12. O CÓDIGO CIVIL
O CÓDIGO CIVIL foi completamente silente no que tange a reprodução assistida regulamentando somente a presunção de paternidade advinda da utilização dos métodos.
Ante a impossibilidade de se demonstrar diretamente à paternidade, o NCC assentou relativamente à questão da filiação, algumas presunções fundadas em probabilidades, que por admitirem prova em contrário, serão relativas, ou seja, iuris tantum.
Para que a presunção de paternidade tenha a sanção de verossimilhança, a lei determina período no qual ela começa e termina e certas circunstâncias motivadas pelos avanços da biotecnologia, estabelecendo que foram concebidos na constância do casamento: a) os filhos nascidos 180 dias depois de estabelecida à convivência conjugal não se contando a celebração do dia do ato nupcial, ante a possibilidade de haver casos em que se deu o casamento por procuração (c.c 1542);
b) os filhos nascidos dentro de 300 dias após a dissolução da sociedade conjugal por morte, separação judicial, nulidade ou anulação, e também, de lege ferenda, por separação de fato (cc. 1723, parágrafo 1º), porque a gestação não vai além desse prazo;
c) os filhos havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido de sua mãe;
Na jornada de Direito Civil realizada no Superior Tribunal de Justiça no mês de junho de 2002, aprovou-se a proposição para que se intérprete o inciso III do citado artigo no sentido de ser obrigatório, para que se presuma a paternidade do marido falecido, que a mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida com o material genético do falecido, esteja ainda na condição de viúva, devendo haver ainda autorização escrita do marido para que se utilize seu material genético após sua morte.
Adverte Caio Mario que não se pode falar em direitos sucessórios daquele que foi concebido por inseminação artificial post mortem, uma vez que a transmissão da herança se dá em conseqüência da morte e dela participam as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão.
Enquanto não houver uma reforma legislativa, até mesmo para atender ao princípio constitucional da não-discriminação de filhos, caberá à doutrina e à jurisprudência fornecer subsídios para a solução dessa questão.
d) os filhos havidos, em qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentes, decorrentes de concepção artificial homóloga, isto é, advindos dos componentes genéticos do marido da mulher e preservados, por congelamento, numa clínica de reprodução assistida;
O embrião é o ser oriundo da junção de gametas humanos, sendo que há basicamente dois métodos de reprodução artificial: a fertilização in vitro, na qual o óvulo e o espermatozóide são unidos em uma proveta, ocorrendo à fecundação fora do corpo da mulher, e a inseminação artificial, consistente na introdução de gameta masculino, por meio artificial, no corpo da mulher, esperando-se que a própria natureza faça a fecundação. O embrião é excedentário quando é fecundado fora do corpo (in vitro) e não é introduzido prontamente na mulher, sendo armazenado por técnicas especiais.
Considera-se embrião, diz Paulo Luiz Netto Lobo, “o ser humano durante as oito primeiras semanas de seu desenvolvimento intra-uterino, ou em proveta e depois no útero, nos casos de fecundação in vitro, que é a hipótese cogitada no inciso IV do artigo em comento” 73.
Apenas é admitida a concepção de embriões excedentários se estes derivarem de fecundação homóloga, ou seja, de gameta da mãe e do pai, sejam casados ou companheiros de união estável. Por conseqüência, está proibida a utilização de embrião excedentário por homem e mulher que não sejam os pais genéticos ou por outra mulher titular de entidade monoparental. O que ocorrerá, contudo, se a vedação for descumprida e ocorrer à concepção no útero da mulher que não seja a mãe genética? O filho será juridicamente daquela e, no caso de par casado, do marido, neste caso em virtude do princípio pater is est e da presunção de maternidade da mulher parturiente, além da circunstância de não ter o Brasil, ao lado da maioria dos países, acolhido o uso instrumental do útero alheio, sem vínculo de filiação (popularmente conhecido como ‘barriga de aluguel’).
A mencionada Jornada de Direito Civil, realizada em Brasília em Junho de 2002, aprovou proposição no sentido de que, “finda a sociedade conjugal na forma do art. 1571, deste código, a regra do inciso IV somente poderá ser aplicada se houver autorização prévia, por escrito dos ex-cônjuges, para a utilização dos embriões excedentários, só podendo ser revogada até o início do procedimento de implantação destes embriões” 74 .
e) os filhos havidos de inseminação artificial heteróloga, desde que tenha havido prévia autorização do marido. Tal presunção visa tão somente, baseada na doutrina dos atos próprios de Diez-Picazo, fundada no princípio da boa-fé e na lealdade de comportamento, instaurar a vontade procracional do marido, como meio de impedi-lo de desconhecer a paternidade do filho voluntariamente assumido ao consentir na inseminação heteróloga de sua mulher. A paternidade, nesta última hipótese, apesar de não ter fundamento genético, terá o moral, privilegiando-se a relação socioafetiva.
