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Poder de polícia de trânsito:

legitimidade e delegação

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18/06/2014 às 08:08
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3 CONSIDERAÇÕES GERAIS

A Administração Pública é composta pelo conjunto de órgãos governamentais que têm o objetivo de satisfazer os interesses do Estado. Dentre os diversos poderes que lhe são inerentes, destaca-se o Poder de Polícia, que visa manter a supremacia do Estado em relação a seus administrados.

Salienta-se que o Poder de Polícia da Administração não se confunde com o Poder da Polícia de Segurança Pública. Este é exclusivo das forças literalmente policiais, enquanto aquele pode ser exercido por qualquer órgão da Administração Pública direta ou indireta. Cabe lembrar ainda que uma das atribuições das forças policiais é garantir o cumprimento do Poder de Polícia administrativo dos demais órgãos.

Alguns doutrinadores afirmam que o Poder de Polícia surgiu concomitantemente com o reconhecimento dos primeiros direitos dos cidadãos, na segunda metade do século XVIII, quando o Estado abriu mão de parte do seu autoritarismo. Acredita-se que os administrados começaram, desde aquela época, a exceder em seus direitos, fazendo com que o Estado criasse uma forma de coerção para evitar abusos. É interessante esta teoria porque percebe-se nitidamente que até hoje o Poder Público continua buscando – muitas vezes sem sucesso – formas de coibir o abuso por parte de seus administrados.

Em síntese, o Poder de Polícia refere-se ao poder-dever da Administração Pública de restringir ou limitar a liberdade ou a propriedade do indivíduo com intuito de preservar o bem comum, ou seja, os interesses da coletividade. Diz-se poder-dever porque não há discricionariedade na intervenção Estatal, ou seja, se atos individuais colidirem com interesses coletivos, aqueles devem ser reprimidos.  Todavia, ressalta-se que não é facultado, ou melhor, é proibido ao Poder Público extinguir qualquer direito do cidadão, pode-se apenas limitar ou restringir o exercício dos direitos à liberdade e à propriedade.

Para exercer o Poder de Polícia que lhe é típico, o Estado deve basear-se em três premissas: fazer somente o que a lei permite, abstendo-se de executar o que ela não proíbe; basear suas ações no interesse público, coletivo, mas não nos interesses dos administradores públicos; e constituir somente agentes que detenham legitimidade para exercer esse poder.

A autorização para que os agentes exerçam o Poder de Polícia deve estar expressa em lei, pois, ao se tornarem detentores do poder coercitivo do Estado, poderão aplicar as mais diversas sanções aos cidadãos infratores, sendo a mais comum delas a multa, presente na maioria das atividades da Administração Pública, principalmente na fiscalização do trânsito de veículos e pedestres.

No que se refere ao Poder de Polícia de Trânsito, foco central deste estudo, muito se tem discutido sobre os legitimados a exercê-lo e sobre a possibilidade de sua delegação. O atual Código de Trânsito Brasileiro buscou dividir a responsabilidade da fiscalização e do controle do trânsito entre todos os entes da Administração Pública, inclusive entre os municípios, aos quais é facultada a chamada municipalização do trânsito.

Há muitas críticas a respeito dessa municipalização, com alegações de que a União simplesmente buscou se isentar da responsabilidade para com o trânsito urbano, transferindo-a aos estados e prefeituras. Todavia, pode-se afirmar que a atual legislação trouxe um grande avanço, pois ela aproximou o Poder Público do cidadão, uma vez que facilitou o contato do administrado com a Autoridade de Trânsito local: o município.

Com a municipalização do trânsito, as prefeituras têm autonomia para desenvolver campanhas educativas e operações repressivas, de acordo com as peculiaridades de cada região, sem a necessidade de padronização a nível estadual ou federal. Como exemplo pode-se citar uma situação hipotética, onde um município interiorano apresenta altos índices de acidentes envolvendo veículos automotores e veículos de propulsão humana (bicicleta) ou animal (carroça). A prefeitura desse suposto município teria muita dificuldade em conseguir junto ao governo estadual ou federal uma campanha educativa específica para diminuir esses acidentes. Mas, com o trânsito municipalizado, haverá recurso e autonomia municipais para a conscientização da população, além de maior celeridade na execução da campanha.

