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A reprodução humana assistida homóloga post mortem: uma análise à luz do Direito Sucessório brasileiro

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7 LEGITIMAÇÃO SUCESSÓRIA NA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA POST MORTEM

Apesar de o ordenamento jurídico brasileiro tratar da possibilidade de reprodução assistida, inclusive após a morte do cônjuge, o Código Civil apenas referiu-se à presunção de paternidade dos filhos oriundos da utilização das referidas técnicas, sendo omisso em relação ao procedimento que na prática deve ser seguido no que diz respeito ao direito sucessório.

Beraldo (2012) ensina que imediatamente após a abertura da sucessão transmite-se a herança, sendo que neste momento se deve averiguar a legitimidade dos herdeiros para receber seu quinhão hereditário. Seguindo esse entendimento, dispõe o art. 1.798 do diploma civil que são legitimadas a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão.

No entanto, Beraldo (2012) salienta que o projeto do Código Civil de 2002 derivou de estudos que se iniciaram na década de 1960, quando não se falava na reprodução assistida. Desta forma, verificava-se que a concepção se dava pela relação sexual, sendo o prazo natural para o nascimento o de até 300 dias. Ocorre que, com os avanços tecnológicos, é possível que haja a concepção por outros meios que não o ato sexual, podendo agora os prazos para nascimento ser indefinidos. Ainda, para Gama (apud BERALDO, 2012), o art. 1.798 do CC adotou o parâmetro do art. 1.798 do CC de 1916 ao se referir apenas às pessoas já concebidas. Desta forma, a regra contida no art. 1.798 do Código Civil não está de acordo com os avanços científicos no campo da medicina reprodutiva.

Ocorre que, como mencionado anteriormente, a Constituição Federal proíbe qualquer tipo de distinção entre os filhos, independentemente de sua origem. Assim, conforme Beraldo (2012), nascendo a criança em decorrência das técnicas de reprodução assistida, mesmo após a morte de seu genitor, terá ela os mesmos direitos dos demais descendentes.

Diante da omissão legislativa no que diz respeito aos direitos sucessórios do filho concebido post mortem, as posições doutrinárias são muito divergentes.

Parte da doutrina sustenta que o filho concebido após o falecimento do genitor não será herdeiro legítimo, podendo, apenas, ser herdeiro testamentário, fazendo analogia ao disposto no art. 1.799, I, do Código Civil, que trata da possibilidade de a prole eventual de terceiro ser chamada a suceder, dando a entender que seria possível outorgar esse direito à prole do próprio testador, desde que haja expressa autorização do falecido para tanto.

Outra parte da doutrina defende que ao filho concebido após o falecimento do genitor são assegurados os direitos à herança, tanto a testamentária quanto a legítima, levando em consideração o princípio da igualdade entre os filhos, disposto no artigo 227, § 6º, da Constituição Federal, bem como o que preceitua o Código Civil Brasileiro em seu art. 1.597, III e IV, que traz a presunção de concepção na constância do casamento.


8 PRAZO PARA IMPLEMENTAÇÃO DO GAMETA OU EMBRIÃO CONGELADO APÓS A MORTE DO GENITOR

Segundo Beraldo (2012), no que diz respeito ao direito sucessório, não foi estabelecido qualquer prazo para a implementação do gameta ou embrião congelado após o falecimento do genitor. Ocorre que, atualmente, com as inúmeras inovações no campo das ciências, existe a possibilidade de os embriões congelados serem implantados no útero da mulher muitos anos após terem sido congelados.

Para Leite (apud BERALDO, 2012, p. 128), “Se o legislador não delimitar um prazo de possibilidade de acesso ao recurso, certamente, a técnica poderá gerar embaraços cada vez maiores na esfera jurídica”.

Desta forma, conforme refere Beraldo (2012) é de grande valia que, em um estatuto específico, seja fixado um prazo, de preferência não muito extenso, para a implantação do material reprodutivo ou do embrião congelado no útero da mulher.

