Tem-se noticiado a promulgação da Lei nº 13.022, de 8 de agosto de 2014, oriunda do PLC -Projeto de Lei da Câmara- nº 39/ 2014, de autoria do deputado Arnaldo Faria de Sá , que dispõe sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais. Ela padroniza nacionalmente as características e atribuições das guardas municipais, dando-lhes poder de polícia, inclusive com porte de arma de fogo. Salta aos olhos, no meu entender, a inconstitucionalidade do Estatuto.
Como é cediço, a Carta Política, ao tratar de segurança pública, assim dispôs:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I - polícia federal;
II - polícia rodoviária federal;
III - polícia ferroviária federal;
IV - polícias civis;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.
Como se vê, não há referência às guardas municipais enquanto órgãos de segurança pública. São citadas, mais à frente no mesmo artigo, com um escopo bem delimitado:
§ 8º - Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.
Não há, portanto, constitucionalmente, nada que outorgue às guardas municipais (ou metropolitanas) status de polícia.
É verdade que o comando acima se refere a "lei", a regulamentar o parágrafo. Mas a regulamentação não pode exorbitar seu âmbito; não deve inovar, ficando restrita ao comando a ser regulamentado. Se a Constituição não deu status de polícia, não pode a lei regulamentadora dar.
É verdade, também, que o Código de Processo Penal já permite, a qualquer um, prender "quem quer que seja encontrado em flagrante delito" (1). Justamente pelo permissivo legal, não haveria necessidade de alçar os guardas municipais a atribuições próprias das polícias, haja vista que, como "qualquer do povo", poderiam agir diante da prática de crimes (2).
O Estatuto em tela cria, portanto, ao arrepio da Constituição, novo tipo de polícia, em âmbito municipal. Basta que se veja, no texto da lei, que seu art. 5º estabelece em dezoito incisos (!) as "competências específicas" das guardas municipais. Desde já fica evidente que haverá inúmeros conflitos entre essa "vitaminada" Guarda Municipal e as polícias constitucionalmente estabelecidas. E isso se voltará contra o cidadão, pego entre dois fogos.
Levando em conta as idiossincrasias do Federalismo brasileiro, há outros problemas palpáveis: por exemplo, a utilização das guardas como verdadeiros "exércitos particulares" dos alcaides pelo Brasil afora. Não é hipótese pouco plausível. São 5.568 municípios (3), com suas próprias realidades históricas e econômicas. Ainda convivemos com feudos e capitanias hereditárias, nesse Brasil de "modernidade tardia" como diz Lenio Streck. A malversação de recursos públicos é uma realidade, com o agravante de aqui é dotada de poder de fogo- literalmente.
Outros elementos a considerar. Se se pensa em políticas de segurança pública, é preciso ter em mente, primo, que é necessária uma visão totalizante -e não parcial- do assunto, o que só pode ser feito em nível regional, e não local; secundo, não se resolve tal problema -o da segurança pública- apenas criando mais e mais corpos de homens armados. Acerca do primeiro ponto, é evidente que os municípios têm muito a fazer, e não por acaso o citado art. 144 afirma que segurança pública é dever de todos. Há políticas e consultas em âmbito municipal, extremamente relevantes, que mitigariam a violência nas cidades. Tais políticas, contudo, devem estar integradas, dentro de uma abordagem global do problema (em todas as esferas, inclusive com a participação da sociedade civil), de modo que simplesmente "municipalizar" a segurança não é garantia de solução.
O segundo ponto é ainda mais relevante: repito, não se resolve o problema de segurança pública com a colocação de mais homens armados nas ruas. Tal postura, em verdade, nada mais é que o recrudescimento do aparato estatal de repressão, cuja mentalidade é a da solução das mazelas sociais através do uso da força. Tal mentalidade, "tipicamente policialesca" (4) do vetusto Código de Processo Penal, mitigada pela Constituição de 1988, ganha novo fôlego com a criação de novas polícias, tal como na prática traz o Estatuto Geral das Guardas Municipais. O cenário sombrio já se avizinha, com mais e mais casos de arbitrariedade e violência contra o cidadão comum.
Não somos contra a uniformização das guardas e um melhor regramento, em nível nacional, da carreira. Ao contrário, também aqui é melhor o trato único, evitando-se as distorções apontadas acima; o que, em todo caso, pode suscitar vozes quanto à redução da autonomia dos municípios nesse ponto, dado que possuem autoorganização, autolegislação e autogoverno (5). Contudo, tal regramento não pode trazer consigo o recrudescimento do Estado Policialesco, mormente ferindo claramente a Constituição.
Notas
(1) Art. 301.
(2) Poderiam agir, bem entendido; conforme o artigo citado, a compulsoriedade só existe para a autoridade policial e seus agentes, dentre os quais, como defendo, não se incluem os guardas municipais.
(3) Conforme a Confederação Nacional dos Municípios. Há quem fale, porém, em 5.570.
(4) Expressão de Eugênio Pacelli, in "Curso de Processo Penal" (Atlas).
(5) Dentre outros, Henrique Savonitti Miranda, "Curso de Direito Constitucional" (Senado), pp. 398-399, 5.ed., 2007.