Ocorre tal modalidade de inseminação quando é utilizado sêmen de outro homem, normalmente doador anônimo, e não o do marido, para a fecundação do óvulo da mulher. A lei não exige que o marido seja estéril ou, por qualquer razão física ou psíquica, não possa procriar. A única exigência é que tenha o marido previamente autorizado à utilização de sêmen estranho ao seu. A lei não exige que haja autorização escrita, apenas que seja ‘prévia’, razão por que pode ser verbal e comprovada em juízo como tal.
A presunção em apreço visa, segundo MARIA HELENA DINIZ75 impedir o marido de desconhecer a paternidade do filho voluntariamente assumido ao autorizar a inseminação heteróloga de sua mulher. A paternidade, então, “apesar de não ter componente genético, terá fundamento moral, privilegiando-se a relação socioafetiva”. Se o marido “anui na inseminação artificial heteróloga, será o pai legal da criança assim concebida, não podendo voltar atrás, salvo se provar que, na verdade, aquele bebê adveio da infidelidade de sua mulher (CC, arts. 1.600. e 1.602). A impugnação da paternidade conduzirá o filho a uma paternidade incerta, devido ao segredo profissional médico e ao anonimato do doador do sêmen inoculado na mulher. Por isso, há quem apregoe como Holleaux, que tal anuência só será revogável até o momento da inseminação; feita essa não poderá desconhecer a paternidade do filho de sua esposa.
Vê-se que se impugnar fecundação heteróloga consentida, estar-se-á agindo deslealmente, uma vez que houve deliberação comum dos consortes, decidindo que o filho deveria nascer. Essa foi à razão do artigo 1597, V, que procurou fazer com que o princípio de segurança das relações jurídicas prevalecesse diante do compromisso vinculante entre os cônjuges de assumir paternidade e maternidade, mesmo com componente genético estranho, dando-se prevalência ao elemento institucional e não ao biológico.
Em regra a presunção de paternidade do art. 1.597. do Código Civil é iuris tantum, admitindo prova em contrário. Pode, pois, ser elidida pelo marido, mediante ação negatória de paternidade, mediante ação negatória de paternidade, que é imprescindível (art. 1601). Não incidirá se o filho nascer antes de a convivência conjugal completar cento e oitenta dias. O Código Civil de 1916, todavia, considerava absoluta tal presunção, inadmitindo contestação quando o filho nascia antes do referido prazo e o marido, antes de casar, tivera ciência da gravidez da mulher ou assistira a lavrar-se o termo de nascimento, sem contestar a paternidade.
O código civil de 2002 optou pelo critério biológico, suprimindo as limitações à contestação.
Enfim, as proposições para a interpretação desse artigo resumem-se nas regras abaixo exaradas na Jornada de Direito Civil em 2002:
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a) No âmbito das técnicas de reprodução assistida envolvendo o emprego de material fecundante de terceiros, o pressuposto fático da relação sexual é substituído pela vontade (ou eventualmente pelo risco da situação jurídica matrimonial) juridicamente qualificada, gerando presunção absoluta ou relativa de paternidade no que tange ao marido da mãe da criança concebida, dependendo da manifestação expressa (ou implícita) de vontade no curso do casamento (enunciado 104);
b) As expressões fecundação artificial, ‘concepção artificial’ e ‘inseminação artificial’ constantes, respectivamente, dos incisos III, IV e V do art. 1597. deverão ser interpretadas como “técnica de reprodução assistida” (enunciado n. 105);
c) Para que seja presumida a paternidade do marido falecido, será obrigatório que a mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida com material genético do falecido, esteja na condição de viúva, sendo obrigatório, ainda, que haja autorização escrita do marido para que se utilize seu material genético após a sua morte (enunciado n. 106);
d) Finda a sociedade conjugal, na forma do art. 1571, a regra do inciso IV somente poderá ser aplicada se houver autorização prévia, por escrito, dos ex-cônjuges, para a utilização dos embriões excedentários, só podendo ser revogada até o início do procedimento de implantação desses embriões (enunciado n. 107).