Com relação ao prazo para implantação do gameta ou do embrião congelado, Albuquerque Filho (apud BERALDO, 2012, p. 129) faz a seguinte colocação:

Caberia ao autor da sucessão quando manifestou a sua vontade por documento autêntico ou por testamento fixar o prazo de espera do nascimento dos filhos, o qual não deve ultrapassar os dois anos previstos para concepção da prole eventual de terceiro, ou, não havendo prazo previamente estabelecido aplicar-se, por analogia, o prazo constante do art. 1.800, § 4º, do Código Civil, ou seja, de dois anos a contar da abertura da sucessão.

No que diz respeito à estipulação de um prazo para a concepção do herdeiro após a morte de seu genitor, Barboza (apud BERALDO, 2012, p. 129), faz algumas importantes considerações. Segundo o entendimento da autora, uma solução seria a aplicação do prazo de dois anos após a abertura da sucessão. Se, passado este período, o filho não fosse concebido, salvo disposição testamentária em contrário, passariam os bens do de cujus aos herdeiros legítimos. Assim, os filhos concebidos após o término do prazo de dois anos contados da abertura da sucessão não seriam considerados herdeiros.

Por outro lado, a autora refere que caso fosse estabelecido um prazo para a implantação do material genético ou embrião congelado, haveria restrição da possibilidade de herdar, afrontando, desta forma, o princípio da igualdade entre os filhos.

Afirma Beraldo (2012) que a fixação do referido prazo impediria o prolongamento excessivo e indefinido da situação e ainda impediria o nascimento de uma criança desprotegida financeiramente e em desigualdade aos seus irmãos. Entretanto, ressalta que, caso houvesse o descumprimento da norma e o filho fosse concebido após o término do prazo, este não poderia sofrer discriminações, devendo ser considerado herdeiro necessário, independente da época do nascimento.

A respeito do assunto, aduz a autora que é imprescindível a criação de uma lei específica que regule o tema, onde deverá ser fixado o prazo, introduzidas restrições, esclarecidos o questionamentos acerca da procriação assistida, bem como a imposição de sanções aos responsáveis pelo descumprimento das normas.


9 FORMAS DE SE GARANTIR OS DIREITOS HEREDITÁRIOS DO FILHO CONCEBIDO PORT MORTEM

Segundo Beraldo (2012), considerando o direito fundamental à herança, previsto no art. 5°, inciso XXX, da Constituição Federal, bem como o princípio da igualdade entre os filhos, previsto no art. 227, § 6°, do diploma constitucional, nascendo o filho póstumo, terá este os seus direitos hereditários garantidos, podendo esta garantia se dar através da sucessão testamentária, bem como da legítima.

Cumpre transcrever o pensamento de Gonçalves (2011, p. 76):

Se, assim, na sucessão legítima, são iguais os direitos sucessórios dos filhos, e se o Código Civil de 2002 trata os filhos resultantes de fecundação artificial homóloga, posterior ao falecimento do pai, como tendo sido “concebidos na constância do casamento”, não se justifica a exclusão de seus direitos sucessórios. Entendimento contrário conduziria à aceitação da existência, em nosso direito, de filho que não tem direitos sucessórios, em situação incompatível com o proclamado no art. 227, § 6º, da Constituição Federal.

9.1 SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA

Diante da sucessão testamentária, a garantia do direito de herança ao filho concebido postumamente pode se dar através dos institutos da prole eventual e do fideicomisso (BERALDO, 2012).

9.1.1 Prole Eventual

Com relação à prole eventual, dispõe o art. 1.799 do Código Civil que “na sucessão testamentária podem ser ainda chamados a suceder: I – os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir a sucessão”.

Beraldo (2012) refere que a partir desse dispositivo se inicia a primeira discussão, que diz respeito à possibilidade ou não de o testador favorecer o seu próprio descendente por meio do instituto da prole eventual, sendo a matéria controversa. Explica a doutrinadora que alguns autores como Giselda Hironaka e Maria Helena Machado defendem que não é possível que o testador indique sua própria prole eventual, já que a lei exige que a pessoa indicada pelo testamento esteja viva no momento da abertura da sucessão, enquanto que outra parte da doutrina, representada por Juliane Queiroz e Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho, defende que se o testador pode atribuir a sua herança à prole eventual de terceiro, poderá também atribuí-la à sua própria prole. Apesar das divergências doutrinárias, Beraldo (2012) afirma que o entendimento majoritário, diante das evoluções tecnológicas no campo da medicina reprodutiva, é no sentido de que é possível a indicação de prole eventual própria.