Além disso, apresentou-se nesta pesquisa estatísticas de acidentes de trânsito posteriores à entrada em vigor da nova legislação. Inconteste é a grande incidência de mortes e lesões causadas pelo trânsito brasileiro. Contudo, há de se condenar certos críticos, os quais afirmaram que logo a fiscalização e a população relaxaram e os acidentes com mortos começaram a crescer novamente. Entende-se que não é culpa da fiscalização o aumento do número de acidentes de trânsito; e também, ela não “relaxa” nunca. Os agentes de trânsito, dentro de suas circunscrições, estão sempre atentos, educando, fiscalizando e punindo aqueles que insistem em ficar às margens da lei de trânsito.

Quando uma nova norma legal é publicada, é costume da população brasileira obedecê-la na íntegra somente no início, depois há realmente o citado “relaxamento”. Foi isto o que aconteceu – e acontece – com a lei da embriaguez ao volante por exemplo: quando ela foi publicada, todos ficaram receosos e pararam de dirigir bêbados; posteriormente, a norma teve de ser enrijecida porque não apresentava mais efetividade.

Recentemente, em um programa jornalístico, um comentarista da área de Segurança Pública [S.n.t.] afirmou que o alto índice de acidentes no trânsito deve-se ao fato de que o brasileiro sempre quer ser diferente do seu semelhante, busca obter vantagem em tudo. Ele disse ainda que leis mais rígidas não funcionam porque o cidadão que tem um carro mais possante sempre vai se achar no direito de transitar à frente do outro, de ultrapassar em local proibido ou de avançar o sinal vermelho do semáforo. Segundo ele, é a cultura brasileira.

Por isso, acredita-se que a inovação trazida pela legislação de trânsito foi benéfica, pois define como Autoridades de Trânsito órgãos nos âmbitos federal, estadual e municipal. Cada autoridade tem sua área de atuação delimitada e deve criar mecanismos para um efetivo controle do trânsito sob sua responsabilidade, podendo, inclusive, firmar convênios com outros órgãos para o fiel cumprimento das normas legais.

A norma especial de trânsito traz em seu bojo um rol não taxativo dos legitimados a exerceram o Poder de Polícia de Trânsito. Ela faculta à Autoridade de Trânsito nomear como seus agentes tanto servidores civis, contratados no regime celetista ou estatutário, quanto policiais militares conveniados.

A expressão “estatutário ou celetista” merece destaque porque, geralmente, o regime de contratação celetista é utilizado por empresas privadas, sendo incomum na administração pública. Assim, com base no Código de Trânsito, pode-se dizer que não há impedimento quanto à fiscalização de trânsito ser exercida por funcionário de empresa privada.

No entanto, a jurisprudência majoritária e grande parte dos doutrinadores tem entendido ser impossível a delegação do Poder de Polícia de Trânsito a particulares, entes de direito privado. Faz-se deste o melhor entendimento, pois seria uma aberração uma empresa privada, que visa lucro, colocar seus funcionários para fiscalizar e confeccionar multas de trânsito, instalar-se-ia nas ruas uma corrida em busca de resultados, de arrecadação. Além disso, tal atividade, ainda que fosse legal, não seria moral.

Em contrapartida, observa-se uma crescente necessidade de se aperfeiçoar os resultados obtidos pela Administração Pública, aumentando sua eficiência e, paralelamente, reduzindo gastos. Isto faz com que os administradores busquem formas mais rápidas e econômicas de colocar em prática ações que podem trazer resultados positivos aos cofres públicos, como municipalizar o trânsito e colocar guardas municipais para fiscalizá-lo, por exemplo.

Esta prática estava se tornando comum, uma vez que as prefeituras municipalizavam o seu trânsito, mas evitavam a criação de secretarias de trânsito, a abertura de concurso público para Agentes de Trânsito e o seu treinamento. A execução destes atos, além de onerar consideravelmente o erário municipal, retardaria sobremaneira o início das operações de fiscalização do trânsito, ou seja, o retorno de financeiro ao município seria em longo prazo.

Por isso, diante do número crescente da frota de veículos e do interesse em aumentar em curto prazo a arrecadação, muitos municípios passaram a incumbência da fiscalização do trânsito às suas Guardas Municipais ou empresas de economia mista, como ocorreu na capital mineira, por exemplo.