13. CONCLUSÃO
A evolução da ciência e, especificamente, das técnicas de reprodução assistida, evidenciou, ainda mais, a necessidade de postura dos operadores do Direito. Mister que se tenha como parâmetro que o Direito Civil não mais pode ser considerado em sua natureza exclusivamente privada, devendo ser tratado à luz das normas insertas na Constituição, atentando-se, sobretudo, para os princípios jurídicos sufragados por este documento.
É importante que os operadores do Direito afastem posicionamentos radicais, de caráter absoluto, para evitar injustiças. Ao se analisar as técnicas de reprodução assitida, faz-se necessário considerar as peculiaridades do caso concreto, buscando-se a efetivação dos direitos de personalidade, tendo em mente o respeito ao princípio da dignidade humana.
Diante dos referidos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados, considerando-se, sobretudo, o respeito à dignidade humana e, por conseguinte, o bem-estar psicofísico desta, pode-se concluir pela existência do direito de procriar. Conseqüentemente, deve-se reconhecer a possibilidade do emprego da reprodução assistida para os seres humanos, desde que respeitados os limites éticos e jurídicos impostos. Antes de tudo, mostra-se imperioso preservar a dignidade de todos aqueles que participem do processo de reprodução assistida, observando, em especial, o bem-estar da criança a ser concebida e a manutenção da harmonia familiar.
Considerando as intricadas situações que podem advir das referidas técnicas, pugna-se pela necessidade de se estabelecer limites éticos e jurídicos à prática da procriação assistida, especialmente em relação à inseminação artificial e fertilização in vitro heterólogas, tendo em vista a proteção da dignidade de todas as pessoas envolvidas, sobretudo, no que se refere à criança a ser concebida.
Os métodos proporcionam aos seres humanos a fecundidade. Muitos, outrora ficavam eternamente condenados a não ter descendentes, o que hoje é possível com a utilização da reprodução assistida.
Polêmicas, dúvidas e questionamentos ainda existem como é o caso do destino a ser dado aos embriões, não encontrando, nem a biologia verdade absoluta, mas a sua utilização faz com o direito de procriação se implemente.
Nos procedimentos que não prevêem a intervenção de terceiro além do casal como é o caso da inseminação artificial homóloga, não há dificuldades de aceitação ética. Entretanto, a técnica de fertilização com o material genético de terceiro deve ser utilizada de forma cometida, com cuidados, assegurando os direitos inerentes à personalidade humana.
Tenho a certeza de que o progresso tecnológico não pode ficar sem controle. A parte científica e técnica da Medicina se degeneraria sem rumo, não fosse o componente filosófico-ético a irradiar seus princípios de respeito à dignidade da vida humana, à dignidade do corpo humano e de suas funções.
É preciso que o Congresso Nacional regulamente a reprodução assistida tendo como meta a dignidade humana, tendo como parâmetro que o Direito à vida é o primeiro de todos os direitos; o direito à vida funda todos os direitos constitutivos da pessoa, o direito de ser respeitada na sua identidade, o direito de não ser manipulada, o direito de ser considerada portadora de uma específica dignidade, irrenunciável, o direito, em conclusão, de ser reconhecida como pessoa.
As técnicas estão em constante evolução e o homem precisa regulamentá-las. Citando o pensamento do brilhante filósofo grego Aristóteles, “o abuso não pode eliminar o uso. A possibilidade de um uso eticamente inaceitável de uma técnica, fruto do saber humano não pode eliminar o seu uso se ela é de benefício para os demais membros dessa sociedade. O que procede é seu estrito regulamento no marco do bem comum. Esse marco é a lei”.76
Enfim, o assunto é complexo e não se esgota na análise jurídica, que apenas contribui para a solução dos conflitos sociais. Os nossos legisladores, embasados na ciência jurídica, devem criar uma legislação fundamentada em conceitos éticos. A regulamentação deve proibir, baseada na dignidade humana, a destruição dos embriões congelados. A lei deverá assegurar ao inseminado o direito de conhecer a sua origem genética no momento em que possuir a maturidade suficiente para a situação. A maternidade substituta deve ser autorizada com restrições ao parentesco e, somente nos casos de necessidade médica. Aos homossexuais tal direito deve ser atribuído sob pena de instituirmos uma discriminação legalizada pois os papéis desempenhados pelo pai e pela mãe são independentes do relacionamento sexual entre os parceiros.
A família brasileira mudou e deve ser assegurado a qualquer ser humano o direito de perpetuar a sua espécie, bem como a preservação do ser já concebido.
Nunca podemos nos esquecer que qualquer técnica utilizada pela medicina para a perpetuação da espécie deve estar fundamentada na bioética.
14. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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