Ainda, outro ponto a ser discutido é que parte dos doutrinadores, como Sílvio de Salvo Venosa e Maria Helena Diniz, defendem que a sucessão testamentária, quando houver expressa disposição em favor de prole eventual do autor da herança, é o único meio de se garantir os direitos hereditários do filho concebido postumamente. Neste sentido, Diniz (apud BERALDO, 2012) afirma:

[...] Poderia ser herdeiro por via testamentária, se inequívoca for a vontade do doador de sêmen de transmitir herança ao filho ainda não concebido, manifestada em testamento. Abrir-se-ia a sucessão à prole eventual do próprio testador, advinda de inseminação artificial homóloga post mortem.

Hironaka (apud BERALDO, 2012) entende que as pessoas contempladas no inciso I do artigo 1.799 do Código Civil somente podem ser agraciadas com herança ou legados através de testamento. No entanto, conforme explica Beraldo (2012), embora o referido artigo do diploma civil refira-se à sucessão testamentária, nada impede que os ali contemplados não possam ser herdeiros legítimos. Nesse sentido, Scalquette (apud BERALDO, 2012) esclarece que não ocorrendo o nascimento do beneficiado no prazo de dois anos, perderá este a deixa testamentária, mas seu direito à legítima permanece.

No que diz respeito ao procedimento para o reconhecimento da prole eventual, Beraldo (2012) afirma que deverão ser seguidas as regras contidas no art. 1.800, do Código Civil.

Assim, conforme bem conclui a autora, o instituto da prole eventual pode ser utilizado para nomeação do herdeiro via testamento, no entanto, por se tratar de mera liberalidade do testador, não protege totalmente os direitos da criança. Ainda, cabe destacar que não é o único meio de se garantir os referidos direitos, uma vez que existe a possibilidade da substituição fideicomissária, na sucessão testamentária; e da petição de herança na sucessão legítima.

9.1.2 Substituição Fideicomissária

A respeito do instituto previsto no art. 1.951 do Código Civil, Gonçalves (2011, p. 404) refere que “verifica-se a substituição fideicomissária quando o testador nomeia um favorecido e, desde logo, designa um substituto, que recolherá a herança, ou legado, depois daquele.” Segundo o autor, há, no fideicomisso, três personagens: o testador, chamado de fideicomitente; a pessoa de confiança do testador, que é chamada a suceder em primeiro lugar para cuidar dos bens deixados, denominada fiduciário; e fideicomissário, destinatário da herança, que a receberá quando da morte do fiduciário, quando realizada determinada condição ou, ainda, quando decorrido o tempo determinado pelo testador. Desta forma, conclui-se que o instituto do fideicomisso trata-se de mais uma forma que o autor da herança pode se valer para beneficiar pessoa ainda não nascida no momento da abertura da sucessão.

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Em outras palavras, Beraldo (2012) explica que o fideicomitente institui, através da sua disposição de última vontade, que determinados bens ficarão sob a guarda do fiduciário até que ocorra uma condição pré-determinada pelo fideicomitente. Ocorrida a condição, o fiduciário deverá transferir a propriedade dos bens ao último destinatário, que é o fideicomissário.

Vale esclarecer que, conforme dispõe o art. 1.952 do Código Civil, o instituto a substituição fideicomissária só poderá ser instituída em favor dos não concebidos ao tempo da morte do testador fideicomitente.

Para Beraldo (2012), apesar de não ser tão comum, o fideicomisso pode ser utilizado para a designação de bens ao filho gerado através das técnicas reprodução humana assistida post mortem. Destaca a autora que no fideicomisso não há um prazo pré-estabelecido, após a morte do autor da herança, para que o filho venha a nascer, diferentemente da prole eventual, que estabelece um prazo de dois anos. Ainda, esclarece que caso o genitor deseje contemplar o filho a ser concebido após o seu falecimento, mas não saiba exatamente quando sua prole irá nascer, o mais recomendado é que se utilize do instituto da substituição fideicomissária.