Grande divergência se instalou após essas decisões municipais, principalmente quanto à legitimidade das Guardas Municipais serem dotadas com o Poder de Polícia de Trânsito. Apesar do Código de Trânsito apresentar um rol não taxativo de agentes, conforme foi citado, há uma peculiaridade em relação às Guardas Municipais, pois a Constituição da República autoriza a sua criação para cuidar somente do patrimônio público do município.

Com base nisso, tem-se discutido judicialmente sobre a possibilidade do poder de fiscalização do Estado ser executado por instituições estatais não destinadas a este fim, como é o caso das Guardas Municipais, ou até mesmo por entes não estatais, detentores de direito privado, como é o caso da BHTrans.

A BHTrans – Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte/MG, sociedade de economia mista criada para disciplinar o trânsito da capital mineira, recebeu a delegação do Poder de Polícia de Trânsito, sendo nomeada como Agente da Autoridade Municipal de Trânsito em 1998, e desde então vinha exercendo esta função, fiscalizando e aplicando multas. Inicialmente houve um entendimento do TJMG sobre a legalidade desta delegação; mas logo a decisão foi reformada e a BHTrans atualmente está impedida de lavrar autuações de trânsito.

Em que pese os mais conceituados doutrinadores brasileiros divergirem sobre o tema e o Poder Judiciário não ter ainda uma decisão pacificada, a maioria destas fontes do direito entendem ser ilegais a nomeação de Guardas Municipais como Agentes de Trânsito e a delegação do Poder de Polícia a particulares. Defendem que, quanto às Guardas Municipais, porque não há previsão constitucional; e quanto à delegação, porque a lei que trata das parcerias público-privadas veda expressamente este ato, além de ser imoral colocar um particular fiscalizando e punindo outro.

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Tamanha controvérsia acaba por retardar e dificultar a atuação das Autoridades de Trânsito com circunscrição sobre as vias, pois a fiscalização não alcança crescimento proporcional ao número de veículos nas ruas. Além disso, muitas vezes o aparato fiscalizatório até então mantido pelas prefeituras, como no exemplo de Belo Horizonte, está simplesmente impedido de continuar seus trabalhos aguardando a pacificação de decisões judiciais.

Em entrevista realizada com algumas prefeituras mineiras sobre a municipalização do seu trânsito, pôde-se observar que só obtiveram êxito as que criaram secretarias específicas e abriram concurso público para o cargo de Agente Municipal de Trânsito. Como exemplo positivo, é possível citar as prefeituras municipais de Divinópolis, Pedro Leopoldo e Lavras.

Em sentido contrário, a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, optou por delegar seu Poder de Polícia de Trânsito à empresa BHTrans, cujos agentes são contratados no regime celetista. Atualmente esta empresa está impedida de fazer autuações por decisão judicial. Buscando resolver o problema de forma mais célere, a capital mineira decidiu colocar seus Guardas Municipais para atuarem no trânsito, em substituição à BHTrans. Porém, está em andamento uma ação para impedir esse suposto desvio de função da Guarda Municipal. Assim, restou à prefeitura firmar convênio com a PMMG, a qual criou um batalhão exclusivo para atuar no trânsito da região metropolitana de Belo Horizonte.

 A exemplo de Belo Horizonte, a Prefeitura de Lagoa Santa apresentou um projeto de lei que outorgava aos fiscais de transporte do município o Poder de Polícia de Trânsito. Mas o projeto não foi aprovado porque se previu que futuramente considerar-se-ia ilegal esse desvio de função. Então, o município firmou convênio com a PMMG para que ela atue no trânsito e, paralelamente, abriu concurso público para a contratação de Agentes Municipais de Trânsito.

Em suma, observa-se que na ânsia de receber a totalidade dos recursos provenientes de autuações de trânsito aplicadas no perímetro urbano, os municípios têm se precipitado e municipalizado o trânsito sem qualquer estruturação prévia. Quando nomeiam guardas municipais para a fiscalização, logo é impetrada uma ação judicial. Igualmente acontece se delegam o Poder de Polícia de Trânsito a entes privados. Geralmente, essas prefeituras municipalizam seu trânsito, mas não exercem a fiscalização, até que decidem fazer convênio com o Estado para que a Polícia Militar passe a atuar no trânsito. Este convênio não é de todo lucrativo aos cofres públicos, pois obriga o ente municipal a dividir com o Estado os recursos de infrações, voltando-se ao patamar inicial, como se não houvesse municipalização.


