6 DO ATENTADO À SOBERANIA POPULAR
10. Não fosse a atribuição do exercício da soberania a quem não detém investidura representativa, os mecanismos trazidos pelo decreto constituiriam aspectos positivos em consonância com os valores fundamentais do pluralismo político e da soberania popular (art. 1º, da Constituição). A Constituição, contudo, delimitou a participação popular direta, de modo que a sua alteração depende de reforma constituinte.
Não obstante seja a democracia participativa um direito constitucional fundamental na reafirmação da soberania popular[16] diante de uma globalização perversa e subserviente a uma centralidade oligárquica industrial[17], o que se vê, com este decreto, é um desequilíbrio forjado retoricamente por uma pretensa participação popular que, em verdade, atenta contra a soberania do povo.
Nos termos deste decreto, a soberania popular está em molesto risco diante de dispositivos que afastam o seu exercício direto, indireto, por meio de representantes eleitos, e semidiretamente, por meio de plebiscito, referendo e iniciativa popular (parágrafo único, do art. 1º c/c art. 14, da Constituição).
Alguns pontos, subjetivamente postos no decreto, podem converter-se em ferramenta de dominação da coisa pública em detrimento da soberania popular, por ofensa ao legítimo sistema representativo da democracia indireta, estendida a todos mediante o sufrágio universal e direto, e também à democracia semidireta que é exercida por todos diante de formulações dos representantes.
10.1 Luís Pinto Ferreira ensinava que o “desenvolvimento do regime democrático provocou a universalização do voto”[18]. Agora, com este suposto desenvolvimento da participação popular, uma coisa boa em princípio, tem-se provocado um retrocesso à democracia, destoando-se daquela universalização do voto, visto que a decisão na gestão da coisa pública poderá ser entregue a grupos de pressão, diminuindo-se sensivelmente o poder de decisão do povo e de seus representantes.
10.2 Se o objetivo é a democracia direta, dê-se poder ao titular, não a entes políticos que constituam grupos de pressão, muitas vezes com interesses inconfessáveis. E isto só seria real objetivo após a uma dissolução da federação, por deliberação constituinte, para a constituição de vários Estados com verdadeira identidade cultural tão homogênea quanto possível.
11. Em verdade, o caso é de reafirmação da triste história: este povo, apesar de soberano, continua com suas necessidades básicas em situação de precariedade, por mais que propagandas, e não publicidades, governamentais digam o oposto.
Lamentavelmente, persiste, em toda sociedade industrial, a verídica assertiva, formulada na década de 1820 por Charles Fourier, de que o povo é soberano, mas é um soberano que morre de fome[19].
Diante deste contexto, é certo afirmar que os dogmas do progresso científico e do desenvolvimento tecnológico ampliaram a desigualdade, concentrando o poder na mão das cúpulas. Às oligarquias ofereceram-se novas ferramentas de dominação, fazendo-se correta a estrondosa revelação do saudoso José Joaquim Calmon de Passos: “os ganhos tecnológicos ampliaram os tentáculos da dominação e apararam as unhas dos dominados”[20].
Neste espeque, o Estado, socialista ou capitalista, é aliado incondicional da ordem global industrial, pois são ambos perlocutórios de um pretenso dogma de progresso que não serve ao povo dito soberano, pois a maior parte da população da humanidade não tem acesso às suas reais necessidades de abrigo, agasalho, alimento, água potável e até ar puro. Enquanto deturpam o desenvolvimento das virtudes, as atividades progressistas propagandeadas ainda ofuscam criminosamente, a principal benesse da natureza: a liberdade.
7 CONCLUSÃO
12. É certo que o desprestígio da representação institucionalizada dos partidos políticos, com seus métodos internos antidemocráticos, tem favorecido um retorno ao exercício da soberania ao seu titular, na gestão da coisa pública. E a participação popular tem sido desenvolvida no Brasil, como se demonstrou.
13. Sabe-se, porém, que qualquer alteração no modelo democrático deve ser procedida por poder constituinte legítimo.
13.1 Com efeito, a condução da representação por indicados da sociedade civil diminui a força política dos cidadãos e do povo, eis que as vagas serão preenchidas por representantes de movimentos que, muitas vezes, tem sua composição dominada grupos de pressão vinculados a determinados partidos políticos.
13.2 Enfim, está claro que o método do Decreto nº. 8.243 intenta incutir a participação de interesses de determinados grupos na tomada de decisão política, atentando contra a soberania popular ao transferir-se a titularidade desta a grupos de pressão não investidos de poder de representação que somente o voto universal e igual confere.
Notas
[1] Se, na tecnocracia, a técnica tem sido dominada por oligarquias, na democracia, tentando-se resistir às ações tendentes à oligarquia, o progresso científico e o desenvolvimento tecnológico também tem servido à concentração do poder na mão de grupos, sob o dogma cartesiano do conhecimento especializado que, em última análise, relaciona-se com o poder econômico.
[2]ARISTÓTELES. A política. São Paulo, ícone, 2007.
[3]RODGERS, Judith. Winston Churchill. Coleção os grandes líderes. São Paulo, Nova Cultural, 1987.
[4]FERREIRA Filho, Manoel Gonçalves. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo, Saraiva, 2001.
[5]AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do estado. Rio de Janeiro, editora globo, 1941, p.327.
[6]BONAVIDES, Paulo. Ciência política. São Paulo, Malheiros, 2014.
[7]FERREIRA Filho, Manoel Gonçalves. Corrupção e democracia. In: Revista de direito administrativo, Rio de Janeiro, Renovar, out/dez 2001, v.226, p231-218.
[8]FERREIRA Filho, Manoel Gonçalves. Princípios fundamentais do direito constitucional: o estado da questão no início o século XXI, em face do direito comparado e, particularmente, do direito positivo brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012.
[9]COSTA, Alcir Molina da. Democracia e partidos políticos. In: Revista de direito da defensoria pública. Rio de Janeiro: Defensoria Pública geral, 1998, ano 10, nº. 13, p.219-221.
[10]FRANCO, Afonso Arinos de Melo. História e teoria dos partidos políticos no Brasil. São Paulo: editora alfa-omega, 1980, p.122.
[11]FERREIRA Filho, Manoel Gonçalves. Princípios fundamentais do direito constitucional: o estado da questão no início o século XXI, em face do direito comparado e, particularmente, do direito positivo brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012.
[12]COSTA, Alcir Molina da. Democracia e partidos políticos. In: Revista de direito da defensoria pública. Rio de Janeiro, Defensoria Pública Geral, 1998, ano 10, nº 13, p.219-221.
[13]A corrupção política tem sido prevenida (v.g. arts. 14, §9º, e 37, XXI, da Constituição) e repreendida (v.g. arts. 14, §10º, e 85, da Constituição, arts. 312 e ss, do Código Penal, e pela Lei nº. 8.429, de 02 de junho de 1992).
[14]FERREIRA Filho, Manoel Gonçalves. A democracia possível. São Paulo, Saraiva, 1979.
[15]ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo, Martin Claret, 2004.
[16]BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa – por um direito constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros editores, 2001.
[17]SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Record, 2000.
[18]FERREIRA, Luís Pinto. Teoria geral do estado. São Paulo, Saraiva, 1975, p.108.
[19]FOURIER, Charles apud GANDINI, Jean-Jacques. Anthologie des droits de l'homme. Paris, Librio, 1998.
[20]PASSOS, José Joaquim Calmon de. Revisitando o direito, o poder, a justiça e o processo: reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador, podivm, 2013, p.244.