9.2 SUCESSÃO LEGÍTIMA

Conforme analisado anteriormente, o filho concebido post mortem possui capacidade sucessória, sendo que parte da doutrina sustenta que o filho póstumo só tem legitimidade sucessória na sucessão testamentária, enquanto que outra parte da doutrina defende que ao filho concebido após o falecimento do genitor são assegurados os direitos à herança, tanto a testamentária quanto a legítima.

No entendimento de Beraldo (2012, p. 163-164), não deve prevalecer a corrente que defende o direito à herança somente por meio da sucessão testamentária, pois, não havendo testamento, “o descendente estaria excluído do chamamento hereditário.”

Como solução, esclarece a autora acima mencionada que, com a morte do autor da herança, o mais correto é que ocorra a partilha dos bens por ele deixados entre os herdeiros existentes à época da abertura da sucessão. Nascendo o filho concebido postumamente após o início da partilha, poderá ele ingressar com a ação de petição de herança, nos termos do art. 1.824, do Código Civil, para que seus direitos sejam assegurados.

9.2.1 Da Ação de Petição de Herança

Nas palavras de Beraldo (2012), a sucessão legítima é um direito assegurado ao herdeiro e, tendo o filho sido reconhecido como tal, possui a faculdade de reclamar a sua quota-parte por meio da ação de petição de herança, prevista no art. 1.824, do Código Civil.

Rodrigues (2002, p. 87) conceitua a ação de petição de herança como aquela que “pode ser interposta pelo herdeiro, “com a finalidade de ser reconhecido o seu direito sucessório, e obter, consequentemente, a restituição da herança – no todo ou em parte – de quem a possua, na qualidade de herdeiro, ou mesmo sem título”. Gonçalves (2011) afirma que, pelo princípio de saisine, a herança pertence ao herdeiro desde a abertura da sucessão. Entretanto, explica o autor que pode estar investida na herança pessoa com aparência de herdeiro, em detrimento do verdadeiro sucessor. Como exemplos, Rodrigues (2007) cita a posse, pura e ilegal, da herança ou de parte dela, por alguém, bem como o ingresso de ação investigatória de paternidade cumulada com petição de herança por parte de filho não reconhecido, entre outros.

Segundo Beraldo (2012, p. 167), “A ação de petição de herança pode ser intentada por qualquer dos herdeiros contra terceiros ou co-herdeiros, com o objetivo de ter garantido o seu quinhão hereditário. Segundo a autora, no que diz respeito à reprodução assistida post mortem, a criança poderá pleitear o seu quinhão hereditário por meio da ação de petição de herança. A esse respeito, a autora cita o Enunciado n° 267 do Conselho da Justiça Federal, que dispõe:

A regra do art. 1.798 do Código Civil deve ser estendida aos embriões formados mediante o uso de técnicas de reprodução assistida, abrangendo, assim, a vocação hereditária da pessoa humana a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às regras previstas para a petição de herança.

Ainda segundo a referida autora, o filho concebido post mortem poderá ingressar com ação de investigação de paternidade, de maneira autônoma ou cumulada com a petição de herança, a fim de estabelecer a pré-condição de hereditariedade. Esclarece ainda que a referida ação pode ser intentada antes ou após a partilha. Se for ajuizada antes, poderão ser reservados bens através de medidas cautelares. Se for intentada após, sendo procedente o pedido contido na ação, terá o réu que devolver os bens, devendo ser realizada nova partilha, incluindo o herdeiro reconhecido.

Beraldo (2012) refere que, na prática, caso se observe que será impossível efetuar a divisão de bens, é melhor que a questão da reprodução humana assistida post mortem seja revista e, quem sabe, vedada. No entanto, o filho não pode ser desprotegido por razões práticas e, por ser herdeiro necessário, tem direito à sucessão, devendo ter todos os seus direitos assegurados.

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Sobre o autor
Helena Soares Souza Marques Dias

Bacharel em Direito pela Universidade da Região da Campanha - URCAMP, aprovada no XII Exame Unificado da Ordem dos Advogados do Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Helena Soares Souza Marques. A reprodução humana assistida homóloga post mortem: uma análise à luz do Direito Sucessório brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4069, 22 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29287. Acesso em: 26 abr. 2024.

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