4 CONCLUSÃO

Ante ao exposto, conclui-se que o Estado exerce o seu poder coercitivo através de sua Administração Pública, que detém o Poder de Polícia. Este poder fundamenta-se na necessidade de se manter a supremacia do interesse público sobre o privado, o que autoriza a Administração Pública a restringir ou limitar o exercício dos direitos individuais do cidadão em prol da coletividade.

Verificou-se ainda que o Poder de Polícia é um poder-dever, pois o ente estatal está vinculado à sua aplicação nos casos de rompimento da ordem pública. Contudo, não cabe ao Estado a extinção de qualquer direito individual, mas apenas a sua limitação para que não seja exercido em demasia, vindo a prejudicar outros.

Especificamente no que se refere ao Poder de Polícia de Trânsito, foi observado que a atual normatização do assunto trouxe maior amplitude ao rol de entes considerados Autoridades de Trânsito, distribuindo a responsabilidade fiscalizatória entre os poderes federal, estadual, distrital e municipal.

A novidade implantada pela atual legislação foi a oportunidade dada às prefeituras de municipalizarem seu trânsito, possibilitando-lhes fiscalizar, autuar e principalmente arrecadar os valores das multas aplicadas na sua circunscrição. Com esta possibilidade de maior arrecadação, muitas prefeituras municipalizaram o trânsito e nomearam servidores de sua Guarda Municipal como Agentes de Trânsito. Outras optaram por delegar o Poder de Polícia de Trânsito a empresas privadas, sociedades de economia mista.

A maioria da doutrina e jurisprudência entende que as Guardas Municipais não são legítimas a exercerem o Poder de Polícia de Trânsito, pois a norma constitucional é clara ao expressar que os municípios poderão criá-las para a proteção do seu patrimônio. Apesar de não haver ainda uma pacificação do assunto, pode-se afirmar que não há legitimidade das ações desenvolvidas pelas Guardas Municipais no Trânsito, uma vez que uma lei especial não pode contrariar dispositivo constitucional.

Igualmente, chegou-se à conclusão de que a Carta Magna não se manifesta sobre a delegação do Poder de Polícia a entes de direito privado. Porém, norma infraconstitucional, que trata das parcerias público-privadas, veda expressamente essa delegação. Assim, apesar da norma de trânsito permitir, entende-se, comungando com a doutrina e jurisprudência majoritárias, que há ilegalidade na transmissão do poder dever do Estado a particulares, principalmente no que se refere à fiscalização e autuação de trânsito.

Portanto, diante da impossibilidade da execução do Poder de Polícia de Trânsito pelas Guardas Municipais e da ilegalidade da delegação deste poder a particulares, resta às prefeituras que pretendem municipalizar o trânsito – ou que já o fizeram – nomear servidores públicos como Agentes Municipais de Trânsito e capacitá-los com o Poder de Polícia do Município para o controle, fiscalização e punição dos condutores infratores.

Se resistirem a isso com a alegação de que o processo de contratação de Agentes mediante concurso é oneroso, resta aos municípios a alternativa de firmar convênio com o estado para que o controle do trânsito seja feito pela Polícia Militar. Entretanto, apesar desta prática ser adotada por várias cidades, esse convênio não é vantajoso às prefeituras, pois ele exige a divisão do valor arrecado com multas entre o estado e o município.

Além disso, tamanha é a responsabilidade do Agente de Trânsito que, ao aplicar uma multa, ele extrai dinheiro do bolso do cidadão e repassa aos cofres públicos. E, com base no princípio do contraditório e ampla defesa, premissa essencial para a aplicação da multa, torna-se necessário que o agente seja legalmente constituído na função.

Finalmente, encerra-se este trabalho com a convicção de que os entendimentos aqui expostos podem ser reformados a qualquer momento, pois não houve pacificação da matéria pelos tribunais superiores. Entretanto, qualquer decisão que sobrevir, afetará diretamente toda a sociedade, pois o trânsito tornou-se parte da vida do cidadão, seja este condutor de veículo, passageiro ou pedestre.

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Sobre o autor
Helder Paulo de Andrade

Bacharel em Direito aprovado no exame da OAB; Policial Militar Rodoviário de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Helder Paulo. Poder de polícia de trânsito:: legitimidade e delegação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4004, 18 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29513. Acesso em: 25 abr. 2024.

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