe impingir consequências significativamente mais penosas. Para Sposato (2007), o endurecimento do sistema penal mediante a adoção de penas estendidas e limitação ao regime de garantias e/ou benefícios penitenciários, somada ao número reduzido de estabelecimentos destinados a mulheres, produz taxas de superlotação bastante graves em se tratando do encarceramento feminino.O trabalho a ser oferecido também difere do proporcionado aos homens, mas sempre cumpre anotar que não pode limitar-se a atividades domésticas sem expressão econômica.

O presídio feminino não deve constituir seção ou anexo de estabelecimento prisional masculino, pois a subcultura carcerária que se forma no estabelecimento destinado aos homens não pode contaminar o estabelecimento feminino.

Assevera Miguel Reale Júnior (2013) que a perda da liberdade, todavia, não pode levar à perda da dignidade, e para tanto, a fim de não acrescentar à prisão ainda maiores gravames, é necessário minimizar ao máximo os malefícios próprios da vida prisional.

Diz o autor que a tarefa da prisão é de “humanizar e punir”, tarefa essa repleta de contradições e percalços, mas ainda assim deve ser tentada, com os olhos voltados a manter a higidez física e mental do encarcerado, de forma a ensejar-lhe a visualização de um horizonte, de uma perspectiva, apesar dos muros da prisão que antes impedem a entrada de valores positivos do que a fuga dos presos.

Em 2010, foi divulgado pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) documento importante para o processo de visibilização das mulheres encarceradas: as “Reglas de lãs Naciones Unidas para el tratamiento de lãs reclusas y medidas de no privativas de liberdade para lãs mujeres delincuentes (Reglas de Bangkok)”.

Nesse documento, podemos encontrar disposições referentes às particularidades do encarceramento feminino, permanecendo válidas e aplicáveis as regras para o encarceramento, de modo geral: as Regras de Bangkok, que visam complementar as Regras Mínimas para tratamento de pessoas presas , e as Regras de Tóquio , que tratam de medidas não privativas de liberdade e são endereçadas às autoridades penitenciárias, órgãos e agentes atuantes no sistema de justiça criminal.

Essas regras tratam da temática das mães no cárcere, como o direito da mulher, no momento da prisão, de poder definir como dispor sobre seus filhos, para evitar que as crianças fiquem desamparadas e sejam inseridas de forma desnecessária em programas de acolhimento institucional. Preocupam-se, também, com a manutenção dos vínculos entre a mãe encarcerada e seus filhos, incluindo disposições sobre a visita e sua importância.

Nas palavras de Rampín:

A invocação deste novo instrumento serve para evidenciar uma tendência, antes que meramente normativa, de ampliar e expandir a própria compreensão de direitos humanos e regras de encarceramento que, a partir das especificidades de gênero e da contextualização histórico-cultural do próprio encarceramento, permitem o alargamento do reconhecimento de direitos, bem como contribui para a efetivação do enfoque de gênero necessário, sem o qual a violência contra a mulher seguirá ocorrendo em nível institucionalizado (RAMPÌN, 2011:61).

A autora ainda considera que referida visibilização é necessária como primeiro movimento para o enfrentamento do absurdo de um sistema que age segundo um paradigma antropocêntrico a despeito da existência de outras realidades, ocultadas e aviltadas de forma sistemática.A meu ver, não ocorre uma dupla punição, mas tripla, que se encontra na privação de liberdade em razão da própria condenação; no fato de cumprirem suas penas num presídio masculino, o que restringe ainda mais a liberdade de locomoção e as submete a tratamento que não considera suas necessidades e, em consequência disso, na ruptura das relações familiares, especialmente o afastamento de seus filhos. Passam, assim, a sofrer uma sobrecarga de punição.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERNARDI, Maria Luiza. Gênero, cárcere e família: estudo etnográfico sobre a experiência das mulheres no tráfico de drogas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4058, 11 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29115. Acesso em: 22 nov. 2024.

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